Sou chegado a um brechó, onde já vi coisas surpreendentes à venda, como a cama em que morreu Tiradentes. Eu até estranhei o tamanho dela, pois imaginava que o alferes fosse maior. Mas aprendi com ela que ele era um homem simples, a julgar pela precariedade da peça à venda. Brechó é cultura, saiba a senhora.
Há alguns anos vi numa dessas casas de velharias uma enorme esfera de vidro, apoiada numa base de madeira. "Vidro coisa nenhuma. Isso é legítimo cristal da boemia. Da boemia! Sabe aquele samba do Nelson Gonçalves?" diz o dono da loja, com bigodes e sotaque russos. Eu não sabia, que não sou bom nisso. O fato é que o preço era convidativo, eu tinha na sala uma mesinha de canto que servia para porem sobre ela desde lista telefônica até pinguim de geladeira e achei que aquela bola de cristal da boemia do Nelson Gonçalves não faria feio ali, como elemento de decoração. O tal russo me chamou do lado e me preveniu que, se eu visse no interior da tal bola de vidro, quer dizer de cristal, alguma imagem em movimento, como se fosse coisa do Youtube, que naquele tempo nem ele nem eu sabíamos o que era, acho que nem existia, que eu não estranhasse. "Quem me vendeu esta bola de cristal foi uma cigana armênia" segredou-me ele, depois de olhar para a direita e para a esquerda, mesmo não havendo ninguém mais na loja. "Quiromante e leitora de búzios" disse-me ele, como se eu soubesse que diabos queria dizer aquilo.
O que importa é que, alguns anos depois, uns seis meses antes da copa do mundo de futebol que ocorreria na Alemanha, deu-se algo que me deixou meio preocupado. Apareceu uma goteira na sala, bem em cima da tal bola translúcida. Chamei o pedreiro, que puxou a mesinha mais para perto da janela, para poder cuidar do tal furo no teto. A luz do sol, incidindo sobre a tal bola, fazia aparecerem ali dentro dela uns vultos, que me pareciam o Kaká, o Ronaldinho e outros craques de nossa seleção. Como sabeis todos, a seleção já era campeã do mundo antes de sair do Brasil. Era ir à Alemanha, apanhar o caneco e voltar. O filósofo encarregado de orientar os jogadores afirmava em público e raso que um maestro que tem músicos como aqueles pode guardar a batuta.
Pois as imagens que apareciam no fundo da bola da cigana armênia mostravam exatamente o contrário disso. Prestando-se bem atenção, os movimentos dos jogadores não conseguiam sincronizar com a bola. No meu Youtube particular, jogador ia para um lado e a bola para o outro. Para culminar, quando o pedreiro terminou a correção do teto, ele também viu uma cena estranha dentro da bola: pessoas morenas rasgavam e queimavam a bandeira brasileira nas arquibancadas de um evidente estádio de futebol. "Maneiro!" foi tudo o que o Chicão disse antes de devolver a mesinha a seu lugar.
O tempo passou e, com essa chuvarada que tem assolado a nossa cidade, me aparece outra goteira naquele mesmo canto. O que significa que a tal mesinha voltou para perto da janela. O que vale dizer que o Youtube veio com tudo. Agora não é mais filme de futebol que eu e o Chicão assistimos ali. É um filme em preto e branco, passado na Alemanha, como se pode deduzir de algumas tabuletas que ali aparecem. Ele inicialmente mostrava pessoas loiras saindo de casa empurrando carrinho de feira, dentro do qual levavam notas e mais notas de marcos alemães. Essas pessoas entravam em casas comerciais e de lá saíam com meia batata cada um, cara de desânimo igual em todos. Com o passar dos dias, o volume de notas de marcos nos carrinhos ia diminuindo e o número de batatas aumentando. Já agora os rostos eram menos graves.
O Chicão terminou o serviço, a mesa voltou a seu lugar e o resto do filme sumiu.
Vem aí nova Copa do Mundo. Agora é esperar pela próxima chuvarada.