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Evangelhos apócrifos

Evangelhos apócrifos

8/9/2006

Dizem que, além dos quatro Evangelhos que todos conhecemos, que são os oficiais, ditos sincrônicos, há outros mais, ditos apócrifos, nome antipático para o que melhor se qualificaria de oficioso, alguns dos quais contam algumas historinhas sobre a infância de Jesus. Como aquela que narra o hábito que ele tinha de fazer passarinhos de barro, que ia colocando ali, ao lado dele, um ao lado do outro. Quando se cansava, ele, entre um bocejo e outro, dava um sopro sobre eles e as avezinhas saíam voando em bando.

Meu pai nos contava o dia em que, indo pregar em outra freguesia, Jesus levou consigo o amigo Pedro, recomendando que este trouxesse no embornal um frango assado, determinando ao cabeçudo amigo que só abrisse o matulão quando chegassem ao destino. O Pedro, porém, com fome, enfiou a mão na cesta e arrancou do frango uma das pernas, que comeu discretamente. Quando se sentaram para comer e o Mestre descobriu que faltava uma perna ao frango, repreendem o discípulo. “Mas esta é uma ave de uma perna só”, justificou ele. Prosseguiram viagem e, lá adiante, havia umas aves pernaltas, fazendo a sesta sobre apenas uma das pernas, a outra guardada debaixo da asa, talvez jaburu. O Pedro não perdeu a oportunidade. “Veja Mestre, ali está a ave de que lhe falei”. O Mestre correu até elas, espantando-as, e elas se puseram a correr, mostrando agora as duas pernas. O Pedro não se fez de achado: “Eita home bão pra fazê milagre, sô!”

Que importância terá o fato de não termos prova da veracidade desses míni-contos? Vi certa vez uma ilustração em que o menino Jesus, de camisolão ocidental até os pés, rosto branco como um escandinavo e cabelos arianos loiros caindo pelos ombros, está numa oficina muito bem aparelhada, ajudando o pai carpinteiro. Já o Zé Saramago, com a liberdade que sua genialidade poética lhe permite, descreve uma refeição na gruta do casal: José, de cócoras, prato amparado na mão esquerda, com a mão direita fazendo as trouxinhas de comida que leva sucessivamente à boca. No canto escuro, Maria espia, de pé, encostada na parede, aguardando sua vez de almoçar, talvez coçando as costas. Sei de algumas pessoas freqüentadoras de missa que não foram além dessa página.

Acho que todos temos o direito de sonhar e, sonhando, construirmos o mundo que gostaríamos de ter. Ou imaginando, no sonho, como o mundo talvez pudesse até ser muito pior do que já é, consolo dos inconsoláveis. Daí os sonhos de que nós acordamos alegres e aqueles de que acordamos ofegantes, coração disparado, mas felizes por voltarmos a este mundo caótico, menos terrível do que aquele que havíamos construído no sonho recentemente sonhado. Sonhamos o sonho de que necessitamos, dizem alguns estudiosos dessas coisas do inconsciente, esse porão mal iluminado amontoado de lembranças passadas e futuras. “Nunca será mais escuro do que a meia-noite” disse eu à Artemísia certa ocasião, procurando acalmar os temores dela, analista responsável, diante de minha ocasional depressão e aonde pode chegar um deprimido. “Isso não vale para o porão do inconsciente”, disse-me ela, recomendando cautela quando avançar por esses corredores escuros. Há os que aí se perdem e não encontram mais a porta da saída.

Tenho dado tratos no juízo para tentar descobrir o que levaria Deus a humanizar-se no seio da família de um carpinteiro. Se nem uma folha de árvore, se nem um dos cabelos masculinos despede-se da vida sem autorização divina, claro está que o Espírito Santo haveria de ter algo em mente quando, podendo escolher a casa de um político ou de um comerciante para aí botar o ovo da futura Humanidade, resolveu deixá-la naquela gruta do Saramago.

Fiquemos com a primeira hipótese. José, na sala de visitas, recebe correligionários, com os quais discute verbas para a aquisição de mulas e camelos, com os quais poderão ser atendidos doentes residentes em sítios mais distantes. E também as verbas para a aquisição e distribuição de merendas às crianças das favelas locais. “Nossa comissão nesse negócio será de tanto”, diz um dos recém-chegados. Jesus, pelo vão da porta, espia ansioso, a cara do pai.

Não. Melhor pensarmos na segunda hipótese. O pai de Jesus é um rico comerciante de tecidos. As belas roupas do filho, que vive passeando pelos arredores da cidade, entrando em casebres e limpando, com a manga de suas belas roupas, o ranho das crianças que encontra, são como os macacões dos corredores de fórmula um. Quem vê a roupa dele sabe que o fabricante é o José, aquele um que. Um dia, o jovem Jesus é repreendido pelo pai, pois não deve andar por esses lugares de má fama. “Eu já não lhe comprei título de clube de golfe? Então, que história é essa de andar com más companhias por lugares ermos? Vá dar uma volta de jet-ski, meu filho.” Além do mais, o que haverão de dizer as freqüentadoras daquela Daslu nazarena vendo os tecidos exclusivos ali vendidos, importados graças a facilidades fiscais obtidas junto ao Senado romano, sendo empregados para limpar as sujeiras dessa gente periférica?

O filho teria um acesso de santa ira, como aquela que mais tarde ele viria a ter na escadaria do templo, tiraria a roupa, jogaria no chão, e sentenciaria, solene: “Eu não preciso dessa merda para ser feliz!” E sairia à rua nu, catando pedras para restaurar uma capelinha do bairro periférico que está a merecer algum reparo físico. Talvez que ali as crianças aprendam a ler e escrever, sonha ele.

Fico, porém, com a hipótese oficial. O menino Jesus está ali pendurando portas <_st13a_personname w:st="on" productid="em batentes. Enquanto">em batentes. Enquanto o corpo trabalha, a mente não descansa. “E pensar que a casa de meu Pai tem muito mais portas do que temos aqui!” resmunga ele, enquanto tira o suor do rosto com a manga da longa túnica. “Disse alguma coisa, filho? O barulho da serra não me deixa ouvir.”

Ou então passando a bonequinha de pano embebida em verniz sobre os desenhos da madeira, que ele acaricia. “E pensar que ainda ontem isto era uma árvore!” Vejo-o empolgado por essa idéia. Ele pára o que estava fazendo, volta-se para uma assistência de fiéis imaginários, e se põe a discorrer. “A semente morre e temos a árvore; a árvore morre e temos sua presença entre nós por gerações e gerações, sempre pronta a servir, como cadeira, como mesa, como. E vós? Sois semente? Sois árvore? Pois eu vos convido a serdes árvores eternizadas na utilidade que emprestardes à vossa vida. A cadeira não existe para si. A mesa não existe para si. E vós, a quem serve a vossa existência?” José, muito compreensivo, aproxima-se dele, passa a mão nos cabelos negros encaracolados do filho. “Vá brincar um pouco, filho. O tempo das coisas sérias pode esperar”.

Estas reflexões foram inspiradas por um belo moço, rosto de apóstolo de filme bíblico, olhos verdes, e que sabe passar a mão em esculturas e os olhos em pinturas e desenhos, e emocionar-se com isso. Compartilha meu carinho pelas orquídeas. Ele me diz que estudou teologia, imaginando que esse verbo, com esse complemento, admite pretérito perfeito. Hoje ele constrói móveis de madeira, sem imaginar que uma coisa decorreu da outra.

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.