Circus

Premonições

Premonições

2/7/2010

 

À Cláudia, com muito amor

Ele está convencido de que muitos de seus sonhos são premonitórios. Isto é, mais dia, menos dia, aquela tragédia que lhe ocorre quando dorme se tornará real. Sim, os seus sonhos sempre contêm um final trágico, no qual ele acaba levando à morte alguém que não se comportou adequadamente.

Por exemplo, alguém tenta levar-lhe a carteira. Ele atraca-se com o ladrão e este, pretendendo fugir, ante a tentativa frustrada, é atropelado por um táxi e morre. Ou então são assaltantes que invadem seu apartamento, querendo os dólares que ele guarda no cofre, como se alguém ainda levasse a sério a moeda norte-americana nos dias de hoje. Pouco importa. Ali está o bando, tendo o chefe um revólver na mão direita. Nosso homem se vale de uma distração do outro, desarma-o e mata todos os componentes da quadrilha. O sangue de um deles mancha o tapete da sala, o que provocará o asco da esposa do sonhador. Ela certamente agora desejará vender o tapete. Ou, mais certamente ainda, se ele bem conhece a mulher que tem, insistirá na venda do próprio apartamento, comprado com tanto sacrifício e decorado com tanto capricho.

A grande vantagem dessas premonições é que as tragédias anunciadas não têm data para acontecer na realidade. Aquilo poderá tornar-se realidade naquela semana, no mês seguinte ou daqui a alguns anos. Como, no entanto, ele está convencido de que aquilo de fato ocorrerá, mais dia, menos dia, isso lhe dá a ele um tempo de imortalidade, pois a primeira condição para que seus sonhos se tornem coisa real é que ele esteja vivo, para executar o que o destino lhe reservou. Ele poderá saltar de asa delta, entrar na jaula de um leão ou passar a mão na cara de um tubarão que nada de fatal lhe poderá acontecer, pois, como sabemos, o ser humano não pode alterar o destino. Se está previsto que ele matará aqueles três assaltantes na sala de seu belo apartamento, decorado com móveis de estilo e tapetes orientais, enquanto isso não se der ele não poderá morrer.

Num desses sonhos premonitórios ele está numa estação de metrô apinhada de gente, como é hábito dizer. No meio daquela multidão, um rapaz, mais jovem e mais forte do que ele, volta a cabeça para trás, dá um sorriso e uma piscadela. Ele finge que não é com ele, mas, como autor de seus sonhos, ele bem sabe que é a ele que o rapaz, chamemo-lo de "molestador", está a dirigir-se.

Agora ambos caminham lado a lado, em direção às baias onde encostarão os vagões do metrô. Quando o vagão chega e a porta se abre, forma-se a natural confusão entre as pessoas que querem sair e aquelas que desejam embarcar. Ele se aproveita disso e deixa que o molestador entre antes dele. Agora ele cede sua vez a duas senhoras e passa a caminhar de costas, não entrando no vagão.

A porta do vagão fecha-se, o trem parte e o nosso sonhador senta-se num banco, à espera do próximo trem. A seu lado direito senta-se um cavalheiro que é ninguém menos do que o molestador. Ele agora, além do sorriso cínico no rosto, traz um canivete aberto na mão direita, com o braço dobrado para a frente, em posição de ataque. O sonhador sente na mão esquerda a alça de sua pesada pasta de couro, recheada com papéis e livros. A pasta descreve um semi-círculo, da esquerda para a direita e de fora para dentro, contatando violentamente a mão direita do molestador. Como conseqüência disso, a lâmina do canivete penetra no abdome do molestador. O sonhador levanta-se e acompanha a multidão que se encaminha sabe-se-lá para onde. O corpo do molestador dobra-se para a frente, como se ele estivesse tendo um desmaio ou estivesse bêbado, caindo, por fim, ao solo. As pessoas que passam apressadamente, como é natural, limitam-se a desviar-se do bêbado, onde já se viu? alcoolizado a uma hora dessas.

Impedir que esse drama se concretize é fácil: basta não mais viajar de metrô, nem aqui nem em Buenos Aires ou Paris.

Mais algumas noites e o sonho se repete. Ele está na estação do metrô. Quando vai introduzir o bilhete no orifício da catraca, com a mão direita, ele sente outra mão direita, claramente masculina, colocar-se sobre a mão dele, auxiliando-o na introdução do objeto. Ele não precisa voltar o rosto para saber que atrás dele está o belo rapaz mais jovem e mais forte do que ele.

