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Cultura

Cultura

15/12/2006

"Os antropólogos sabem de fato o que é cultura, mas divergem na maneira de exteriorizar esse conhecimento."

(George Peter Murdock)

Vejo num programa de televisão brasileiro, num desses inúmeros debates inconclusivos, que mais parecem programa da TV francesa, várias pessoas buscando conceituar cultura. “Cultura é o nosso futebol”, “cultura é o candomblé”, “cinema é cultura”, “grafite é cultura”, confundindo definição com exemplos.

Dou minha contribuição ao debate, trazendo também eu alguns exemplos, com os quais também fujo a uma tentativa de definir.

Em uma lojinha de um shopping, freqüentado por pessoas da chamada classe média alta, o que quer que isso signifique, compro alguns artigos de papelaria, que somam R$ 21,00. Entrego uma nota de R$ 50,00 à balconista, uma mocinha mulata, condição que me impressiona positivamente, pois também sou avesso a toda forma de discriminação entre pessoas, embora seja avesso à demagógica política das cotas, que, em nome de enfrentar um problema, acaba criando outro, como é a natural marginalização das pessoas “menas dotadas” em face de seus colegas, os “mais dotados”, isto é, aqueles que ingressaram na faculdade pela porta da frente. Os que ganharam o jogo no campo, e não na secretaria. Aliás, já está comprovado que quase metade dos alunos admitidos por força das tais cotas no ano passado não concluíram nem mesmo o primeiro semestre escolar na faculdade. Alguém está realmente interessado em estudar as causas dessa previsível evasão? Isso é problema do Ministério da Cultura ou do Ministério da Educação?

Ainda agora o IBGE nos informa que nunca tantos alunos freqüentaram a escola como agora. Algo acima de 90% do número máximo ideal. Mas, em compensação, nunca os professores estiveram tão despreparados para dar a esses alunos algo que os faça conseguir não só ler um texto como interpretá-lo. Qual o grau de cultura que deve ter um professor?

Por exemplo, você tem idéia de quantos titulares lecionam efetivamente na Faculdade de Direito da USP, em lugar de enviarem em seu lugar “assistentes” ou que outro nome lhes dêem para darem aulas em seu lugar? Quem os fiscaliza, se as Universidades são “autônomas”? Que será que o mais recente ex-diretor tem a dizer sobre isso?

Pois volto à tal balconista. Ela pegou da calculadora, para saber quanto me deveria retornar de troco. Provoco a moça construtivamente, em uma linguagem que ela certamente entenderá: “Você sabia que o cérebro é um músculo e que um músculo, se não for utilizado, atrofia?” Ela se limita a sacudir ambos os ombros para cima e para baixo. Será que ela sabe o que quer dizer atrofiar? Não me dou por vencido: “se o teu cérebro está precisando de calculadora agora, imagine quando você tiver minha idade!”. Ela me olha com ar sério: “Nun tô nem aí!” Deixar de utilizar o corpo para utilizar um aparelho eletrônico em substituição significa avanço cultural?

Uma amiga me conta que, indo ao cabeleireiro, foi informada pela “profissional” que não havia água morna. Ela, muito contrariada, aceitou ter a cabeça lavada com água fria. Depois do atendimento, a cliente foi, revoltada, procurar a gerente, a quem reclamou daquela desatenção, para espanto da senhora que, dirigindo-se à sala de banho, mostrou que eram duas as torneiras, uma com a letra “F” e outra com a letra “Q”. Bastava que a moça abrisse também a outra torneira, aquela com a letra “Q”, para que fluísse a água morna, decorrente da somatória de ambas. Ao que justificou a tal “profissional”, candidamente: “mas ninguém tinha me avisado que aquele Q significava quente”. Talvez ela esperasse que houvesse ali uma terceira torneira, com a letra “M”. O preparo adequado de profissionais é da competência de qual das mais de três dezenas de Ministérios que temos hoje em dia?

Vou à lanchonete de um supermercado de pomposo nome francês. Vejo ali uns docinhos. É dietético? A mocinha me olha sem dizer nada. É diet? E ela ali muda só me admirando. Vo-cê sa-be se es-te do-ce é pa-ra di-a-bé-ti-cos? “Sei não”, diz ela. Vem um rapaz e lhe indica os doces que eu procurava, mais à direita.

