Circus

Deus existe?

26/8/2011

 

"Só se conhece a Deus quando se reconhece que Deus vai muito além de tudo o que se possa dizer e pensar acerca de Deus."

Santo Tomás de Aquino,

Suma aos Gentios,

Livro I, capítulo 3

"MPF/SP aciona Rede TV! e igreja por ofender ateus."

Migalhas, 23.8.11

No dia 21 de Fevereiro de 2000, no Teatro Quirino, em Roma, travou-se interessante debate entre o cardeal Joseph Ratzinger, que depois se tornaria o Papa Bento XVI, e o filósofo Paolo Flores D’Arcais, confessadamente ateu, sobre um tema instigante: a fé. Cada um expôs os motivos pelos quais crê ou não crê na imortalidade da alma. Dadas as reconhecidas credenciais de ambos, é de registrar que aquilo que não foi trazido por ambos ao debate certamente não tem maior importância como argumento, se é que esse assunto depende de argumentação. O debate teve como mediador o jornalista Gad Lerner, apropriadamente escolhido não só por sua cultura como por ser, de certa forma, equidistante de ambos, pois é judeu.

O próprio mediador deixou consignada sua surpresa diante da lhaneza do comportamento do cardeal durante a longa entrevista, pois é ele considerado um homem radical e intolerante, como pode testemunhar o nosso Leonardo Boff, que se afastou do sacerdócio em razão de atritos com o prefeito da Congregação para da Fé, cargo em cujo exercício chegou a censurar o Concílio Vaticano II, um acontecimento providencial e necessário, que, entretanto, sempre a seu ver, foi além do que dele se esperava.

Na ocasião do debate referido, que já pode ser lido em português, graças à Editora Planeta, veio à baila, como não poderia deixar de ser, a conhecida alternativa proposta pelo matemático Blaise Pascal. Segundo ele, cada um de nós é livre para apostar na existência da imortalidade da alma ou em sua inexistência. Se apostarmos na imortalidade e tudo terminar com a morte, que teremos perdido por termos vivido uma vida de bom relacionamento com o próximo, buscando viver a "regra de ouro" (fazer pelo próximo aquilo que eu quero que ele faça por mim) ou, pelo menos, a "regra de prata" (não fazer pelo próximo aquilo que eu não gostaria que ele fizesse contra mim)? Ao reverso, se eu optar pela não-crença e viver minha vida sem essas preocupações éticas, que acontecerá após minha morte se houver, de fato, a imortalidade?

Flores D’Arcais nega valor a tal raciocínio, que, a seu ver, não trata da fé propriamente dita, mas de um jogo oportunista e interesseiro.

Isso me lembra a ocasião em que um padre, excelente orador, referiu-se por três vezes, em sua homilia, à vida eterna. Insistiu ele em que deveríamos fazer o bem do lado de cá para termos tais ou quais recompensas do lado de lá, as tais brasas sobre a cabeça de que fala São Paulo na Carta aos Romanos, 12, 12. Após a missa fui educadamente indagar-lhe se esse tipo de argumentação não lembra uma caderneta de poupança: aplico aqui e recebo lá, com juros e correção monetária. Sugeri-lhe então, atrevidamente, que os padres deveriam ensinar que a virtude vale por si mesma. "E as pessoas comuns entenderiam isso?" Se os senhores ensinarem, certamente entenderão, respondi.

Se meu filho me beija não tanto porque me ama, mas porque quer ganhar uma bicicleta no aniversário, qual o valor desse beijo? Hoje reconheço que as coisas não são assim tão absolutas, como me mostrou o Paulo Gaudêncio. Ele era aluno de um colégio religioso, talvez o São Luiz, e, quando na fila da comunhão, teve uma crise de fé: "Eu estou na fila porque creio? Porque quero ser presidente do grêmio estudantil? Ou porque estou de olho numa menina de família catolicíssima?" Resolveu procurar o padre orientador espiritual, que não teve dificuldade em lhe dar a resposta: "Pelos três motivos".

Voltando ao tal debate, o cardeal católico afirmara, de início, que não pode haver conflito entre fé e razão. A razão, cedo ou tarde, nos leva a descobrir a fé. O filósofo ateu deu-lhe o troco: "Como entender, então, racionalmente, a ressurreição da carne? Minha razão entende que esse é um fenômeno absolutamente contrário ao normal acontecer das coisas." Ratzinger acabou, humildemente, dando-lhe razão. "A fé cristã apela à razão, mas também vai além das coisas evidentes para a razão."

