O filme A Rainha (The Queen) é mais do que o desmentido do rodriguiano preceito sobre a burrice da unanimidade. Falo do Oscar para melhor atriz. Meryl Streep assume soberbamente todos os papéis que interpreta, mas nem por isso vamos dar-lhe um prêmio a cada encarnação que ela faça. Aquela garotinha que concorre à láurea de atriz secundária, por exemplo, não chega a ser uma atriz. Teve no filme pelo qual está sendo indicada o desempenho que tem toda criança orientada por um diretor sensível. Ela não passa de uma menina interpretando o papel de uma menina. Fosse assim e deveríamos sempre premiar um ator negro que interpretasse um negro. Ainda que fosse um Edson Arantes do Nascimento, mesmo sendo dirigido por um John Houston, entende? A Penélope Cruz eu incluiria como cantora. Mas vem um chato e me diz que aquilo foi dublagem. Pode? Quanto às demais concorrentes ao Oscar deste ano, quem são elas?
Mas não é disso que eu queria falar. É de algo que me parece fundamental: um filme, dependendo do espectador, será menos do que a narrativa de uma história ou mais do que a narrativa de uma história, nunca apenas a narrativa de uma história.
Repare que o diretor Stephen Frears, no final do filme esclarece que, muito embora haja no filme pessoas e fatos que correspondam a pessoas e fatos reais, com perdão do necessário trocadilho, nem tudo que aparece no filme corresponde ao que efetivamente aconteceu. Se não leu isso, volte ao cinema e preste atenção naqueles letreiros finais, para não dizer levianamente que estou mentindo. A caricatura feita ao Charles, por exemplo, é muito mais um exercício de sadismo do que uma preocupação em reconstituição histórica, se é que alguém pensará que o diretor estava interessado em reconstituição histórica quando se dispôs a fazer esse filme. Aquilo é uma irreverência digna de um filme do grupo Monty Python. Conheceu? Ou do Mister Bean, para sermos mais modernos.
Quanto ao príncipe Phillip, eu sempre achei que aquele ator, além de criar porquinhos inteligentes ou ser policial corrupto, algum dia faria esse papel, para o qual havia nascido. Não deu outra. Claro que o filme não se refere ao real Phillip, mas a todos os maridos, essa instituição quase inútil, depois de inventada a inseminação artificial. Ou seja: o sexo sem filhos depois e os filhos sem sexo antes. Diga a verdade, não fosse o dinheiro do aluguel e da feira que seu marido traz para casa, teria ele outra utilidade, além de desligar a televisão do quarto? O problema é que inventaram o controle remoto. E como o inverno londrino tem de contrapeso o aquecimento elétrico, olha o marido te dando um beijo na testa e indo dormir no outro quarto. Só o príncipe sem sorte faz isso?
O casal de caipiras Tony Blair e cafoníssima esposa não correspondem ao casal real, evidentemente, por mais comuns, no sentido político, que os verdadeiros sejam. Eles representam um casal de espectadores que está ali no escuro comendo pipoca e achando que aquilo tudo que está sendo exibido na tela é uma aula de história. Qualquer de nós. À medida que as cenas se vão sucedendo, vamos tomando conhecimento de que aquela velha rabugenta é muito mais do que apenas isso. Ela representa algo que os moderninhos deixaram no bolso da calça quando a levaram à lavanderia da esquina: a tradição. Fosse o Topol, no filme O Violinista no Telhado (A Fidler on de Roof) e teríamos como fundo musical o Tradition! Tradition! que ele lá interpretou magistralmente.
Quando a esposa do personagem Tony declara, enciumada, que ele se havia apaixonado pela chefe dele, ela não está enganada. Não se trata de uma paixão erótica, mas muito mais do que isso: uma paixão invejosa. Dizem que um norte-americano foi visitar um amigo inglês e admirou-se do aspecto do gramado, aquele tapete verde que ele jamais havia visto nos EUA. Morrendo de inveja, permitiu-se perguntar: “Que devo fazer para conseguir um desses gramados em meu ranch?” Simples, muito simples. Plante grama da melhor qualidade em um terreno previamente bem adubado. Depois, você rega durante trezentos anos.
O Tony do filme daria tudo para ter aquela postura que a personagem Elisabeth II nos exibe. Ela representa isso que a modernidade insiste em desprezar: a coerência. Se Diana estava divorciada do Príncipe Charles e, portanto, não mais pertencia à Família Real, qual o fundamento jurídico pelo qual se deveria dar a ela um enterro a que só os membros da Realeza têm direito? Nos demais países esse fundamento nada jurídico se chama demagogia. Certamente você jamais viu a real Elisabeth pegando no colo uma criancinha “do povo” e dar-lhe um beijo para ser registrado pelos fotógrafos previamente avisados. Bem por isso, a personagem corrige Tony, que a louva pela humildade demonstrada por ela. Aquilo não foi, de fato, ato de humildade, mas ato de humilhação. Uma simples concessão à ignorância da gentalha manipulada pela chamada mídia. Faltou dizer: eu os perdôo porque eles não sabem o que fazem.