Ambos passam ao mesmo tempo pela catraca do metrô e agora caminham lado a lado. Ele diminui a velocidade de seus passos o mais que pode, olhando à esquerda e à direita, em busca de algum policial. Tudo o que ele vê de útil é a lojinha de um chinês, que tem no teto milhares de badulaques pendurados. Ele entra na loja, sempre acompanhado pelo molestador, e se dirige ao velho chinês, que os recebe com o tradicional sorriso e a reiterada inclinação do corpo magro para diante.

"Eu quero falar particularmente com o senhor" diz ele. O velho limita-se a sorrir e curvar repetidamente o magro corpo. "Escôria, escôria" é tudo o que o chinês diz. Ele não se dá por achado e, sincopadamente, indaga: "Fala português?" Tudo o que o velho diz é "escôria, escôria", apontando para aquele desmazelo de badulaques.

Ele sai da loja desanimado, tendo ao lado o belo rapaz de sempre. Ambos têm um sorriso nos lábios e caminham lado a lado, como dois amigos, em direção à baia onde tomarão o metrô. Lá chegando, repete-se a mesma cena do despistamento: seu acompanhante entra no vagão e ele fica do lado de fora. Entretanto, ao invés de sentar-se no banco, ele se dirige ao fim do comboio e entra no último vagão. Sua mão esquerda abraça a pasta de couro e a mão direita segura firmemente a barra horizontal que abriga inúmeras outras mãos. Não demora muito e outra mão direita pousa sobre a mão direita dele. Ele não precisa voltar a cabeça para saber de quem se cuida. Na próxima estação ele empurra o molestador porta a fora, contando com a indiferença dos demais passageiros. A queda sofrida pelo belo rapaz talvez tenha sido fatal.

Ora, o leitor familiarizado com a Psicologia já terá notado que os sonhos relatados por nosso personagem demonstram a clara tendência homossexual dele. O rapaz mais jovem, mais forte e belo é ele mesmo, em sua juventude, quando as suas tendências homossexuais vieram à tona. O canivete entrando no abdome, o bilhete penetrando o orifício da catraca são pistas evidentes, além do trem do metrô, que, mais adiante, penetrará num túnel escuro, imagem tão ao gosto de Alfred Hitchcock, como na cena final de Intriga Internacional. A mão direita do outro sobre a mão direita dele é cena bastante sugestiva. Por outro lado, as pessoas entrando no vagão não lembram espermatozóides afanando-se para fecundar um óvulo?

Eu poderia ter dito isso tudo a ele, mas, conhecendo-o muito bem, sei qual seria sua reação. Na certa eu perderia o amigo, se é que não conquistasse um impiedoso inimigo. Resolvi, assim, dar tempo ao tempo, lamentado embora que tantas noites mal dormidas, tanto estresse poderiam ser evitados se ele, com a humildade que lhe faltava, se dispusesse a uma sessão semanal de psicoterapia.

O fato é que ele, durante meses, deixou de utilizar-se do metrô, preferindo os incômodos e a demora da viagem de ônibus. Certo dia, quando passava pela estação central, que se parece com a abertura de um túnel, ele sentiu um calafrio. Dentro dele apareceram dois comandos simultâneos: de um lado, uma voz tentando convencê-lo a deixar de bobagem e voltar ao conforto da viagem por metrô. Era a sedução do princípio do prazer. Ao mesmo tempo, outra voz acenava com o risco decorrente dessa quebra de sua promessa, pois a tragédia final era só questão de tempo. Era a voz do princípio do dever.

Sua indecisão durou poucos minutos, terminando com a vitória do princípio do dever. Ele seguiu em direção ao ponto de ônibus, não deixando, porém, de dar um triste olhar de despedida ao túnel que foi ficando para trás.

Na estação rodoviária, lá estava seu ônibus à sua espera. Porta convidativamente aberta, ninguém na fila, ele apressou o passo, pois não era todo dia que conseguia desfrutar daquele conforto. Pouco antes de atingir a porta do veículo, ele sentiu um braço pesado sendo depositado ao longo de seu ombro, como o de um namorado querendo proteger sua amada.

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.