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Rótulos

Rótulos

10/11/2006


 

“No hay para qué tomar venganza de nadie, pues no es de buenos cristianos tomarla de los agravios; cuanto más que yo acabaré con mi asno que ponga su ofensa en las manos de mi voluntad; la cual es de vivir pacíficamente los días que los cielos me dieren de vida.”

(Sancho Panza, in Don Quijote de la Mancha, II parte, capítulo 11)

Você já ouviu falar em Gerson de Oliveira Nunes? Não? E se eu lhe disser que ele foi autor de uma recomendação famosa, na qual aconselhava as pessoas a agirem sem escrúpulos? “Devemos levar vantagem em tudo”, eis o bordão de uma propaganda de cigarro, que ficou conhecida como “lei de Gerson”. Veja aquele comercial e descobrirá que ele nunca se referiu à falta de escrúpulos. Mas o rótulo ficou.

Certo político paulista é tido e havido como corrupto há muitas décadas, desde que ingressou na política pagando as dívidas de jogo de um conhecido revolucionário. Acaba se ser eleito deputado federal, mesmo porque o Ministério Público jamais conseguiu demonstrar que ele mereça o rótulo.

Em compensação, temos o caso da velhinha que morava em uma choupana. Dessas a que cantor de bossa nova, equilibrando-se num banquinho e dedilhando o violão, tece loas, falando da maravilha de morar na favela, “mais parece o céu no chão”. Tudo isso cantado sob o ar condicionado do bar de um hotel cinco estrelas a pessoas que não entendem o idioma.

Pois nossa velhinha tinha sua casinha limpa e bem arrumada na favela de Heliópolis, entre o Ipiranga e São Caetano do Sul. Era ela uma das cem mil pessoas que habitam o local, segundo os mais recentes dados do IBGE. Como recebia com freqüência a visita de baratas e ratos, tinha lá os remédios destinados a eles. Por que utilizar o genérico rótulo de “remédios” para designar aquilo é algo que deveria ser perguntado a ela, não a mim. O que sei é que lá estava a prateleira com os venenos guardados em local estratégico, a cavaleiro de crianças curiosas.

Deu-se que sua filha precisou dormir na casa de família onde trabalhava e os dois netos vieram passar a noite com a avó. Uma das crianças estava muito gripada e a zelosa mãe trouxera o providencial xarope de mel e agrião. Que a prestimosa velha guardou em local onde estaria a salvo da curiosidade dos guris: precisamente na prateleira dos venenos. E lá quedaram distantes e seguros.

À noite o gripado acordou sacudindo-se de tosse, sem poder dormir nem deixando o irmão, já irritado por isso, dormir. A avó, meio sonolenta ainda, entre a tosse de um e os reclamos do outro, dirigiu-se à prateleira, pegou um dos frascos e serviu uma dose do líquido à criança. Que jamais acordou daquele sono, para desespero da velha.

Pois apareceu um Promotor de Justiça entendendo que a velha semi-analfabeta se havia portado com indesculpável negligência, ao não colocar em cada frasco o rótulo que o distinguiria dos demais, coisa comezinha, que o dever de cautela impunha nas circunstâncias concretas. Citou autores de nomes complicados e pespegou-lhe ele um rótulo naquela mulher: criminosa. Instava que fosse punida, para escarmento de todas as avós tão descuidadas quanto ela, argumentou, enfático, em sua peça pouco literária. E houve também Juiz de Direito que, ao cabo de audiências e questionamentos, condenou a ré pela morte do neto, eliminado dela o rótulo jurídico que uma vida de sacrifícios lhe granjeara: primária. Condenação que veio a ser reformada pelo Tribunal, dito segunda instância, ao argumento de que, certamente, a pena que a consciência vinha aplicando à infeliz avó era muito mais severa do que qualquer pena humana que se lhe pudesse aplicar. E tome rótulo: infelicitas facti.

