A raiz grega das palavras crise e crítica é a mesma e diz com a nossa palavra julgamento. Só é possível sairmos de uma crise, qualquer que seja ela, se julgarmos o que há a favor e contra o status quo. Como juiz de família, quando era procurado por um casal desejoso de desquitar-se, como então se dizia, eu entregava a cada um uma prancheta com uma folha e uma caneta. Mandava-os sentarem-se em meu gabinete e responderem a duas indagações simples: "Indique três defeitos seus. Indique duas qualidades do seu cônjuge." Uma senhora expressou o que certamente todos gostariam de dizer: "Não pode ser o contrário?" Quem gosta de ver os próprios defeitos? Resultado: a culpa sempre é do outro. A crise pessoal geralmente leva a um mau julgamento da situação, pois ele certamente estará viciado pelo subjetivismo. Sorte dos psicoterapeutas.
Quero, no entanto, falar de coisa mais trivial: a crítica cinematográfica, que tanto me atraía na juventude, talvez porque naquela ocasião tivéssemos críticos dignos do nome e não meros palpiteiros, como é regra hoje em dia, ressalvadas as exceções de sempre. Você consulta no fim de semana a "opinião" dos entendidos e nota que um mesmo filme, não poucas vezes, é considerado bom por alguns e péssimo por outros. O mesmo se dá quando o assunto é "os melhores" (clique aqui). Já ouviu falar em Maria Gladys? E em Nani Moretti? E em Chiquinho Brandão? Puro subjetivismo: gosto porque gosto; não gosto porque não gosto. Aliás, depois que Avatar foi indicado para melhor filme do ano, confundindo-se sua inegável qualidade técnica com o conjunto de atributos que se espera de um "bom filme", nem sei o que dizer.
Vi recentemente Querido John (clique aqui), que cuida de um caso de amor interrompido pela guerra, dirigido pelo sueco Lasse Hallström. É claro que o filme não é mais um "filme de guerra". Ela aparece ali da mesma forma que aparece a doença deste ou daquele personagem. A vida não é assim? Mas é, a meu sentir, um filme muito bem dirigido, com três grandes interpretações e um roteiro bastante razoável. Um crítico de jornal, porém, achou tudo aquilo um romance açucarado, com interpretações pífias e um arrastamento insuportável. Além do mais, taxou-o de militarista, sem explicar os motivos para tal qualificação. Talvez o tal "crítico" esperasse mais sexo e mais violência, vá a gente saber.
Como crítico de cinema do jornalzinho do ginásio eu fazia o que muitos desses críticos improvisados fazem: cortava e colava as opiniões dos "entendidos" e alinhavava tudo com um estilo pretensamente meu. Algo não muito diferente do cut and drag de hoje. Admirava o Marino Neto, que apresentava um programa excelente na rádio São Paulo sobre cinema, com quem me correspondia amiúde. Certa ocasião, para provocá-lo, escrevi-lhe uma carta atrevidamente multilíngue (português, espanhol, italiano, latim, inglês e francês) que ele leu no ar e me respondeu em grego e russo, confessadamente auxiliado por auxiliares.
Pois nas suas críticas, ele não se limitava ao "gostei" e "não gostei". Falava do roteiro, da trilha musical, da fotografia e de tudo o mais que compõe um filme. E eu ouvindo aquilo tudo, sem entender muita coisa.
Encantei-me naquela ocasião com Casablanca, um filme que aborda um tema nada incomum: os efeitos da guerra sobre a vida de dois amantes.
O filme hoje é considerado um clássico e disputa com o Cidadão Kane, do Orson Welles, o título de melhor filme de todos os tempos. Pensar que algum outro "filme de guerra" possa ultrapassá-lo é, para a maioria dos críticos, eu modestamente aí incluído, uma rematada tolice.
O personagem central é Rick (Richard, para os íntimos, especialmente quando o íntimo é Ilsa, uma namorada que ficara em Paris sem dar a ele maiores informações a não ser um bilhete de despedida que se desmancha sob a chuva, e que agora retorna de braços com um bonitão idealista), um norte-americano misterioso, com folha corrida prestada a boas causas, dono de um bar onde gira a vida social da cidade famosa. Está cercado de serviçais fidelíssimos, um dos quais o pianista Sam, interpretado pelo cantor Dooley Wilson, que teria recebido pelo papel um cachê quase simbólico.
Haverá quem desconheça a cena em que Sam canta, a pedido de Ilsa, a música célebre? Aliás, para os menos informados ela teria dito ao pianista "Play it again, Sam", frase que jamais é dita no filme (clique aqui), como o DVD permite conferir.
O que pouca gente sabe é que o filme quase não foi concluído, tais e tantos foram os incidentes ocorridos durante a filmagem. Divergências entre o diretor, Michael Curtiz, e sua equipe atrasavam as filmagens, valendo notar que a cena que se passa aos pés do Arco do Triunfo saiu sem som local, sendo necessária uma gambiarra para não ir para o lixo. A interpretação de Ingrid Bergman foi elogiadíssima. O que poucos sabiam é que aquele ar atarantado da personagem, dividida entre dois amores, se devia ao fato de ela não saber bem qual era seu papel na história, pois o roteiro era alterado constantemente. Além disso, a então esposa de Humphrey Bogart, ciumentíssima, vivia no estúdio, fiscalizando o marido, certamente impactada pela beleza da atriz sueca, o que tornava a relação entre os dois atores cada vez mais tensa. Mal sabia a esposa que quem lhe levaria o marido seria outra atriz, quase uma menina, chamada Lauren Bacall. A insegurança do diretor, sempre pressionado pelos produtores, acabava nas costas dos roteiristas, que mudavam a história constantemente, dificultando sua memorização pelos atores. Aliás, foram nada menos do que três os roteiristas, o que dá uma ideia do clima no estúdio.
Basta dizer que havia três finais à disposição do diretor: a) Rick, ao ajudar Victor, marido de Ilsa, a fugir, é morto pelos soldados nazistas; b) Ilsa abandona o marido e foge com Rick; c) Victor é que morre, deixando o caminho livre para Ilsa e Rick finalmente serem felizes para sempre. "Nós sempre teremos Paris" como diz ele no filme. Nenhum deles foi aproveitado, como esclareço ao leitor que ainda não viu o filme.
O simples fato de o filme ter tido um quarto final, que se tornou o definitivo, mostra como andavam as coisas nos bastidores.
E, por falar em final, quem pode esquecer-se da frase final ("this is the beginning of a beautiful friendship") dito a Louis, o policial corrupto mais simpático do cinema, pelo cínico personagem central, ambos candidatos ao Oscar, levado, não por eles, mas pelo filme como tal, por seu diretor (Michael Curtiz) e pelos infatigáveis roteiristas (Julius J. Epstein, Philip G. Epstein e Howard Koch)?
That’s the life.