Circus

The king can do no wrong

The king can do no wrong

27/1/2012

 

"O Enem foi uma grande ideia má executada até agora."

Daniel Cara,

coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação,
segundo o jornal O Estado de São Paulo,
edição de 24/1/12

"Se Mercadante for humilde e se propor a aprender os dilemas da educação, ouvir as diferentes vertentes e somar isso à sua capacidade intelectual, acho que poderá estruturar a área."

idem, ibidem

Estou descobrindo um homem extraordinário, fosse como literato, fosse como homem público, que meus afazeres vários impediram que me fosse apresentado há mais tempo. É claro que isso é uma rematada mentira, dessas de que nos valemos frequentemente para disfarçar nossa ignorância e a capenguice de nossa proclamada cultura. Falo como representante dos autoproclamados "grandes leitores" e críticos acerbos da nossa juventude, que prefere perder tempo jogando games no celular a debruçar-se sobre os clássicos de nossa literatura. Ou interessar-se pela política. Onde isso vai parar? O fato real é que ao longo da vida aprendemos a manha de falar sobre livros que nunca tínhamos lido, como registrou Pierre Bayard (clique aqui). Daí que, uma informação aqui, uma resenha ali, um filme lá adiante sobre a obra mais conhecida do homem e eis realizada a minha fama de leitor de Graciliano Ramos, a quem só agora estou sendo apresentado pelos netos Rogério e Ricardo Filho, revisores da obra do pai Ricardo Ramos, também escritor, que traça um belo retrato do pai Graciliano, ora reeditada pela Globo sob os cuidados de minha amiga Andressa Veronesi, que me presenteou com um exemplar do livro no dia do aniversário dela. Pode?

A introdução, por sinal, pouco tem a ver com o texto e só está aí como uma espécie de mea culpa por aquilo que virá em seguida.

Já registrei anteriormente a minha convicção de que, ao longo da vida, eu e tantos outros de formação cultural ocidental temos tentado pegar o porco pela perna errada. O nosso planeta, como todo ser vivo, vai seguindo em direção ao fim, coisa aí de daqui a um bilhão de anos, os fatos sociais vão-se sucedendo em todos os cantos, as coisas não saem como nós desejávamos que saíssem e nós pomos a culpa de tudo nos fatos e não em nossa vesguice. É mais ou menos como quebrar o espelho por causa de nossa feiúra (clique aqui).

Aí vão alguns exemplos:

Um capitão de navio tenta impressionar uma bela jovem, com vistas a algum proveito futuro, e utiliza sua autoridade para mandar afastarem-se os escolhos porque quem escolhe os caminhos do seu navio é ele. Ocorre que os abrolhos são surdos e, portanto, por mais que abram os olhos e os ouvidos, não conseguem dar obediência à ordem. Resultado: um Titanic liliputiano. Aí queremos que o tal capitão haja como herói de história em quadrinhos ou de filme de aventuras. Último a sair do barco? Eu, hein? Isso é coisa para o Tom Cruise.

Todos os juízes de determinado Estado da Federação têm direito a uma vida tranquila, para poderem decidir as causas que lhe são submetidas de modo equilibrado, sem estar pressionados por problemas mundanos, como as contas que se vencem no início do mês e o trombetear da respectiva esposa, que vê os preços do supermercado subindo semana após semana. São, aliás, credores de valores correspondentes à necessária atualização dos salários em face da inflação, qualificados legalmente de "irredutíveis". O devedor, com sólidos argumentos, dispõe-se a pagar essa dívida em prestações, cujo número se perde de vista. Todos os juízes são submetidos a tal parcelamento. Todos menos um: o presidente do tribunal, que tem na mão a caneta e no cofre o dinheiro para pagar o credor mais necessitado e que, por mera coincidência, é ele mesmo. Se, dentre os necessitados, ninguém o é mais do que ele, segundo seu superior critério pessoal de julgar, qual o problema em ele requerer a si próprio que mande ele próprio pagar a si próprio o valor total do crédito, atualizado de acordo com sua visão pessoal do assunto? E os sonhadores protestam: "E o princípio legal da impessoalidade?". O presidente responde citando Getúlio Vargas, que sabia do que falava, pois tinha sido membro do Ministério Público gaúcho: "A lei? Ora a lei".

