Circus

Crime perfeito (Um)

Crime perfeito (Um)

11/2/2011

 

"As verdades que parecem mais verdadeiras, se a gente dá muitas voltas nelas, se a gente olha para elas de pertinho, vê que são verdades só pela metade, ou deixam de ser verdades".

Mário Vargas Llosa
(em Quem matou Palomino Molero?)

O rapaz magro e alto entrou na sala, com os braços atrás das costas, corpo levemente curvado para a frente, barba de dois dias, cabeça raspada. Em cada lado dele havia dois orangotangos fardados, o que, positivamente, era um despropósito. Meio soldado daqueles já seria o suficiente para dissuadir o prisioneiro de qualquer tentativa de fuga. Pararam junto à porta, em silêncio. Na mesa transversal, junto à janela, a jovem juíza lia atentamente os autos de um processo, que não tinha muitas folhas. Ela levantou os olhos quando o rapaz pigarreou. Fechou o cenho, fez um leve aceno com a cabeça e o trio se aproximou da mesa dela, ladeando a mesa mais longa, postada perpendicularmente àquela outra. Outro sinal dela e os policiais retiraram as algemas do prisioneiro, que passou a esfregar os pulsos alternadamente, dramatizando exageradamente o fato de ter sido trazido daquela forma ao fórum. Ela o encarou, como quem tenta sentir sua personalidade, e, em seguida, pôs-se a ler a denúncia:

"No dia 15 de outubro próximo passado, cerca das 15 horas, Ibrahim Assaf Nazim, filho de Maria Nazim, portando um revólver calibre 38, constrangeu o gerente da agência Bigdoy do Scandinavian Bank a entregar-lhe a importância de NK$ 980.000,00, da qual se apropriou, praticando, assim, o crime de roubo qualificado. Que o senhor tem a dizer sobre tudo isso?"

Enquanto ela fala, a funcionária ao seu lado, quase silenciosamente, aciona o teclado da maquineta que registra, literalmente, o que vai sendo dito na audiência. O rapaz limita-se a responder, quase sem sotaque norueguês: "Não sou Ibrahim. Eu sou Farid".

Vencido o espanto, a magistrada vai até a folha de identificação do preso. "O senhor conhece Maria Nazim?", indaga, exibindo-lhe a folha dos autos. "É minha mãe", confirmou o jovem. "Então o senhor quer dizer que houve um erro datilográfico na menção do seu nome? Ibrahim por Farid?".

Ele responde de forma indireta: "Farid é meu irmão".

Ela cruza os braços sobre a mesa, como que buscando adivinhar os pensamentos do acusado, o tipo de explicação que dali sairia. "Aí tem coisa", foi o que lhe disse a intuição.

"Mas, quem foi preso em flagrante foi o senhor ou foi o seu irmão?", indagou ela. "Quando eu fui preso eu estava com a cédula de identidade do meu irmão" limitou-se a esclarecer o rapaz, respondendo sempre sem se demorar nos pormenores, telegraficamente, o que poderia ser uma estratégia da defensoria.

Ela respira fundo, tentando compreender aonde queria chegar o prisioneiro. "Como o senhor explica que foi preso nas proximidades da agência assaltada e foi reconhecido por várias testemunhas, especialmente pelo gerente do banco? E portando a cédula de identidade do seu irmão?" foi a óbvia indagação dela.

"Simplesmente eu e Farid somos gêmeos. E eu trabalho em uma lanchonete na Münchensgate, uma travessa da Bigdoy allé. Segundo me disseram, fui preso umas duas horas depois do assalto, quando saí para ir ao banco descontar um cheque para meu patrão, o senhor Giovane Strada. Ele pode confirmar isso."

"E que explicação o senhor dá para o fato de estar portando o documento de seu irmão?" indaga ela, depois de fitar o moço por um bom tempo, sempre tamborilando a mesa com os dedos da mão direita, como a mostrar a ele sua impaciência com aquela história absurda.

"Como nós moramos na mesma casa, talvez ele tenha pegado o meu documento por engano, quando saiu de casa, antes de mim", foi a tentativa de explicação. "E onde ele está agora?" continuou a juíza. "Como posso saber? Estou preso há mais de dez dias e ele nunca foi me visitar na cadeia."