Atitude que, certamente, para muitos juristas, adeptos da law and order, seria chamada de leniente. Ou que seria censurada por algum psiquiatra, auto-rotulado freudiano, junguiano, lacaniano ou que outro nome haja, sob a premissa de que nada amaina mais a consciência do culpado do que ter sua culpa oficialmente reconhecida por autoridade competente, representante de Deus onisciente e justo na Terra. Condená-la seria contribuir para que ela afastasse da memória aquela desgraça. E ele também traria nomes complicados para designar sua tese.

Ainda bem que a antileniência judiciária tem produzido casos que os jornais e os noticiários da televisão nos atiram no rosto, direis. Ora é um pai de família que é preso, sem direito a fiança, por haver abatido uma árvore, gesto que contribui mais para o efeito estufa do que as indústrias poluentes do hemisfério norte do globo terrestre como sabe qualquer mortal e só não sabem os sonhadores que se põem a assinar tratados para diminuição de atividades industriais, como se isso fosse possível.

Ou aquele outro cidadão que teve o mesmo destino porque trouxe para o seu barraco uma ave cuja espécie está em vias de extinção. Se é para ser extinto que sejam as crianças famintas, não a preciosa ave ou a valiosa árvore, que criança é muito mais fácil de reproduzir. A morte de um tatu, disseram os jornais, exigiu que se formasse um Tribunal do Júri, para que a comunidade se manifestasse sobre a lesividade de tal conduta, lá vão alguns anos. Pessoas mortas em assalto não justificam o que a superioridade de um tatu exige: a participação popular em julgamento de tão relevante monta.

Estamos, já se vê, diante de algo que pertence ao que o Ministro Marco Aurélio certa feita chegou a rotular, à falta de nome mais palatável, de terrorismo penal. E que outros preferem candidamente rotular de tolerância zero. Fez, pois que pague.

E dão a isso também um rótulo: fazer justiça.

Eu, que não sou melhor do que ninguém, também já tive a honra de ser rotulado. Se escrevi sobre a união estável de homossexuais, por que não me rotular de gay? Ou termo equivalente, porém chulo? Se me interessei pelos desafortunados sociais, por que não me qualificar de comunista? Coisa certamente de quem não conhece o comunismo.

Inda agora brindam-me com um novo rótulo: anti-semita. Vejamos isso.

John Gray, em seu Cachorros de Palha, que pessoas com tendência suicida não devem ler, lembra-nos que desde 1950 ocorreram mais de 30 genocídios em todo o mundo, citando, especificamente, Bangladesh, Camboja e Ruanda. “Entre 1917 e 1959, mais de 60.000.000 (sessenta milhões) de pessoas foram mortas na União Soviética. Esses assassinatos em massa não eram ocultados: eram uma política pública”. Nada a estranhar, diz ele, pois “o genocídio é tão humano quanto a arte e a prece”.

Você concorda com isso? Concorda com esses números? Se algum estudioso resolver questionar esses fatos e esses números, será justo pespegar-lhe um rótulo, dizendo-o anti- qualquer coisa? Numa discussão entre adultos, nós combatemos os argumentos, não o argumentador. Isso quando se tem argumento para apresentar.

Carl Gustav Jung, de quem não sou digno de limpar os cachimbos, expressou sua mágoa em ser chamado anti-semita, coisa que ele jamais foi. Deirdre Bair, na excelente biografia que dele escreveu, registra vários episódios desses que tanto desgostaram o mestre. O advogado Vladimir Rosenbaun, um dos protagonistas de uma dessas lamentáveis leviandades, lealmente reconheceu, anos mais tarde, que estava equivocado, "imbuído de uma hipertrofia de desconfiança da qual um judeu dificilmente se livra". São palavras da biógrafa. Se duvidar, vá ao tomo II da biografia do grande humanista suíço e veja no índice quantas páginas ela dedica ao tema anti-semitismo.

Tudo o que posso dizer é que, no meu caso, um rótulo equivocado desses, que me coloca no mesmo escaninho do mestre suíço, só me enche de um baita orgulho.

 

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.