Eu vou dirigindo meu carro pela avenida Moema, na correta mão de direção e em velocidade compatível com o local. Não sou um primor de motorista, mas tomo minhas cautelas, até porque já não tenho idade para esse tipo de exibicionismo. Um carro, vindo em marcha-a-ré, saindo do estacionamento situado na lateral esquerda da rua, considerando o sentido do meu automóvel, colide contra este. Eu desço do carro ligeiramente furioso e passo a despejar alguns insultos contra a motorista (sinto muito, mas era uma senhora) do veículo colidente, menos porque colidiu contra o meu e mais porque trazia no banco de passageiro dianteiro uma criança de uns cinco ou seis anos de idade, o que não é permitido. E sem usar cinco de segurança, duplicando sua infração. Quando chego mais perto e consigo vislumbrar algo além daquela nuvem escura com que alguns proprietários enfeitam o vidro do carro, descubro que a tal senhora mora no mesmo prédio que eu. E, mais: estaciona o veículo ao lado do meu. Acredite que foi. Não digo mais nada e volto para o meu automóvel. Dias depois ela encontra minha filha, a quem reclama da minha descabida grosseria. Pagar os estragos produzidos nem pensar.
Naquela vez eu estava sozinho e, por isso, o leitor poderá imaginar o que bem entender a respeito da minha versão dos fatos. "Ninguém há de ser admitido a testemunhar em prol de si mesmo" diziam os antigos, por sinal em latim, mas eu me esqueci como se diz isso naquela língua.
Meses depois, tendo a Maria Helena ao meu lado, outro fato insólito. Eu estou dirigindo pela Alameda dos Anapurus, que admite tráfego em ambos os sentidos. Há um caminhão, que vinha em sentido contrário, parado em fila dupla, por motivos que desconheço. Quando estou emparelhando meu automóvel com ele, um veículo que vinha no sentido do caminhão passa para a contramão de direção, para ultrapassá-lo. Como fazê-lo se eu, que estou na correta mão de direção, já estou ali? A motorista (sinto muito, minha senhora, mas era uma bela senhorita) coloca a mão esquerda fora do veículo e faz um sinal indicando que eu deveria dar marcha-a-ré para que ela, vindo na contramão, por direitos que desconheço quais fossem, ultrapassasse o caminhão. Eu não tinha nenhum compromisso imediato, tanto quanto a Maria Helena. Tiro a chave do contato, exibo-a à tal motorista e deixo cair a chave no chão do carro. Ela, provocativamente, faz o mesmo com a chave do automóvel dela. A Maria Helena pensa em descer para argumentar com a infratora. Eu a convenço a ficar no carro e passamos a falar de coisas desimportantes, como a biografia do Kung-Fu-Tseu que ela está lendo. Nossa conversa vai de vento em popa, com os dois carros estacionados frente contra frente, quando o tal caminhão resolve sair dali. A tal moça dá marcha-a-ré em seu automóvel, emparelha o seu carro com o meu e me brinda com um "saiba que você é um babaca!" O leitor dirá que estou delirando, mas eu invoco o testemunho de minha mulher. "Ambos estão delirando", dirá o exigente e ignorante leitor, e eu não saberei mais o que dizer.
Melhor, saberei. Nos primórdios da psicologia, os pesquisadores dividiam as chamadas "doenças mentais" em dois grupos: uma com menor gravidade, as neuroses; outra com gravidade maior, as psicoses. Para o Jung, por exemplo, tudo o que era perturbação mental merecia o nome de demência precoce. Logo ele, que tinha aquelas visões esquisitas! Nada mal, no entanto, para quem estava apenas engatinhando.
O próprio Jung, como sabemos, publicou vasta obra sobre isso, sendo que em um de seus livros ele se dispôs a classificar os seres humanos, de acordo com certas características. O conceito de introvertido e extrovertido começou ali, embora alguns detratores digam que ele se apropriou de estudos de um de seus discípulos. A psicose passou a dividir-se em esquizofrenia e paranoia e o Código Civil Brasileiro generalizava tudo isso com aquele "loucos de todo gênero", que o tempo fez revogar.
