"Até os sádicos são capazes de ter bons argumentos para o que fazem."
Luís Fernando Veríssimo
Bill Bryson é um jornalista de 50 anos de idade. Decepcionou-se, como muitos de nós, com a leviandade com que jornais publicam notícias, mesmo que tenham conteúdo científico. Vai daí, ele imaginou o que ocorreria se a origem do cosmos fosse escrita como se se tratasse de uma série de reportagens, ensinando-nos, por exemplo, "como construir um universo".
Eis a receita:
"Um próton é uma parte infinitesimal de um átomo, que, por sua vez, é uma coisa insubstancial. Os prótons são tão pequenos que um tiquinho de tinta, como o pingo neste i, pode conter algo em torno de 500 bilhões deles, mais do que o número de segundos contidos em meio bilhão de anos. Portanto, os prótons são exageradamente microscópicos, para dizer o mínimo."
Você já sabia que o material de que vai precisar tem tudo isso de tamanho?
Há mais:
"Agora imagine que você possa (claro que isto é pura imaginação) encolher um desses prótons até um bilionésimo de seu tamanho normal, num espaço tão pequeno que, em comparação, um próton pareceria enorme. Agora compacte nesse espaço minúsculo uns trinta gramas de matéria. Ótimo. Você está pronto para iniciar um universo."
É claro que ele está falando do Big Bang, que acaba de voltar às páginas dos jornais (clique aqui). Aliás, ele mesmo esclarece que a questão não foi a tal "grande explosão", mas o que veio depois.
"Com muitos cálculos matemáticos e observando cuidadosamente o que acontece nos aceleradores de partículas, os cientistas acreditam que possam retroceder a 10-43 de segundo após o momento da criação, quando o universo ainda era tão pequeno que seria preciso um microscópico para encontrá-lo. Não precisamos desmaiar ante cada número extraordinário com que nos deparamos, mas talvez valha a pena citar um deles de tempo em tempo apenas para lembrar sua extensão inapreensível e espantosa. Desse modo, 10-43 é 0,0000000000000000000000000000000000000000001, ou seja, um décimo de milionésimo de trilionésimo de trilionésimo de trilionésimo de segundo".
Acho que foi por isso que preferi estudar latim. Como diz o Millôr, "qualquer tolice pode salvar ou arruinar uma vida quando dita em latim".
Aliás, "Qual a importância em aprender latim?" perguntam-me, a troco de nada, numa daquelas rodas de uísque que se formam no saguão do bufê, antes da chegada dos noivos. Para não fazer feio, tenho nas mãos um copo de guaraná com duas pedras de gelo, que balanço, como fazem meus colegas da rodinha. E, apenas para provocar, respondo a pergunta com outra: "De que lhe serviu o que você aprendeu nas aulas de geografia? Antes de viajar para o Exterior você vai procurar os livros do colégio ou vai a uma agência de viagem?". Pego um canapé, que mantenho na boca por mais tempo do que o necessário, para não ter de falar tão já.
Em verdade, a pergunta dele não era tão gratuita assim. O celebrante, um padre velhinho, que deve ter feito o casamento dos avós da noiva, resolveu citar Santo Agostinho, possivelmente seu colega de seminário, no original, se é que ele originalmente escreveu em latim. Ninguém naquela roda havia entendido o que o padre dissera. "E você?" indaga-me, provocativamente, um deles. Cinicamente, eu digo que o som não estava muito bom e aquele sotaque do padre, positivamente.
Confesso que tenho horror a sermões ("homilias", como se diz hoje) feitos por padres muito moços. Faz-me lembrar do tempo em que eu, recém-nomeado juiz, fui trabalhar em Araraquara, onde o Loffredo e o Geraldo Arruda eram mais conhecidos do que a estátua do Ruy Barbosa na Praça XV. Certo dia, um caboclo foi ao fórum para "falar com o juiz". Na ausência daqueles dois, atendi o queixoso e dei-lhe a orientação que me pareceu a mais adequada. Ele certamente não concordou com ela. Ao passar pela porta da sala, para sair, chamou o porteiro lá fora e indagou: "Aquele rapaz é juiz mesmo ou está gozando da minha cara?".
E tenho birra da linguagem empolada e o tom teatral que alguns sermonistas empregam em suas homilias, como se ainda não tivesse sido inventado o microfone. Aqui ao lado há uma igreja que tem telas de plasma espalhadas pelos quatro cantos, com uma espécie de home theater eclesiástico. Algo muito diferente dos velhos tempos do púlpito (que era um "supedâneo" um pouco maior, palavra de que os advogados se apropriaram para designar os fundamentos do seu arrazoado).
Meu amigo Ilário, que só não é bispo por um cochilo do Espírito Santo, algo que não é privilégio só do bom Homero ("Quandoque bonus dormitat Homerus", dizem elegantemente os advogados quando desejam censurar alguma besteira processual feita pelo juiz), como ex-diretor de seminário, sabe do que estou falando. Saber usar as palavras adequadas diante de um público heterogêneo como aquele que assiste a uma missa é privilégio de poucos, reconheço. Mas, num casamento, aparentemente a diferença cultural entre os presentes não é tanta, o que supõe que fazer aquela sintonia fina não é tão difícil assim.
E falo com conhecimento de causa, pois já tive meus tempos de pregador religioso, quando imperava o bonachão do João XXIII. Eu e o Jô Soares, que, de camisolão branco, lotava a igreja de São Gabriel, ali no Itaim Bibi, depois de ter saído de um fim de semana de retiro espiritual numa casa da rua Marcondésia, lá pelos lados do Aeroporto. Ele distribuía comunhão, ao lado do pároco. A fila dele avançava pela calçada, enquanto o padre ficava ali esperando que alguma velhinha se lembrasse de que o corpo de Cristo era o mesmo nas duas filas. Ou não via televisão.
Eu, de mim, acostumado ao juridiquês, esforçava-me para moderar na terminologia técnica. Na primeira vez em que falei do casamento, não pude escapar do "remedium concupiscentiae". Fiz um comentário bem humorado sobre o casamento, encarado pela Igreja como remédio, comparando-o ao óleo de rícino, cada qual destinado a um tipo de doença. Houve muita risada, eu me entusiasmei (enthousiasmos = Deus está comigo) e o controlador do tempo fazendo-me sinal para encerrar aquela arenga. Como professor, encerrada a palestra, indaguei dos presentes se havia alguma dúvida no ar. Uma senhora, pessoa simples, indagou-me se eu poderia explicar o que é "prole", pois eu havia dito que uma das finalidades do sacramento do matrimônio era auxiliar o casal a cuidar da prole e ninguém ali sabia o que era aquilo. Obtida a licença devida, passei a conhecer e prover os embargos declaratórios.
O tempo passou, os cientistas passaram a procurar uma tal "partícula de Deus" (clique aqui) e eu me recolhi à minha ignorância, até porque, em relação à tal partícula, deveremos utilizar do mesmo ceticismo de alguns teólogos: quando você se convencer de que encontrou Deus, desconfie.
Aliás, um dos cientistas jogou um balde de água gelada nos agnósticos mais esperançosos. Segundo ele, o tal "bóson de Higgs", o que quer que isso seja, permitirá conhecer 4% (quatro por cento) daquilo tudo que os cientistas ainda precisam conhecer sobre o Universo.
Fico aqui me perguntando quanto será 4% de algo infinito.