A magistrada relê atentamente os autos, procurando descobrir algum ponto contraditório naquela narrativa, alguma falha que devesse ser remendada, para que o processo fosse salvo, mesmo porque, quando ouvido na delegacia de polícia, o preso, invocando direitos constitucionais, marotamente permaneceu calado, deixando para manifestar-se perante o juiz, como declarou na ocasião e como agora fazia. Era, portanto, a primeira vez que seu álibi vinha para os autos. Ela, cinematograficamente, arriscou uma interpretação delirante, sem a menor base nos elementos que acabara de ler, mas cujo conteúdo o réu, certamente, desconhecia:

"Vejamos se entendi. O senhor, que trabalha numa lanchonete de propriedade de um italiano, na rua München, e goza da confiança de seu patrão, é enviado por ele periodicamente ao banco, onde realiza operações no interesse dele. Certo? No dia referido na denúncia seu patrão manda o senhor ao tal banco, para descontar um cheque. O senhor sai da lanchonete, dirige-se ao Scandinavian Bank, empunha arma de fogo, assalta a agência, tranca todos os presentes, que não eram muitos, em uma das salas, e se dirige à tal agência onde seu patrão tem conta. Certo? Ali, desconta o cheque assinado por seu patrão e transforma tudo em dólar, o dinheiro dele e o do assalto, dizendo haver o dinheiro sido enviado por seu patrão, que, como tantos outros sonegadores, não quer que o nome dele apareça na transação, para enviar para o Exterior ilegalmente. Certo? Cautelarmente, o senhor trazia no bolso a cédula de identidade do seu irmão, na qual o rosto é idêntico ao dele, pois são gêmeos. Ao ser preso, tanto o revólver como os dólares já haviam sido escondidos em um local previamente escolhido. Com a semelhança entre o senhor e seu irmão ficará a dúvida a respeito da autoria do crime. Foi o senhor ou o seu irmão o assaltante? Um crime quase perfeito. In dubio pro reo! Acertei?"

O ar dele agora era o de quem sentia na mão o peixe fisgado tentando escapar do anzol. Era preciso cansá-lo, dando-lhe mais linha.

"Eu posso dar uma versão melhor do que essa", disse ele com impensável atrevimento, já com o corpo empertigado. O ar abatido do início da audiência se esvaíra. "Digamos que meu irmão Farid me odeie e quer causar-me algum mal, levando algum proveito nisso. Ele é motoboy. Antes de sair de casa substitui minha cédula profissional pela dele, contando com que eu não vá perceber, pois elas são idênticas. Ele vai até a rua München, deixa a moto estacionada em alguma travessa próxima, guardando no bagageiro o capacete e o blusão. Entra na agência do Scandinavian Bank e faz o assalto. Tranca as pessoas lá dentro e sai calmamente até o lugar onde a moto está estacionada. Põe o blusão e o capacete e, quando as pessoas saem da agência, serão incapazes de reconhecê-lo com aquela vestimenta. Certo? Ele sabe que, mais dia menos dia, algum funcionário do banco me encontrará por ali e pensará que eu sou ele. Certo? Eu serei preso e ele ficará com o dinheiro, impunemente. Vossa Excelência não concorda? Caso ele fosse preso na ocasião, o processo conteria o meu nome e não o dele."

Ela, entrando no jogo, completa: "Ele guarda o revólver e o dinheiro no bagageiro e sai feito louco pelas avenidas, como é do costume deles, até chegar ao doleiro que lhe entrega os 300 mil dólares. Ele esconde o dinheiro em local seguro e daqui a um ano compra alguma propriedade em Trondheim. É isso? O senhor será absolvido pela dúvida quanto à autoria do crime e ambos desfrutarão do proveito do crime. Acertei?"

Ele não conseguiu impedir que um leve sorriso lhe viesse ao rosto. Olha aquela jovem de roupa negra como se dirigisse a uma balconista qualquer. "E a senhora pode me dizer o que realmente aconteceu?"

Ela, mesmo sentindo o golpe, não se dá por achada. "O senhor é muito inteligente. Eu diria que é uma pessoa atilada".

"Coisas da Internet, madame. Hoje só não aprende quem não quer. O tempo em que isso era privilégio de poucos já passou", responde ele com indisfarçável arrogância. "Há muita gente que frequenta faculdade mas desconhece a grande mestra, que é a vida."

Ela continua o cerco, tentando conter a indignação: "Pois fique sabendo que vou convocar, de ofício, o teu irmão Farid para vir depor na próxima audiência. Vejamos o que ele diz e se o álibi dele é melhor do que o seu. Talvez eu substitua um irmão pelo outro no processo".

O réu, certamente, já contava com essa possibilidade, pois não esboçou a menor reação. Ao contrário, como quem coloca o adversário em sinuca, ele sugere: "Evidentemente, nessa audiência a senhora vai mandar o gerente do banco dizer qual de nós dois é que esteve lá no dia do assalto ...".

Ela agora está jogando o corpo para trás, olhando admirada aquele rapaz que a encara, com o peito estufado, senhor de si, dono da situação, nem parece um árabe, no geral tão humilde. "Aliás", continua ele, com atrevimento simplesmente insuportável, "aliás, seria bom que a senhora convocasse também o Fued".

Ela espanta-se e empina o corpo: "Que Fued?"

E ele, como um hábil jogador de xadrez, preparando o cheque: "É nosso irmão. Nós somos trigêmeos!"

Ela suspira fundo e volta-se com o corpo para trás, entregando os pontos e a partida. E ele, como quem dá um mate: "Univitelinos!"

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.