Quando entrei no vagão do metrô pela primeira vez, assaltou-me a sensação de que estava em país errado. Aquela poltronas limpinhas e aqueles balaústres luzidios, cor de prata, realmente não eram panoramas brasileiros. Minha experiência de lanterninha de cinema não me deixava enganar. Tive ímpetos de berrar um "Pare o trem que eu quero descer!" Quem me ouviria? Contive-me, no entanto. Prestando bem atenção, talvez até ouvisse os passageiros conversando em francês. Ou em alemão. Isso se os franceses e os alemães falassem quando estão no metrô lá deles, já que eles economizam palavra para gastarem na literatura, a discutir o das sein über alle, ou nas canções da Piaf ou do Jacques Brel. E já que paulistano também não conversa no metrô, limitando-se a olhar além das janelas, como se ainda não conhecessem o escuro de lá fora e as interrupções das luzes de iluminação daqueles longos túneis, eis-me apalermado, sem bússola nem quadrante, logo eu que nem sei o que é um quadrante.
Ubi sum? Até as aulas do colégio São Luiz me vinham à mente, logo eu que fui um péssimo aluno de latim, aqueles padres olhando os alunos com uns olhos que não me enganavam. Acho melhor mudar de colégio, pai, daqui a uns anos o Almodóvar vai fazer um filme contando a infância dele, e aí já será tarde. Sabe-se lá qual vai ser minha reação se o padre me convida para ir ver a horta que ele está montando no canto escuro do quintal! Ainda bem que nunca estudei em colégio de padre.
O fato é que, se empacotassem todas aquelas pessoas e pusessem num vagão de metrô de Paris, a diferença seria a sujeira nas paredes. De lá, é claro. Ao reverso, se trouxessem franceses e pusessem no vagão do metrô de cá, eles se mostrariam boquiabertos com a limpeza de nossos trens urbanos. Se é que francês alguma vez abre a boca. E eu continuaria sem saber quem é francês e quem é brasileiro, ou alemão
Fixo-me em um nordestino. Baiano ou alagoano? Talvez sergipano ou cearense. Cearense creio que não. É um tanto crescido. Talvez baiano. Ou árabe? Siciliano? Ou trabalhador em Montmartre? Porteiro do Louvre? Porteiro do Louvre certamente ele não é. Está mal vestido, embora limpo. Traz um embrulho sob o braço esquerdo, que presumo seja sua marmita. Como se diz marmita em francês? A mão direita, calosa ao extremo, está fixada na haste vertical de aço brilhante, como uma planta epífita. A imobilidade daquela árvore humana ali fixada me leva a procurar alguma raiz, instintivamente, olhando para seus pés. Uma figueira, com podas anuais, não teria um tronco tão nodoso. Uma oliveira, talvez, daquelas que se vê na Espanha. Mas não há oliveira na França. Ou há? Perco-me a contar as veias que ilustram aquela mão, digna de um quadro do Portinari. Chego a notar a pulsação do sangue que por ali circula.
Vulê vu manforrmê quél lé la procimmestación, sil vu plé?
Acordo do meu devaneio como se tivesse ouvido um estampido. O passageiro olha-me descontraidamente. Teria dito ele alguma coisa? Penso em perguntar-lhe algo. Quéce que vusavê di? Ele me interpretaria mal. Ou responderia? Procuro perscrutar-lhe o pensamento, com a discrição necessária. Nunca se sabe qual a reação de um nordestino. Ou de um calabrês. Ou de um gigolô. Ele continua fixo, indiferente ao balanço do vagão e às minhas dúvidas.
"Liberdade", diz uma voz fanhosa. Ou seria fraternidade? Ou igualdade?
Divago. Estou, em pensamento, passeando por Paris. Entro em uma loja e procuro falar meu francês. O balconista reconhece o sotaque e espera que eu gaste o pouco do idioma que me resta, completado com gestos largos.
Avevu compri? Claro que compreendi. Afinal, também conheço gestos. E solta uma sonora gargalhada. Meio sem graça, acompanho-o na reação. Quase por obrigação. Digo alguma cosia. Não sei mais se em francês ou em português. Ou em uma língua mesclada. Ou em alemão. Mas, se eu não falo alemão! Conversamos sobre o Brasil, que ele não vê há tantos anos. Antigas questões políticas, talvez. Nada disso. Isso já passou há muito tempo. Aventurou-se pela Europa e descobriu um desconhecido tino comercial. Pedras preciosas, peles de animais, mil bugigangas. "Tenho um sócio nos altos escalões em Brasília", comenta sem discrição alguma. Quem ali entenderia? Fala como se aquilo fosse uma condecoração. "Sócio comanditário", enfatiza, culto.
"Estação Carandiru", diz a monótona voz fanhosa do autofalante.
Devo ter-me distraído. Eu pretendia ir ao Palácio da Justiça.