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Nos tempos do peculato

Nos tempos do peculato

4/11/2011

 

"A rigor, Lei e Direito não são a mesma coisa. Ele geralmente aparece em virtude do que diz a lei. O Direito é a base, é o padrão de medida, é o critério graças ao qual a decisão justa aparece".

Franz Neumann, citando Santo Tomás de Aquino

"A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência".

Constituição Federal do Brasil, artigo 37

No tempo em que os Promotores Públicos lecionavam Direito Penal, aprendia-se que o crime de peculato caracteriza-se pelo fato de o dinheiro público ir parar indevidamente no bolso do seu administrador ou de alguém a ele ligado. Nos primórdios da civilização, diziam eles, o comércio era realizado à base do escambo. Uso essa palavra, em lugar de seu sinônimo troca, para mostrar como isso é velho. Quem produzia grãos trocava o seu excesso com quem criava gado. Com o tempo, o gado (pecus) passou a ser considerado moeda de troca, tanto no que diz com o fornecimento de bens quanto de serviços. Quer uma saca de arroz? Então passe para cá esse cabritinho. Quer uma dentadura? Que tal me dar um leitãozinho? Até que se inventasse a moeda, as carteiras eram, na verdade, esses carrinhos de mão em que hoje transportamos tijolos. Daí que a palavra pecúnia foi inventada para referir-se a algo que representa um valor na hora da troca. Para saber a quantos quilos de feijão corresponde uma galinha era preciso usar um padrão, sob pena de não chegar-se a um acordo. Assim, o tal escambo foi substituído trocando-se a coisa a comprar por algo que representava o preço pedido: a pecúnia.

Dificilmente nos dias de hoje relacionamos a atividade agropecuária com a atividade bancária, muito embora os banqueiros gostem de falar em atividade pecuniária. Assim é a vida.

Diziam então os Promotores em suas aulas que daí surgiu o crime de peculato, como sendo o furtum pecuniae publicae vel fiscalis. Muito antes de os nossos lulistas assumirem o poder, com a sofreguidão que vemos todos os dias nas páginas policiais dos jornais, já se falava em "Peculato por apropriação" ("apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse"), em "Peculato por desvio" ("desviar o funcionário público dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse"), em "Peculato-furto" ("se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se da facilidade que lhe proporciona sua condição de funcionário"), em "Peculato-estelionato" ("apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, que recebeu por erro de outrem").

O avanço tecnológico trouxe consigo o "Peculato eletrônico" ("alterar dados eletrônicos existentes em repartição pública para a obtenção de vantagem indevida para si ou para outrem").

É claro que tal conduta somente será punível se o agente público agir de má-fé. Entretanto, mesmo que ele seja apenas um funcionário descuidado, estaremos diante de modalidade mais branda, o "Estelionato culposo", pois ele agiu com imprudência, com negligência ou com imperícia. Esse não é o caso de nossos políticos, positivamente.

Quem já não viu na casa de um funcionário público papéis com o timbre da repartição pública onde ele trabalha sendo utilizado pelo filho dele para fazer seus rascunhos? Veja se isso não se enquadra na definição de peculato. Quem já não viu funcionário público ou seu parente a utilizar automóvel oficial para locomover-se no exercício de atividade particular, como fazer uma prosaica compra num supermercado? A utilização do carro em si tem o apelido de "Peculato de uso", que algumas legislações acham bobagem punir como crime. Mas, e o combustível gasto na viagem?

Entretanto, a julgar pelo que tem ocorrido em nosso país nos anos mais recentes, parece que os nossos Promotores Públicos atuais formam seus conceitos jurídicos pelo que escrevem os jornalistas, que só sabem falar em "corrupção" e "formação de quadrilha". Quando foi a última vez que você viu a palavra peculato escrita em página de jornal? E exemplos não faltam: certa ministra foi surpreendida comprando chiclete ou camisinha com a utilização de dinheiro público (o tal "cartão funcional") ao passar pelo free shop do aeroporto. Certo ministro pagou a conta do motel com cartão equivalente. E por aí vai. Isso para não falar na praga das ONGs, que, muito embora digam no nome serem "não governamentais", esbanjam dinheiro público a mais não poder. Considerando-se que para a lei é coautor desse tipo de crime mesmo quem não seja funcionário público, bastando que se associe a um servidor público, bem como contempla a possibilidade de "despersonalização da pessoa jurídica", quando demonstrado que ela é mera empresa de fachada (como aquela de certo ex-ministro que é composta de dois únicos sócios: ele e a mulher, sendo que ela, além de só conhecer as atividades domésticas, detém simbólico 1% do capital social), é justo indagar: que aconteceu a todos esses? Que diz a isso tudo o Ministério Público?