Claro que o fato de elas serem mulatas é apenas um dado a mais do problema, sugerindo que pessoas mal preparadas estão sendo empregadas em funções onde lhes pagam salário mínimo, como lhes pagariam em qualquer atividade braçal. Fossem loiras ou nisseis e possivelmente agissem da mesma forma, pois a regra, atualmente, é contratar pessoas com a mais baixa escolaridade possível, mesmo quando a função a ser desempenhada exija algum discernimento que essas pessoas, culturalmente mais simples, não possuem. Entretanto, no momento em que tanto se fala em integração social (o que quer que isso signifique), o fato de se tratar de alguém que, em nossa tradição, por força de sua cor, está marginalizada dos benefícios culturais, não pode deixar de impressionar quem, como eu, espera que haja, também por parte dos marginalizados, um empenho nessa integração. Se eles (maioria? minoria?) não estão nem aí, como forçá-los a algo que não lhes diz respeito, como é a participação nos benefícios culturais que a sociedade deve proporcionar a todos os seus membros? Por que estudar, se podem desempenhar funções “mais importantes” sem ter preparo algum para isso? Para que formar-se se não há mercado de emprego para essa multidão que as inúmeras faculdades despejam na rua anualmente aos magotes?

Freqüento uma gráfica de excelente aspecto, com serviços indicados em inglês. De um dia para outro os empregados foram substituídos por novatos, que não têm a menor idéia de como aquilo funciona. Em nome de redução de custos, motivada pela concorrência, o cliente deve ter paciência com serviços mal-feitos, pois os recém-contratados estão “em fase de experiência”, diz-me o gerente. Experiência à custa de quem precisa do serviço e à custa do material que é desperdiçado. Há alguma autoridade no país interessada no aperfeiçoamento da mão-de-obra?

Coincidentemente, dias antes, um amigo, que dirige uma faculdade de Direito, informara-me que as universidades particulares estão dispensando professores com titulação de doutor, pois o Ministério da Educação resolveu dispensar as universidades da obrigação de terem no corpo docente número mínimo de doutores, como ocorria até agora. Muitos dos que faziam doutorado estão desistindo do projeto de aperfeiçoamento, para não perderem as classes em que lecionam, informa-me o mesmo amigo, pois, como doutores, teriam direito a salário maior. Além do mais, como o número de professores com mestrado também deve obedecer apenas a uma cota mínima, as universidades estão contratando recém-formados, sem titulação alguma, para desemburrecerem (o termo foi utilizado pelo meu amigo, homem, por sinal, com PhD em algum MBA no Exterior). “Que adianta dar pérolas a porcos?” filosofa ele.

O chamado Ministério da Cultura, nos últimos quatro anos, notabilizou-se pelos shows dados por seu titular nos quatro cantos do mundo. Aparentemente, a cultura afro-brasileira merecia ali prioridade absoluta. Indo-se ao site respectivo aprende-se que “a cultura é um patrimônio simbólico que pertence a todos. Ao longo da história, certas manifestações culturais foram subjugadas, consideradas menores. No Brasil as culturas populares foram vistas como 'exóticas' e ficaram emparedadas em certos (pre) conceitos. O Plano Nacional de Cultura pretende atuar esse (sic) campo intangível. ‘Não quer dizer que se pretende planejar a produção cultural, mas definir os mecanismos de manejo das políticas públicas em prol da diversidade cultural”, esclarece o coordenador executivo do PNC.

Diz mais o homem: “A cultura tira da vulnerabilidade social várias pessoas que ganham seu sustento com atividades nessa área. Ela também fornece a oportunidade de protagonismo e o sentimento de identidade aos indivíduos. O PNC é um projeto de nação. A idéia é que ele se (sic) represente a sociedade, e não algum governo. Por isso, o Plano é formulado a partir da articulação de um conjunto de atores culturais, que debatem em vários espaços públicos as metas do projeto e pretendem torná-lo uma lei.”

No site do Ministério da Cultura, onde se fala em valorização das “culturas populares”, temos um texto pernóstico, com duas construções de frases pelo menos discutíveis à luz da regência verbal normalmente em uso em nosso país, propondo-se a esclarecer o que, depois dele, tornou-se mais obscuro.

Que é mesmo cultura?

 

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.