Circus

Grandes exemplos

Grandes exemplos

28/5/2010

 

"Pedro Conde Filho, ex-aluno da faculdade, diz lamentar a reação dos alunos e afirma que não esperava os protestos contra o nome de seu pai. "A faculdade precisa se modernizar, mas o Estado não tem condições de arcar com isso. Por que ex-alunos bem-sucedidos seriam impedidos de colaborar? Muitas faculdades, no Brasil e no mundo, adotam esse modelo. Agora, não dá para pedir contribuição e não dar nada em troca."

Folha de S.Paulo, 14/5

Fui aluno, dentre outros luminares, do inesquecível professor Goffredo da Silva Telles Junior. Você tem ideia de quem foi o Goffredo? Ainda não se vê o nome dele em alguma porta da faculdade, mas isso é questão de sou menos.

Goffredo (clique aqui), jovem e tímido, pouco mais velho do que a maioria de nós e bem mais novo do que alguns de nossos colegas da turma de 60, o Jafet, por exemplo, abriu-nos as portas da percepção para um mundo encantado, que existia mais em sua imaginação de sonhador do que na dura realidade que viríamos a conhecer depois de formados. Como sua matéria era Introdução à Ciência do Direito e como o Pinto Antunes dava aulas de Economia, não faltava quem dissesse, maldosamente, que as moças, poucas naquela época, não gostavam da Economia do Pinto, preferindo a Introdução do Goffredo.

Falava-nos ele da importância do Direito na vida das sociedades, tanto que tinha ele, o Direito não o Goffredo, uma característica, que o Vadim da Costa Arsky, compositor que, dente outros sucessos musicais, é autor do hino do CPOR, imortalizou num sambinha de breque: era um imperativo atributivo. Ou seja, fez? pagou! Santa ingenuidade, Batman.

A sonhadora ideia era a seguinte: quando a lei reconhece que alguém tem o poder de desfrutar de determinado bem da vida, seja ele um sorvete de coco, seja ele a direção de uma entidade qualquer, a lei reconhece também que, se alguém quer lamber o meu sorvete sem minha autorização, ou vem a revogar indevidamente, quando no exercício eventual daquela presidência, algum ato meu, realizado por mim no exercício da presidência da Escola de Samba Unidos de Piraporinha, tenho eu o poder de chamar a autoridade judiciária de plantão e esta, certamente, dará concretude àquilo, observando o que os pais da pátria inglesa disseram em latim mesmo: "ne corpus liberi hominis capiatur, nec imprisonetur, nec dissuasietur, nec utlagetur, nec exsuletur, nec aliquo modo destruatur, nec rex eat vel mittat super eum vi, nisi per juditium parium suorum vel per legem terrae", coisa que o Bispo William Stubbs, que também era historiador, traduziu para língua de gente viva, quando o texto assim ficou redigido: "no freeman shall be taken, or imprisioned, or disseised, or outlawed, or exiled, or any wise destroyed". Ou seja, justiça pelas próprias mãos? nem pensar.

Em outras palavras, o poder de desfrutar do tal bem da vida traz a tiracolo um outro poder: o de invocar a autoridade judiciária para que esta, em prazo razoável, diga quem tem razão, asseguradas umas tantas garantias aos contendores, mesmo porque "no man, of what state or condition soever he be, shall be put out of his lands, or tenements, nor taken, nor imprisioned, nor indicted, nor put to death, without he be brought in to answer by due process of law". Leram bem? "Prazo razoável".

Advertia-nos ele que longe estava o tempo em que "judges were the neutral protectors of an accused's right and the potential threat to order was too great to allow the obfuscation of lawyers to delay or deny justice". Ou seja, nada de advogado no processo para procrastinar o feito, retardar o julgamento e negar a realização da justiça. Coisa do tempo da sacrossanta Inquisição.

Um tal Jacques Crokaert, quem quer que tenha sido, deslumbrado a mais não poder, comparava os reis ingleses a um semi-deus: "Voici donc un homme, un homme comme les autres, que arrive dans l'immense nef de Westminster. Il n'est encore revêtu d'aucune dignité. Mais l'onction saint fait de lui le délégué de Dieu, l'interprète du Seigneur sur cette Terre; il se crée alors un lieu mystique entre le Pouvoir, que est d'essence divine et y trouve sa pleine justification, et la Divinité: il est Roi par la grace de Dieu, quoique avec l'assentiment de peuples immenses". Eis que veio uma tal Magna Carta Libertatum, seu Concordia inter regem Johannem et Barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni Angliæ e o soberano (ou soberana, como comprova a imortal Elizabeth) passou a suspirar de saudade dos bons tempos em que se acreditava que the King can do no wrong. E deu no que deu.

É claro que a maioria de nós não entendia patavina dessa lenga-lenga, que nem sei se foi mesmo com ele que aprendi. O fato é que um de nós, atrevido a mais não poder, indagou-lhe: "Caro mestre. Se a toda regra descumprida segue-se a aplicação da respectiva sanção, para, com isso, manter-se a sociedade, como ficará a sociedade na seguinte hipótese: para efeitos eugênicos, baixa-se uma lei dizendo que toda pessoa deve matar outra pessoa, sob pena de ser condenado à forca. Assim, todos os moradores desse hipotético país passarão a cumprir a lei. B mata A, C mata B e assim vai até que Z mata Y. Quem sobra nessa sociedade?" Ele teria dado um tímido risinho e balançado a cabeça para a esquerda e para a direita sucessivamente. "Imagino os advogados, os juízes e os promotores que sairão dessa turma" terá ele pensado.

O fato é que hoje temos muitos daqueles alunos pontificando por aí, alguns já encontrei sentados em banco de jardim, à espera de que a geração atual venha a reconhecer sua importância, batizando-se salas e mais salas com seus excelsos nomes, menos a do térreo, fundão da direita, que nossa irreverência chamava de sala Alexandre Correia, onde se liam poemas maravilhosos, como este: "Tenho andado pelo mundo / nunca vi banheiro assim. / Não sou eu que mijo nele, / ele é que mija ni mim". Ou este, de um tal O. Bilac: "Ora, direis, ouvir estrelas. / Certo perdeste o senso. / Se desejas mesmo vê-las / Por que não metes a cabeça na parede?"

Logo logo teremos ali sala Zé Celso Martinez Correa, sala Renato Borghi, sala Amir Haddad e sei lá quantos mais que tiveram o bom senso de entregar o diploma ao pai e ir interpretar noutra freguesia, inspirados certamente no Paulo Autran (clique aqui), patrono deles todos.

É quase certo que, a exemplo daquele personagem do Guy de Maupassant (ou outro escritor francês, talvez o Prosper Mérrimée, todos eles colegas do Modesto Carone, mais um não-advogado da gloriosa turma de 60 e tradutor de um tal de Kafka, que, coincidentemente, entendia de processo judicial como poucos), na falta de l’argent, eles, felizes da vida, resolvam retribuir tal justa homenagem ("não dá para pedir contribuição e não dar nada em troca", eis a regra de ouro do franciscanismo moderno) com cabriolas e saltos mortais.

Acho que vou sugerir isso ao meu prezado amigo Antonio Magalhães Gomes Filho, zelador atual de nossas Arcadas.

 

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.