À Renata Roman Jimenez e à memória de nosso contemporâneo Mário Chamie
Dizia o colega Eça de Queirós, "bacharel como toda a gente", que a poesia destina-se a maquiar a vida. Sobre a crueza da realidade que se ponha a suavidade da poesia. Ou, "sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia". Escolha.
Já o coleguinha Vinicius dizia que o amor é efêmero, o que ele mesmo provou deixando meia dúzia de viúvas. Só que, em lugar de dizer isso cruamente, lançou mão de um manto diáfano sob a forma de um circunlóquio, o que quer que isso signifique:
"De tudo ao meu amor serei atento
antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
que, mesmo em face do maior encanto,
dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
e, em seu louvor, hei de espalhar meu canto
e rir meu riso e derramar meu pranto
ao seu pesar ou seu contentamento.
E, assim, quando mais tarde me procure
quem sabe a morte, angústia de quem vive;
quem sabe a solidão, fim de quem ama,
eu possa me dizer do amor que tive:
que não seja imortal, posto que é chama,
mas que seja infinito enquanto dure."
Donde a indagação do filho do Érico que encima estas mal traçadas.
Pois o Fernando, por uma de suas várias Pessoas, desmascara-nos todos, taxando-nos de mentirosos, que outra coisa não são aqueles que fingem. Se errar é fazer, por descuido, juízo destoante da realidade a que pretendeu referir-se quem o fez, mentir é falsear a verdade dolosamente. E fingir, que será senão mentir sem palavras? Os biógrafos de Fernando Pessoa não se demoram num assunto-tabu: a preferência sexual do poeta. Não que o assunto seja relevante, mas, ao dizer que o poeta é um fingidor (clique aqui), estaria ele falando de si? Cita-se, a propósito, a correspondência mantida com Ofélia Queiroz, que, entretanto, sugere a ocorrência de um cansativo amor platônico entre ambos.
Ao contrário do nosso Carlos Drummond de Andrade que, além de tudo o que escreveu em vida, deixou para a posteridade o livro O Amor Natural, que é considerado o livro mais ousado do poeta. Tanto que ele exigiu que tal livro só fosse publicado após sua morte, pois, tratando do amor com uma linguagem mais ousada, temeu que fosse considerado pornográfico. Aliás, durante 35 anos teve uma amante, Lygia Fernandes, 25 anos mais nova do que ele e que estava a seu lado quando ele morreu, 12 dias depois da partida de outro amor de sua vida: a filha Maria Julieta (clique aqui).
Pois houve quem lhe puxasse, atrevidamente, as excelsas orelhas ao Fernando, diante do que está dito no Livro do Desassossego, do seu heterônomo Bernardo Soares: "Tenho do amor profundo e do uso proveitoso dele um conceito superficial e decorativo."
"Esse poeta é um impostor!
Com que cinismo nos mente
a fazer versos de amor,
coisa que ele não sente.
Ó poeta enganador,
com semblante assim tão triste,
como então falar de amor
se isso jamais sentiste?
Se máquina tens no peito
– comboio fora do trilho –
teu caso não tem mais jeito,
por mais que esbanjes teu brilho.
Ó guardador de cordeiro,
ó meu prezado Fernando,
disse o vate brasileiro (clique aqui)
que amar se aprende é amando."
E o carioca de olhos verdes? Como não falar dele? Houve tempo em que, para esconder a crueza da realidade, ele nos mandava simplesmente jogar bosta na Geni (clique aqui). Não é que o sessentão resolveu escandalizar outra vez, inventando uma mulher sem orifício, fosse ela estátua ou santa? E tome bordoada (clique aqui)! Que, sábio a mais não poder, ele previu no próprio poema.
"Hoje topei com alguns conhecidos meus.
Me dão bom dia cheios de carinho,
dizem pra eu ter muita luz, ficar com Deus.
Eles têm pena de eu viver sozinho.
Hoje a cidade acordou toda em contramão.
Homens com raiva, buzinas, sirenes, estardalhaço.
De volta a casa, na rua recolhi um cão,
que de hora em hora me arranca um pedaço.
Hoje pensei em ter religião,
de alguma ovelha, talvez, fazer sacrifício.
Por uma estátua ter adoração,
amar uma mulher sem orifício.
Hoje, afinal, conheci o amor.
E era o amor uma obscura trama.
Não bato nela, não bato,
nem com uma flor.
Mas, se ela chora,
o desejo me inflama.
Hoje o inimigo feliz veio me espreitar.
Armou tocaia lá na curva do rio,
Trouxe um porrete
e um porreta pode me quebrar,
mas eu não quebro não,
porque sou macio, viu?"
E que dizia o Mário, nosso respeitadíssimo veterano, que saía quando nós entrávamos?
"Cava,
então descansa.
Enxada; fio de corte corre o braço
de cima
e marca: mês, mês de sonda.
Cova.
Joga,
então não pensa.
Semente; grão de poda larga a palma
de lado
e seca; rês, rês de malha.
Cava.
Calca
e não relembra.
Demência; mão de louco planta o vau
de perto
e talha: três, três de paus.
Cova.
Molha
e não dispensa.
Adubo; pó de esterco mancha o rego
de longo
e forma: nó, nó de resmo.
Joga.
Troca,
então condena.
Contrato; quê de paga perde o ganho
de hora
e troça: mais, mais de ano.
Calca.
Cova:
e não se espanta.
Plantio; fé e safra sofre o homem
de morte
e morre: rês, rés de fome
cava."