Quando procurei falar da fé, no livro Ninguém sofre porque quer, recentemente reeditado pelo Instituto Memória, usei de uma comparação, que aqui repito, contando uma pequena história.

Havia um trapezista especializado em circular com seu veículo sobre um cabo de aço. Um dia ele estendeu esse cabo ao longo de um vale profundo, com uma ponta fixada do lado de cá e a outra do lado de lá (as pessoas de minha idade seguramente se recordam de uma família de alemães que faziam apresentações dessas cruzando o largo do Anhangabaú, a dezenas de metros de altura, para mal-estar de muita gente, dentre as quais eu). Feito isso, indagou de uma pessoa que estava a seu lado: "Você crê que eu seja capaz de ir até lá e voltar sobre esse fio de aço, pedalando esta bicicleta?". "Só acredito vendo", respondeu o cético, que talvez se chamasse Tomé. O ciclista foi até lá, virou a bicicleta e voltou. "Agora que você viu, acredita que eu seja capaz de ir até lá nesta bicicleta sobre este cabo de aço?", tornou a perguntar o ciclista. "Agora eu acredito", respondeu o espectador. "Então suba na garupa e venha comigo", desafiou o outro.

Essa parece, de fato, ser a grande diferença entre o simples acreditar, ter crença, e dispor-se a subir na garupa, entregando seu corpo e sua alma Àquele em quem se tem fé.

Recordemos o descrente Umberto Eco, no livro Em que crêem os que não crêem?:

"Não gostaria que se instaurasse uma oposição seca entre quem acredita em Deus transcendente e quem não crê em nenhum princípio supra-individual. Gostaria de recordar que era dedicada justamente à Ética o grande livro de Spinoza que começa com a definição de Deus como causa de si mesmo. Salvo que esta divindade spinozana, bem o sabemos, não é nem transcendente nem pessoal: mesmo assim, também da visão de uma grande e única substância cósmica, na qual um dia seremos todos reabsorvidos, pode emergir uma visão da tolerância e da benevolência, exatamente porque é no equilíbrio e na harmonia da substância única que estamos todos interessados. E o estamos porque de alguma maneira acreditamos que é impossível que essa substância não tenha sido enriquecida ou deformada por aquilo que, durante milênios, estivemos fazendo. Assim, ousarei dizer (não é uma hipótese metafísica, é apenas uma tímida concessão à esperança que jamais nos abandona) que mesmo em tal perspectiva poderíamos recolocar o problema de alguma vida depois da morte."

E o crente Carlo Maria Martini, no mesmo livro:

"Reconheço que existem muitas pessoas que agem de maneira eticamente correta e que muitas vezes realizam atos de elevado altruísmo sem ter ou dar-se conta de ter um fundamento transcendente para seu agir, sem ter como referência nem um Deus criador, nem o anúncio do Reino de Deus com suas consequências éticas, nem a morte, a ressurreição de Jesus Cristo e o dom do Espírito Santo, nem sua promessa de vida eterna. Com efeito, é deste realismo que eu deduzo a força daquelas convicções éticas que gostaria, em minha debilidade, que fosse sempre a luz e a força do meu agir. Mas quem não faz referência a esses ou a princípios análogos, onde encontra a luz e a força para operar o bem não apenas em circunstâncias fáceis, mas também naquelas que colocam as forças humanas à prova até seu limite, sobretudo naquelas que as colocam diante da própria morte? Por que o altruísmo, a sinceridade, o respeito pelos outros, o perdão dos inimigos são sempre um bem e devem ser preferidos, mesmo ao preço da própria vida, a comportamentos contrários? E como fazer para decidir com certeza, nos casos concretos, o que é altruísmo e o que não é? E se não há uma grande justificativa última e sempre válida para tais comportamentos, como é praticamente impossível que estes sejam sempre prevalentes, que sejam sempre vencedores? Se mesmo aqueles que dispõem de argumentos fortes para um comportamento ético têm dificuldades para agir em conformidade com eles, o que dizer daqueles que só dispõem de argumento fracos, incertos e vacilantes?"

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.