Com o surgimento da antipsiquiatria e a firme atuação de Ronald Laing, descobriu-se que a coisa não era assim tão fácil. Muitas pessoas que estavam internadas em sanatórios, vivendo à custa de tranquilizante, poderiam perfeitamente levar uma vida produtiva, desde que lhe fossem ministrados determinados medicamentos, que as reequilibrassem quimicamente. Os mais velhos naturalmente se recordam dos efeitos do lítio sobre o doutor Ulisses Guimarães, que andava fazendo uns discursos meio sem nexo. "Derrubemos os portões dos hospícios!" poderia ser o bordão desses desbravadores.
Nosso Machado de Assis, genialmente, já havia antecipado tudo isso, ao escrever seu notável O Alienista, nome que se dava a quem cuidava dos "alienados mentais", o que quer que isso quisesse dizer. Se alienado era quem tinha um comportamento diverso do comportamento da maioria, até Jesus Cristo seria internado na Casa Verde, dirigida pelo doutor Simão Bacamarte.
Há pouco tempo descobriu-se que o termo "louco" não só é inconveniente como é impróprio. A ideia que todos temos é que por esse nome se devam indicar aquelas pessoas mal trajadas, barba por fazer, discurso desconexo e sempre babando na gravata. Descobriu-se que muitas pessoas que andam ricamente vestidas, joias a mais não caber, rosto barbeado e prosa de vendedor de enciclopédia são o que se denomina, à falta de nome melhor, autênticos "psicopatas". Um Gengis Khan, que se orgulhava de não crescer grama por onde passassem seus cavalos, um chefe de Estado que determina o indiscriminado bombardeamento do terreno inimigo, um padre que não respeita a intimidade sexual de crianças e tantas outras pessoas com as quais convivemos diariamente não escapariam de um rótulo desses.
A principal característica do psicopata é que ele não tem freios inibitórios, pois lhe faltam padrões éticos de conduta. Olhe à sua volta e encontrará pessoas que agem como se o mundo tivesse sido criado especialmente para eles, ou para elas. Essa pessoa está intimamente convencida de que as outras pessoas vieram ao mundo para servi-lo, ou servi-la. Suas gentilezas, seu sorriso, sua fala mansa são meros artifícios de que se utiliza para o único fim que têm em vista: levar vantagem em tudo, como sintetizou aquela infeliz propaganda de cigarro.
Conheço alguns casos desses. Primeiro: um homem casado, morando no interior do Estado, devendo fazer um curso de um mês na capital, solicita a uma prima que o hospede durante esse mês. Ela, gentilmente, aceita a presença daquela incômoda visita, que passa a encher a casa com seus insuportáveis roncos noturnos, pois dorme na sala. Seis meses depois a prima praticamente o expulsa de casa, onde ele, pelo jeito, ficaria até ver reconhecido o usucapião que tinha em vista. Claro que os familiares comuns foram informados, por ele, da insensibilidade da prima, para a qual os compreensivos parentes passaram a virar o rosto.
Caso dois: um casal, que tem uma filha adolescente, resolve que isso de trabalhar é uma grandessíssima besteira. Contando com a compreensão e o espírito de caridade de amigos e parentes, moram um tempo na casa deste, um tempo na casa daquele, sem jamais encontrar o emprego ideal para suas auto-reconhecidas qualificações profissionais. Quando todos os parentes e amigos se inteiraram do golpe, a filha teve de suspender as aulas da faculdade, trabalhando como balconista de loja para sustentar os três. O que não impede que a tal jovem aceite os convites das amigas para irem curtir uma balada quase todo fim de semana, ao fim da qual, coincidentemente, a tal moça descobre que esqueceu a carteira em casa.
O psiquiatra Paulo Gaudêncio diz que lhe é menos difícil tratar de adultos que foram crianças carentes afetivamente do que de adultos que foram excessivamente mimadas na infância. Mostrar a esses adultos que a vida é cheia de limites é algo quase impossível, pois foram criados por pais completamente ausentes ou excessivamente tolerantes e isso agora está ali plantado como uma sequoia. O pior, diz ele, é que esse quadro, quando se cristaliza e a pessoa se torna psicopata, é simplesmente incurável. Enganar, fingir ou matar são atos que para essas pessoas têm o mesmo significado.
O tema exigiria muito mais tempo. Por hoje, fico por aqui.
Antes de encerrar, um lembrete: não se esqueça de devolver aquele livro que um amigo lhe emprestou. Ou recolher o papel amassado que havia atirado pela janela do carro. Ou.