“A justiça brasileira está tomada por uma doença grave e, ao que parece, contagiosa.”
(Migalhas, 28/8/2006)
Eu sou do tempo em que. E lá vem alguma comparação entre isto e aquilo (claro, sempre dizendo que aquilo era melhor do que isto). “Naquele tempo juiz não pisava no tapete vermelho quando por ele passava um desembargador”, assegurava o desembargador Hildebrando Dantas de Freitas a um grupo de juízes que com ele conversávamos exatamente sobre o tapete vermelho do sexto andar do Tribunal de Justiça de São Paulo, coisa de uns trinta anos passados. Ou mais. Coisa de gente velha, direis. Ou que está envelhecendo, na melhor das hipóteses.
Nas aulas de Direito Administrativo aprendia-se que é dever de todo funcionário público (hoje se fala em “agente do serviço público”, como se, mudando o título da pessoa que ali atua, o serviço melhorasse) tratar as pessoas que o procuram com urbanidade. Que é ser urbano? E o professor citava os clássicos, dizendo que a vivência na cidade (urbe) deixava as pessoas mais afáveis, mais civilizadas, mais educadas. Uma palavra politicamente incorreta, diríamos hoje, pois ofende os moradores da zona rural. Além de tudo uma palavra injusta, pois a cortesia ainda é uma característica dos interioranos, enquanto os da capital não respondem nem a cumprimento quando nós, os mais antigos, dizemos um bom dia ao entrar no elevador.
Pois deu-se que o estagiário (“solicitador acadêmico”, dizia-se naquela época) atuava no XI de Agosto, o nosso HC do Largo de São Francisco. Era um caso incrível: o juiz titular, por descuido, aplicou à causa uma lei já revogada, negando, com base nela, o que havia sido solicitado. Agravou o “advogado”, requerendo que fosse aplicado ao caso a lei correta. O juiz auxiliar (diga-se, a bem da verdade, recém-chegado do interior, onde, aliás, nascera), dando pelo equívoco, aplicou ao caso a lei nova. Mas negou, com base nela, o que havia sido solicitado. Ou seja: não reformou coisa nenhuma. O pobre estagiário ficou em palpos de aranha: seu recurso havia sido acolhido mas não havia sido acolhido. Que fazer? Procurou o juiz, famoso por seu vasto bigode e pelo modo pouco cortês como atendia aos advogados (atributo que o solicitador ainda desconhecia). Apresentou-se humildemente e tentou obter alguma orientação. “Trata-se de uma hipótese interessante que...”, balbuciou o futuro advogado, como que se dirigindo a um professor, que supunha fossem todos os juízes. “Nós aqui não lidamos com hipóteses”, sentenciou o magistrado, que mais não disse nem lhe foi perguntado, pois o estagiário rodou nos calcanhares e dali escafedeu-se. Aprendera a dura lição.
Muitos lustros depois, o eterno estagiário, agora voltando a advogar, já com cabelos brancos e quarenta anos de formado, em audiência, levanta-se para conferir na tela do monitor do computador se o juiz ditara corretamente um depoimento (na verdade, ele omitira texto importante ao ditar à escrevente o que dissera a testemunha). O juiz repreende severamente o grisalho advogado, “ensinando-o” que ninguém ali se levanta sem sua licença. Fundamentar tal censura nem pensar. Os cabelos negros do juiz, talvez reflexo da severa toga, davam-lhe o direito de desconsiderar, por um nada, os cabelos brancos do outrora colega de profissão. Um bate-boca desnecessário ao fim do qual os ânimos restariam exaltados, para espanto do cliente e sem proveito nenhum para ninguém. Nova lição a ser aprendida, como diria a Dra. Renata Maria Gomara.
O mesmo advogado, de outra feita, entra na sala da audiência e estende a mão para a juíza em comarca do interior, com um “boa tarde, Excelência”. “Boa tarde” é a resposta dela, sem tirar os olhos dos autos, que lia com aparente atenção. “Eu sou de São Paulo e ...”, diz ele, querendo dizer que não conhecia as idiossincrasias daquela comarca e desejava conhecê-las. Ela o interrompe, sem levantar os olhos: “Eu também sou!” O sempre estagiário, que havia lido alhures que no Itamarati se ensina aos futuros diplomatas que somente se deve estender o braço para responder a um cumprimento, lição que o tempo o fizera esquecer, recolhe a mão e o rejeitado afeto do sorriso do rosto. Sempre é tempo de se aprender algo. Aprender a ser grosseiro?
Durante a tal audiência, a memória vagueia, talvez para fugir do incômodo causado pela descabida indelicadeza, e vai até Araraquara, onde fora juiz substituto e onde a fama de um loirinho bom de bola ainda corria pelo fórum muito tempo depois de ele haver dali saído, para vir para a Capital estudar. Aqui, o loirinho de cabelos cacheados mostrou que também era bom datilógrafo, tornando-se escrevente (em rigoroso concurso, é claro, como era regra “naquele tempo”, quando Q.I. queria dizer “quociente de inteligência”, e não “quem indica”, como ocorre hoje). E bom também no estudo. Formou-se em Direito e, vencido o necessário prazo de experiência nas lides forenses (naquele tempo isso era pra valer), prestou concurso e ingressou na Magistratura.
Novinho ainda (não tão novo como os de hoje, que são de outros tempos), veio auxiliar na comarca da Capital. O antigo escrevente estava presente no datilógrafo expedito que, mangas de camisa, naquele calor de janeiro, batia um texto a máquina, talvez um despacho, ou mesmo uma sentença. Entra o advogado, cara de turco (ele ainda carrega seu corpanzil pelo fórum João Mendes até hoje e confirmará a história, se o desejar, valendo seu silêncio como admissão de anuência), com a petição na mão, vê a cadeira do juiz vazia e, evidentemente, procurando uma informação, dirige-se ao datilógrafo: “Escute aqui, meu rapaz, você é novo aqui, não é?” O datilógrafo responde balançando a cabeça afirmativamente. E continua a datilografar. “É oficial de justiça?” O datilógrafo balança a cabeça, dando resposta negativa. E continua a escrever. “Então você é escrevente?”. Novo meneio de cabeça em resposta negativa, sem interrupção do tec-tec do teclado. O advogado, já impaciente: “Mas então vai me dizer que já é escrivão, moço desse jeito?”. Ainda uma vez uma silente resposta negativa. “Então quer dizer que você, quer dizer, o senhor é ...” E o Sydney (seguramente não haverá outro com dois “y” no nome em nenhum lugar do mundo, pelo que me dispenso de incluir o sobrenome do agora ex-Ministro do STF), com um sorriso de orelha a orelha, voltando-se para o estático causídico: “Vamos ver o que temos nessa petição, doutor”.
E ambos riram muito, e riem até hoje, relembrando o fato, nas raras vezes em que se encontram em São Paulo, onde o ex-loirinho agora vive, em seu otio cum dignitate.