Circus

Gato triste e o rato alegre (O)

Gato triste e o rato alegre (O)

10/12/2010


Pense numa casa velha. Mais, muito mais do que isso, coisa aí de 150 anos, no mínimo. Dessas cujo proprietário, se é que tem algum, não sabe que tinta desbota nem que assoalho enruga com o tempo. Há uma varanda na parte da frente, coisa aí de meio metro acima do nível do jardim, nome que se dava àquela imensidão de mato rasteiro e que, num passado muito remoto, deve ter abrigado alguns pés de rosa.

Sobe-se uma escada de madeira rangente, na quase certeza de que não se chegará lá em cima são e salvo, ainda que você escolha adequadamente onde botar o pé na hora de mudar o passo, sempre apoiando-se num arremedo de corrimão, não menos balouçante.

Pronto. Uma vez lá em cima, ainda olhando com o máximo cuidado onde pisar, chega-se à porta de entrada que, obviamente, não está trancada. É girar a maçaneta e empurrar a porta com o ombro e a sala se apresenta, com aquele desfile de teias inimagináveis (ou imagináveis, depende de sua experiência passada, mesmo porque não há experiência futura), ligando parede a parede, como lhes compete. Você, com algum esforço, consegue abrir a janela e alguma luminosidade penetra no salão, mostrando-lhe que ele é mais medonho do que teu otimismo havia suposto.

Os olhos vão-se adaptando ao ambiente, conseguindo distinguir isto daquilo, embora o conjunto não mereça nome outro que o de lixo. Quem mora ali? Evidentemente, ninguém que seja deste mundo. Num canto do rodapé teus olhos dão com um pequeno buraco, que chamou tua atenção porque, ao lado dele, há um gato magérrimo, tremendo de frio e, ao que se supõe, de fome. Olhos fixos no tal buraco, numa postura que seu psicoterapeuta chamaria de estase, ele nem dá pela tua presença.

Eis que, vindo não se sabe de onde, talvez aproveitando a porta recém-aberta, aparece um gato gordo, de pelo brilhante e de olhos mais brilhantes ainda. Sem a menor cerimônia ele vasculha a sala, até aproximar-se do outro felino, que, agora menos estático, lhe estende a pata direita aberta, num sinal que entre os humanos significa "Alto lá". Ignorando a ordem, ele avança lentamente na direção do outro, que, agora, nervosamente, aponta com o polegar da mão direita o tal buraco, a sugerir que ali havia entrado um rato, que, mais hora menos hora, dali sairá, a menos que haja uma passagem secreta que ele, tiritando de frio e fome, não tivera tempo de averiguar. "Você me entende, não?", sugere ele com olhar súplice.

Sentado ao lado do outro, tendo entre eles o tal buraco, quem agora estende a mão espalmada é o gato visitante. Finge limpar as cordas vocais com alguns grunhidos e, aproximando a boca do tal buraco, não diz menos do que "Au! Au! Au!"

"Mas como", pensa o trêmulo felino, "com tanto lugar no mundo me vem visitar um louco desses? É azar em demasia."

Antes que ele verbalize sua indignação, o visitante levanta a cara para o alto e, com voz menos severa, diz algo como "Au! Au!"

Uma pausa para meditação.

Ponha-se no lugar do rato, se é que há de fato um rato naquele buraco, que eu não me perca pelos solavancos do inevitável eco. Você ali se homiziara depois de driblar aquele magrela que não mostrava boas intenções nos dentes que lhe exibira e que eram inconfundíveis com um amistoso sorriso. É claro que o gato ficou junto ao buraco aguardando que, tangido pela claustrofobia, que, aliás, te levara a procurar tratamento psicoterapêutico, você resolva vir cá fora tomar um pouco de ar fresco, ocasião em que aqueles tais dentes mostrarão ao mundo sua serventia. Eis que lhe chegam aos ouvidos inconfundíveis latidos, partidos de algum animal que também se encontrava ali junto à abertura da parede. Salvo engano, cuida-se de um cão, inimigo ferrenho, como sabemos ambos, dos gatos. Já os segundos latidos vieram de mais longe, a sugerir que o tal cachorro expulsou aquele felino malandro dali.

E lá se vai o confiante rato, cabeça erguida, a caminho da liberdade.

Pois mal dá dois passos além do limiar do rodapé e nhac!

Devorado o ingênuo ratinho, o gato gordo, enquanto palita os dentes com a unha, aconselha o outro, professoralmente: "Nos dias de hoje, meu caro, quem não fala pelo menos duas línguas (clique aqui) está frito. Por mais capenga que isso seja."

 

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.