"As crianças brincam com bonecas, cavalinho de madeira ou pipa a fim de familiarizarem-se com as leis físicas do universo e com os atos que realizarão um dia. Da mesma forma, ler ficção significa jogar um jogo através do qual damos sentido à infinidade de coisas que acontecem, estão acontecendo ou vão acontecer no mundo real. Ao lermos uma narrativa, fugimos da ansiedade que nos assalta quando tentamos dizer algo de verdadeiro a respeito do mundo. Essa é a função consoladora da narrativa, a razão pela qual as pessoas contam histórias desde o início dos tempos. E sempre foi a função suprema do mito encontrar uma forma no tumulto da experiência humana."
Umberto Eco
Seis passeios pelos bosques da ficção
"O desembargador paulista José Renato Nalini, em artigo publicado no Estadão de hoje, faz um alerta : juiz tem de estudar. Nalini ressalta que, além da resolução do CNJ que alterou, de maneira substancial, a forma de recrutamento dos juízes, os novos tempos impõem a quem queira bem cumprir o seu dever de solucionar conflitos a obrigação do estudo permanente."
Migalhas,
5/9/2011
Ele era juiz e auxiliava no Tribunal de Justiça. Naquele dia o carro do tribunal foi ao colégio buscar o garoto, que o pai, no intervalo da sessão, encontrou na sala do lanche, atulhada de togas esvoaçantes. "E então, como foi nas provas?" indaga o pai em voz alta. "A de matemática deu pra encarar", diz o garoto entre uma mastigada e outra, "mas na de português eu acho que se fudi".
Eu nunca soube o nome do garoto, hoje certamente um homem, talvez casado e pai de filhos. Seu pai, meu amigo, já faleceu, o que o impede de manifestar-se sobre o fato, testemunhado por um número razoável de pessoas, todas elas dignas de algum crédito. Foi juiz no foro de Santo Amaro e deixou saudades quando foi dali alçado para o tribunal de mesmo nome. "Nem dois juízes produzem agora tanto quanto o doutor Ortiz produzia" suspirou-me um dos advogados que ali mourejava, como dizia. "A sala dele era só livros!"
Que livros leria o filho dele naquele tempo?
Outro juiz relatou que seu filho havia perguntado à professora o que era aquele negócio de "clava forte da Justiça", quando ela tentou destrinçar para a classe aquele amontoado de hipérbatos chamado Hino Nacional Brasileiro. Ele havia feito a pergunta à professora e ela sugeriu que ele perguntasse ao pai, que deve entender do assunto.
E "fúlgidos"? e "florão"? e "impávido"? e "lábaro"?
"Chega, chega, chega. Procure ali no 'pai dos burros' que ele tem mais tempo do que eu", disfarçou ele, apontando a estante de livros, onde o Aulete fazia dupla com o Aurélio. "Pesquisa é isso. Aprenda".
O problema é que no grupo de magistrados que ria dessas patacoadas havia um que tinha sido professor de português, talvez o Biasotti, que não perdeu a ensancha: "Se é para discretear sobre hinos, qual deles fala em 'Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós! Das lutas, na tempestade, dá que ouçamos tua voz?'" Silêncio total.
"Mas esse 'dá que ouçamos tua voz' é dose", limitou-se a dizer um deles, por sinal dos mais novos. "Duvido que alguém no Brasil, nos últimos 100 anos, se tenha utilizado do verbo dar no sentido de permitir, conceder, como diz o tal hino" arriscou alguém, bem mais idoso.
"Isso para não falar em 'um pálio de luz desdobrado', 'vem remir dos mais torpes labéus', 'nosso augusto estandarte que brilha ovante', 'verdes louros colhamos louçãos'" tornou o ex-professor.
"Pergunte o significado disso numa prova para juiz e veja se alguém passa" justificou-se o mais novo.
"Q vc esperava da s/ gerç?" escreveu um deles num guardanapo de papel, provocando gargalhadas de todos. O mais velho não teve dúvidas: subiu na mesa e recitou, como se ainda estivesse na Faculdade.
"Oh! Bendito o que semeia
livros. Livros a mancheia!
E manda o povo pensar.
O livro, caindo n’alma,
é gérmen, que faz a palma,
é chuva, que faz o mar."
"Mancheia era coisa de minha avó, quando enchíamos a boca de comida, para voltar logo a brincar. Nada de mancheias! Nada de mancheias! Quem conhece isso hoje?".
"Quem lê os clássicos" retruca o eterno professor.
"Curioso que mão-cheia é algo mais adequado do que a palavra punhado, para designar uma porção de algo que cabe na mão, mas cedeu espaço a esta. A palavra punho nos dá outra ideia. Punhal, por exemplo, é uma espada pequena, que se consegue segurar com uma só das mãos. Com o punho fechado".
"Já punheta também se refere a algo que se faz com a mão fechada" diz o mais jovem, para horror dos mais velhos, que fazem ar de reprovação, olhando de soslaio para os lados.
"Ele tem razão", interfere um juiz de meia-idade, certamente habituado ao Juízo de Conciliação. "Puñeta, na Argentina, é o mesmo que soco. Algo que se faz com a mão fechada. Puñetazo, então, é coisa de boxeur".
"Vocês ainda perdem tempo lendo livros, quando até o Supremo e o CNJ já eliminaram o papel? Abra o site do STJ, vá ao tópico da jurisprudência e terá acórdãos saindo do forno. Qual revista concorre com isso?" diz o benjamim do grupo.
"Engano seu" diz-lhe um colega. "Ocasionalmente tenho em mãos uma dessas revistas, das mais famosas, já centenária. Ela consegue publicar a íntegra de acórdãos relativos a julgamentos ocorridos há três meses. Com notas de esclarecimento, indicação de legislação e de doutrina" completa. "Se facilitar, a mais recente tem trabalho de doutrina assinado por mim".
"O livro morreu, o disco morreu, o samba morreu, o jazz morreu, o tango morreu, o cinema e o teatro morreram. No entanto, acabo de ganhar um CD onde uma belíssima violinista chinesa toca Astor Piazzolla em ritmo de bossa-nova (clique aqui). Três cadáveres num presente só"! Mais risos.
"E os operadores do Direito que se julgam moderninhos mas que não aceitam julgamento virtual (clique aqui)? Coitadinhos, acham que todos os juízes que participam fisicamente de um julgamento sabem o que estão julgando. 'Eu também', 'eu também', 'eu também' e depois lá vêm embargos de declaração para que o relator diga o que se havia esquecido de dizer e nenhum colega havia percebido. Já vi revisor pedir, em público, esclarecimentos do relator sobre matéria dos autos. 'Mas você não teve vista dos autos?', indaguei-lhe. Gentilmente ele me fez um gesto que, se eu fosse piloto norte-americano, teria sido autorização para levantar voo" diz um dos mais circunspectos.
"O tempo ruge" sentenciou um deles, "e ainda tenho de dar uma espiada nos votos feitos pelos meus auxiliares", completou, com evidente ironia. "O Grande Irmão está de olho em nós". Levantou-se, ergueu o copo de chope e saudou: "À modernidade (clique aqui)"!