Em uma leitura superficial, o filme endeusa a personagem Diana. Que engano! Ele, na verdade, a reduz a sua verdadeira dimensão: uma simples pop star. Aquelas centenas, se não milhares, de buquês de flores não foram deixadas ali porque a morta era uma princesa ou uma rainha. Quando você for a Londres, não deixe de visitar aquela enorme loja de departamentos toda enfeitada com belíssimos motivos indianos. Ela pertence à família do noivo, vá lá a palavra, da falecida Diana. No primeiro patamar você levará um susto: lá está uma espécie de altar, onde alguns londrinos e outros não-londrinos se ajoelham e rezam como se estivessem na catedral de Nottinghamshire. A que santa foi erguido o tal altar? A Diana Frances Spencer, ela mesma. Reparando bem, ali você verá duas relíquias sagradas: as duas taças de champanhe usadas pelo casal de pombinhos na fatídica noite. A terceira taça, usada pelo motorista vezes e mais vezes na mesma ocasião, alguém teve o cuidado de esconder.
Aquele altar é tão compreensível como seria um que se erguesse aos devotos de S. John Lennon. Elvis Presley não vende mais discos agora que está, digamos assim, menos vivo do que estava antes de sucumbir às drogas, pois, como sabemos todos, “Elvis não morreu”? E que fizeram os dois em benefício da humanidade para merecer tal entronização? A presença de Elton John no velório, alvo de uma oportuníssima gozação por parte do personagem Phillip, mostra isso: aquilo não era uma cerimônia religiosa, da mesma forma como o cortejo fúnebre era algo tão patriótico como o enterro da Norma Jean, aquela morena que se celebrizou posando nua para um calendário e depois preferiu ser loira e chamar-se Marylin Monroe, um brinquedo de osso e carne, bota carne nisso!, que tanto o priápico John Kennedy como seu irmão Robert utilizaram até a exaustão. Tudo pelo bem da pátria!
Ou sua colega Grace Patrícia Kelly, que poderia ter sido, em lugar da outra, a intérprete do filme Nunca fui Santa (Bus Stop) e cujo passado jamais veio à tona para o povo monegasco, interessado em que o velho rei arranjasse logo uma prole, mesmo que fosse composta por filhas que se deixam engravidar por motoristas ou guarda-costas, para afastar de vez o risco de a França vir tomar-lhes aquele principado de brinquedo. Apurar quantos leitos ela havia esquentado antes de interpretar definitivamente o papel de rainha, que importância isso agora tem? Se nem a mulher do Gary Cooper levou isso muito a sério, por que nós haveríamos de?
Volto ao filme: o olhar encantado do personagem Tony, nas cenas finais, é o retrato da reação que têm as pessoas acostumadas aos BBBs da vida quando entram pela primeira vez no Teatro Municipal, qualquer teatro municipal. Ou os que passam a tarde de domingo jogando a vida fora ao som da voz do Faustão e um belo dia, sabe-se lá por que cargas d’água, resolvem ver uma exibição do Cirque du Soleil, nem que seja em DVD. Essa pessoa nunca mais dará ao Faustão a importância que dava até a véspera. Ou se conformará definitivamente com a própria mediocridade, o que não é o caso do personagem Tony. Acho que se o filme fosse um pouco mais além do que aquele belo passeio pelo jardim, coisa mais própria de dois namorados, o personagem Tony se divorciaria daquela tagarela que ele tem em casa e que, como compete às esposas, manda o marido tirar os pratos da mesa depois do jantar. E ele diz que os vai lavar, mesmo sem ser mandado.
Para encerrar, façamos um teste, para saber se a senhora tem razão ao criticar-me por tudo o que acabo de escrever. Imagine que o José Dirceu seja perdoado pelo Congresso Brasileiro, que lhe devolve os direitos políticos que lhe haviam sido cassados. Faça de conta que isso é um filme, sendo ele interpretado pelo José Wilker. Em seguida, ele é recebido no Palácio do Planalto, onde o presidente da República não só o abraça, como lhe sapeca um beijo em cada rosada bochecha, como no Volver, do Almodóvar. No dia seguinte, um ministro da nossa Corte Suprema requer aposentadoria, para ser nomeado em seguida ministro em uma Alta Corte Internacional qualquer, filme collorido que a senhora já assistiu no passado recente.
Adivinhe quem vai ser nomeado para preencher aquela vaga aberta no STF? Ele mesmo. O senado aprecia longamente a indicação do doutor Zé Dirceu para ministro do Supremo Tribunal, com discursos e mais discursos louvando seu passado revolucionário, pulando-se aqueles pedaços em que ele viveu fora do Brasil, com a mesma cara, ou no sul do Brasil, com cara artificial. E outros pedaços que, tal como o passado da Grace Kelly, em nada contribuirão para o bem do país. E o nome dele é confirmado pelo Senado. Por unanimidade!