A revista Veja calcula que o montante da pecúnia desviada no Brasil pelos peculatários, nos últimos dez anos, é algo digno de um Guinness Book: R$ 720.000.000.000,00. Só ano passado teriam ido para o bolso dos peculatários cerca de R$ 85.000.000.000,00, o que mostraria que a tal "espanada nos ministérios", expressão inventada pelos correligionários da presidenta, é tão somente um trocadilho.

A bola da vez tem o nome respeitável de um cantor da minha juventude (e da juventude do Caetano Veloso, cuja irmã, por insistência dele, tem o nome de uma canção cantada pelo Orlando Silva, o da nossa juventude), tendo contra si a palavra de um policial cujo nome corresponde a outro cantor de tempos passados, sucessor do "rei da voz". Uma das inúmeras trampolinagens atribuídas a Sua Excelência foi destinar verba oficial para ninguém menos do que sua esposa, disfarçada, como é a regra, em ONG.

Segundo relatam os jornais, fundada pela tal atriz há pouco mais de seis meses, a empresa Hermana Filmes foi contratada pela ONG Via BR, que havia recebido vultosa verba do Ministério cujo titular é o marido da moça, para um trabalho de "assessoria". Ao que saibamos, a única experiência que tem Anna Cristina Lemos Petta, uma obscura atriz de quem certamente você jamais ouviu falar, decorre, ao que tudo indica, do fato de ser casada com o Orlando Silva ministro. Caso você se interesse pelo "pensamento crítico" daquela "ativista política" e seu irmão, não se acanhe (clique aqui). Descoberta a má aplicação do dinheiro público, até porque a maioria dessas ONGs limitam-se a prestar assessorias para coisa nenhuma e fazer projetos de obras que não saem do papel, a mulher do ministro correu para devolver o dinheiro. Só faltou dizer que míseros trocados não justificam tanta celeuma.

É possível que mais este caso de peculato seja posto de lado, sob o argumento de que, depois de descoberta a maracutaia, o dinheiro foi devolvido.

Informo a quem se interessar pelo assunto que os Promotores Públicos daquele tempo falavam, de fato, numa tal "ponte de ouro", que a lei penal colocava, e ainda coloca, à disposição dos criminosos, para que retomem o rumo perdido. Por exemplo: alguém saca da arma de fogo e faz dois disparos contra seu desafeto, errando, porém, o alvo. Tentativa de morte, já se vê. Podendo efetuar novos disparos, o agente acha melhor por o revólver no bolso e voltar para casa. Dirá então a lei que, como ele desistiu voluntariamente de consumar o crime de homicídio, essa desistência deve ser levada em conta, para desconsiderar a tentativa feita por ele.

Outro caso: um professor de faculdade vai à biblioteca da faculdade e, como não é raro, leva um dos livros para casa, sem proceder ao devido registro de saída. Crime contra o patrimônio. Antes, porém, que a direção da faculdade tome conhecimento do fato, ele, espontaneamente, recoloca o livro na estante de onde o havia surrupiado. Assunto encerrado.

No caso do peculato, há uma regra especial: "O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais". Nem o direito à moleza da anedótica "prisão domiciliar", que tanto nos envergonha perante os penalistas do Exterior, os peculatários, em princípio, têm.

Há mais: também o chamado "princípio da bagatela" não lhes assiste, pois, como afirmou o STJ no Recurso Especial 1.060.082-PR, "inaplicável o princípio da bagatela ao peculato eis que tal crime atinge não só a esfera patrimonial, mas também a probidade administrativa". Além disso, "a reparação do dano antes do recebimento da denúncia não torna atípica a prática descrita na peça acusatória, constituindo tal circunstância apenas causa de diminuição da pena".

Não sei em que vão dar todos esses escândalos que estamos cansados de ver no noticiário. Sei que, segundo me contou um líbio muito bem informado, os rapazes que executaram sumariamente o Kadafi teriam sido levados a isso, segundo seu advogado, porque descobriram no bolso da roupa do ditador uma passagem aérea para o Brasil. "Vamos que ele chegasse a tempo ao aeroporto" dirá, segundo meu bem informado amigo, o advogado da tribuna do tribunal, brandindo certo exemplar do Corriere Della Sera (clique aqui).

Será absolvição na certa.

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.