O cidadão comum tem à sua disposição o Estado como garantia de uma vida social saudável. Adoentou-se? Vá a um posto de saúde e ali será prontamente atendido em seu justo reclamo. Receberá, ao final da consulta, uma requisição e, com ela na mão, se dirigirá a uma "farmácia do povo", onde adquirirá o remédio receitado, pagando por ele valor muitíssimo inferior àquele que os laboratórios internacionais costumam cobrar, explorando a brava gente do Terceiro Mundo. Eis o olho do Big Brother defendendo os teus interesses, companheiro. O chato de plantão indaga: "Como é possível vender tal ou qual remédio a esse preço exíguo se só o reagente empregado nele custa mais do que isso?". Responde o pragmático: "Placebo também cura". Que o digam as benzedeiras.

Repetindo: o cidadão comum tem à sua disposição o Estado como garantia de uma vida social saudável. Sendo assim, sempre que alguém usa seu espaço para avançar além da fronteira ideal dele, invadindo o espaço alheio, lá está o Estado pronto para ser chamado e resolver prontamente a questão jurídica surgida. Cada cidadão tem o poder de invocar a força do Estado, poder esse conhecido nos meios mais nobres da sociedade como jus actionis ou qualquer coisa assim, pergunte aí ao Dinamarco. Como jus et obligatio sunt correlata, como também lá se diz, o exercício desse direito subjetivo traz consigo tripla obrigação: em primeiro lugar, a obrigação do Estado de dar resposta, a tempo e hora, à reclamação feita; em segundo lugar, a responsabilidade daquele que avançou além de seu particular espaço, exigindo que o prejudicado saísse de seu estado de sossego e fosse despertar o gigante adormecido; em terceiro lugar, a obrigação do reclamante de demonstrar a seriedade de seu reclamo, pois o Estado não existe para ser alvo de leviandades, onde já se viu semelhante despautério? Segue-se, pois, que, ao fim de um processo, há que apurar-se não só quem tem razão como quem paga a conta. Vencedor o autor, insta que o réu lhe indenize aquilo que despendeu não só com o custeio do processo como com o advogado que foi obrigado a contratar. Vencedor o réu, que o autor assuma tais despesas correlatamente, como punição de sua leviandade. Se o Estado não atende a tempo e hora o reclamo que lhe foi feito ou dá causa, por culpa de seu agente togado, a nulidade do processo, como uma das causas mais comuns desse retardo, que indenize as partes, descontado ao depois do salário do tal agente o valor da indenização paga.

Agora pare de rir e continue a leitura, que ainda não terminei. Tenha educação, homem.

Se você reparar bem, tanto o capitão de um navio quanto o piloto de um avião tem com o juiz isso em comum: o poder de decidir sobre a vida de umas tantas pessoas. Quem os responsabiliza quando erram? Na falsa suposição de que vivemos em uma democracia, algumas pessoas (poucas, é verdade) exigem que tanto esses "vice-reis" como outros tantos imperadorzinhos encastelados nos órgãos executivos, legislativos e judiciários sejam responsabilizados por seus erros. Santa ingenuidade, Batman. Veja-se o caso do falecido imperador da Bahia. Alguém alguma vez se atreveu a investigar a origem do seu patrimônio? E o imperador Newtão, de quem nem se fala mais nem em Brasília nem em Minas? E o primus inter pares do Maranhão e seu clã? E o grã vizir de São Paulo? Isso para não falarmos no vice-rei do grão Pará, cujo filho expressa bem o que ele pensa. (clique aqui)

O erro está justamente em fecharmos os olhos para essa realidade: "O rei nunca erra", como diziam Luiz XVI e Henrique VIII, para citarmos só dois. Alguém imagina Napoleão Bonaparte sendo convocado para explicar os saques que fazia por onde passava? Alguém imagina D. Pedro I sendo chamado para explicar o que fazia ontem à noite no leito de D. Domitila de Castro Canto e Melo? Costa-Gravas já nos mostrou, faz um bocado de tempo, o que acontece com quem leva a sério a palavra "democracia" (clique aqui). Você está disposto a correr o risco? Ou prefere continuar a ser apenas mais um dos anônimos "eleitores", que placitamos aquilo que eles decidem nos acertos de corredores sombrios com os "financiadores de campanha"?

Se este é um país em que alguém que desconhece a língua portuguesa, confundindo o advérbio "mal" com o adjetivo "mau" e demonstrando não saber conjugar o verbo "propor" chega a ser escolhido (por quem?) para coordenar uma entidade que luta (?) pelo direito à educação, que esperar dele?

Abra os olhos, homem.

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.