Circus

Twist

Twist

5/11/2010

"Eu invento, mas invento com a secreta esperança de estar inventando certo."

Lygia Fagundes Telles

Contemos uma fábula. No tempo em que as coisas falavam, o marido da bateria de telefone celular, para encerrar uma discussão, diz à mulher: "E vá para o diabo que a recarregue!"

Qual a reação do leitor diante de um disparate desses? Analise-se e conclua.

O autor do texto pretendeu conduzir o leitor para um caminho e, repentinamente, tomou um rumo inesperado, deixando-o a ver navios. Ou no mato sem cachorro, como também se diz. Experimente, durante uma discussão, dizer ao seu adversário: "Quer saber do que mais? Vá pra santa que te pariu!" Ele, certamente, partirá para as vias de fato, não por aquilo que você disse, mas por aquilo que ele imaginou que você diria, ao completar a frase. Você acabará pagando não por aquilo que disse, mas por aquilo que o ouvinte imaginou que você teria pensado antes de dizer o que disse. Literatura é isso.

O. Henry, pseudônimo do contista norte-americano William Sydney Porter, que, por sinal, teve uma vida desgraçada, morrendo precocemente, por causa do álcool, tem um livro, Páginas da Vida, no qual todos os contos têm um final surpreendente, absolutamente inesperado. Houve, aliás, um filme contendo alguns desses belos contos, O. Henry’s Full House, mas, por esses mistérios que só a estupidez humana pode explicar, jamais foi convertido em DVD no Brasil. Charles Laughton como um mendigo que assedia uma sensual e solitária Marilyn Monroe, na véspera do Natal, para poder passar o geladíssimo fim de ano na aquecida cadeia local, é algo simplesmente inesquecível. Um ladrão de bancos, agora regenerado, vê-se obrigado a "voltar à ativa" no dia em que a filha do dono do banco onde ele agora trabalha fica preso no cofre novo, cujo segredo ninguém ainda conhece. Um casal de namorados que trocam presentes de Natal, imaginando estar a complementar algo que falta ao outro. Ela vende os. Não vou estragar a surpresa. São contos que vale serem lidos ou relidos.

É a técnica do twist, que não só os escritores costumam usar, mas também os teatrólogos e os cineastas.

No filme Spellbound, que significa Enfeitiçado (o nome que lhe deram em português não poderia ser mais horroroso: Quando fala o Coração), Alfred Hitchcock fez uma dessas brincadeiras: Gregory Peck considera-se um criminoso e, por isso, Ingrid Bergman, que põe e tira os óculos para nos mostrar que é uma psiquiatra, está empenhada em demonstrar-lhe que isso é uma ilusão, fruto de um trauma da infância e outras freudianices que têm, de quebra, pesadelos ilustrados por ninguém menos do que o Salvador Dali, que, aliás, não resistiria a uma boa sessão de psicoterapia. A certa altura do filme, a câmera nos mostra, do alto da escada, o velho professor esparramado na cadeira, lá no centro da biblioteca, a sugerir-nos que teria ele sido mais uma vítima daquele criminoso. Entretanto.

Carrie, a estranha, que consagrou o hitchcockiano Brian de Palma, tem uma cena célebre, que, na ocasião em que foi exibido, há 30 anos, despertou, como não poderia deixar de ser, um grito uníssono dos espectadores, eu incluído. A habilidade do diretor estava justamente em colocar a cena em um momento em que ela não seria jamais esperada. Um inesperado twist. É claro que também não vou tirar o prazer do leitor antecipando-lhe o susto.

O mesmo ocorreu com Black-out (em português, Um Clarão nas Trevas), no qual Audrey Hepburn interpreta uma cega que, vinda do Exterior, transporta, sem o saber, numa boneca, certa porção de cocaína, que depois é procurada, em seu apartamento, por traficantes, um deles um sádico. Tema atualíssimo, não fosse o filme de 1967, filmagem, aliás, de uma peça teatral, que, exibida no Brasil, teve, no papel da cega, Regina Duarte, em uma de suas raras interpretações no palco, ainda mocinha. Em ambos os filmes a técnica do twist funciona à maravilha. Tanto que minha acompanhante apertou-a com tanta intensidade que a unha dela se cravou na palma da minha mão.

Dia desses recebi uma mensagem eletrônica de um ex-aluno, que mostra como algumas coisas que dizemos em aula ficam guardadas na memória dos nossos alunos. Eu lecionava, naquela ocasião, Noções de Direito Público e Privado em curso de Administração de Empresas. O tal aluno agora me informa que, motivado por aquelas aulas, foi fazer o curso de Direito, tanto quanto seu filho, que eu não cheguei a conhecer, tornando-se ambos advogados. "Lembro-me de uma resposta que você dava diante de toda pergunta que um de nós fazia: depende!" De fato, eu dizia que não é tão importante alguém dizer que tem direito a este ou àquele bem da vida. Importante é ele provar isso. Logo, a possibilidade de ele vir ou não a desfrutar de tal direito depende menos de ele afirmar ter direito a isso do que da prova que ele faça a respeito de ter esse direito.

Cinemaníaco que sempre fui, utilizei-me do expediente do twist em uma de minhas aulas, com propósitos pretensamente didático. Foi assim: quando falava dos chamados frutos civis, perguntei quem ali gostava de chupar laranja, fruto da laranjeira. Obtida a resposta, repeti a pergunta usando agora outra fruta, uva que seja. Havendo obtido a atenção da classe, renovei a mesma questão a um terceiro aluno: "Se eu lhe desse agora uma manga, você chuparia?" Ante a resposta afirmativa do aluno, apresentei-lhe, num autêntico twist, a manga de meu paletó. Ele apenas olhou-me atônito, sem saber o que dizer ou fazer. Na verdade, eu havia condicionado a resposta futura, ao falar, antes, de frutas, produzindo a associação de idéias dele, necessária para minha surpreendente pergunta. A lição que eles jamais esqueceriam: há frutos e frutos.

Expedientes desse tipo, com fins didáticos, tinham um efeito extraordinário, embora me custasse muito esforço mental, pois tinha de inventar sempre alguma coisa nova, para motivar a classe, já que muitos alunos, havendo trabalhado durante o dia, chegavam sonolentos para a aula. Sempre que possível eu introduzia na exposição um chiste desses, também com finalidade mnemônica. Lembrando-se da anedota, o aluno, quase sempre, se lembraria da matéria onde ela havia sido incluída. O que não impediu que um dos alunos, muito espirituoso, durante uma prova, indagasse: "Mestre, eu não me lembro da resposta à quinta questão, mas me lembro perfeitamente da piada que você contou naquela ocasião. Posso apenas escrever a piada?"

Uma gag digna de um Hitchcock.

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.