"Nessa casa do carpinteiro, a vida, apesar de tudo, era tranqüila, e na mesa, ainda que sem farturas de prosperidade, não faltara nunca o pão de cada dia e o mais de conduto que ajuda a alma a manter-se agarrada ao corpo."
José Saramago,
O Evangelho segundo Jesus Cristo
Editora Companhia das Letras
2005, p. 109"A sincronicidade é um conjunto de relações acausais, com muito de caótico, na medida em que um mesmo elemento aparece repetido em sistemas diversos sem que possamos identificar o ponto de ligação entre eles, que, à primeira vista, nos parecem independer um do outro."
Carl Jung,
Sincronicidade: um Princípio de Relações Acausais, Ed. Vozes, 2005.
V. Marie-Louise von Franz, Adivinhação e Sincronicidade – A Psicologia da Probabilidade Significativa, Ed. Cultrix, 1980
Os que de mim tinham algum conhecimento profissional, desses mais íntimos, indagavam-me que estava eu fazendo ali no Tribunal de Alçada Criminal, se nunca antes eu demonstrara pendor pela matéria que ali corria. Respondi-lhes então, e o faço agora que ninguém perde tempo a perguntar-me isso: foi o papa João XXIII.
Explico: tentando entender o incompreensível sentido da vida humana, sempre dividi meu tempo em leituras várias, algumas dizendo respeito àquilo que, à falta de melhor palavra, denominam religião. Como nasci no Ocidente, teria enormes dificuldades em aprofundar-me nas religiões orientais, por mais que me atraíssem (clique aqui). Fiquei no Cristianismo, tentando distinguir as verdadeiras re-ligações de suas caricaturas, que proliferam por esses cantos de Deus, graças principalmente à televisão. João XXIII foi uma dessas figuras maiúsculas da religião católica, atraindo-me principalmente pelo aggiornamento por ele proposto, coisa que o papa atual faz de tudo para transformar em lixo, ou, pelo menos, em vecchiume, meras velharias. Não fosse ele teutônico e de formação militar, certamente diria a respeito do ecumenismo: una bruta fezaria.
Eu tremia com o aviso papal – "estai atentos aos sinais dos tempos" – especialmente como vem exposto na Mater et Magistra, publicada há 50 anos.
Deu-se que, pelo justo critério do merecimento da antiguidade, sem dever favor a político algum nem a má consciência de haver presenteado mulher de desembargador, fui parar em nosso falecido mas inesquecível TACrim. Ali certamente eu ficaria apenas alguns meses, talvez semanas ou, volente Deo, meros dias.
E veio o primeiro dia de sessão.
Era uma revisão criminal. Relator e revisor divergiam, um acolhendo para absolver e o outro mantendo o requerente atrás das grades. Como terceiro juiz, fiz o que qualquer juiz minimamente consciente costuma fazer: pedi vista dos autos.
No dia seguinte, lá estão sobre minha mesa de trabalho os autos do tal processo. Abro-o e tenho um choque. Um choque que me fez jamais deixar de ser juiz criminal, a ponto de aposentar-me, em silencioso protesto, porque, promovido a desembargador, tive recusado (única vez em toda a história do Tribunal de Justiça de São Paulo) meu requerimento de transferência de uma câmara civil para uma câmara criminal.
O que se dizia ali é que a 5ª Câmara do TACrim era composta de juízes novidadeiros, sendo o corifeu ninguém menos do que este que vos fala, que, por sinal, nem sei o que quer dizer isso. A barca que levava fofoca era a mesma que fofoca trazia: "Um dos desembargadores ponderou que a seção criminal é composta de juízes que não mais estão na idade de voltar para os bancos escolares."
"Ou juiz criminal ou pensionista do Estado" teria eu dito aos meus colegas desembargadores, se me dessem alguma satisfação a respeito de seu veto a meu nome, não me bastando o consolo de alguns amigos ("você é melhor juiz civil do que criminal ao ver deles"). Consumou-se, por larga maioria, o descabido veto e resolvi presenteá-los com minha vitalícia ausência, depois de por em mesa todos, absolutamente todos os processos que estavam até então comigo para estudo e voto. Tenho plena convicção de que eles também não estavam mais na idade de fazer um tal tour de force, trabalhando durante todos os dias do mês de julho, manhã, tarde e noite, para não ter de restituir autos sem voto. Quantos deles podem dizer o mesmo?
Encerrando: o nome do réu cuja libertação eu iria conceder ou não era Jesus.
Passam-se décadas e cai-me nas mãos um acórdão que me faz chorar todas as vezes que o leio e que honra o Tribunal de Justiça de São Paulo, sua 36ª. Câmara Cível e, acima de tudo, seu relator, o desembargador José Luis Palma Bisson (clique aqui).
Eu diria uma vez mais, se me permitisse o amigo Cleanto, ser algo digno de ir para a gaveta das sincronicidades junguianas, que ele anda a colecionar.
Ei-lo:
"Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro - ou sem ele -, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia.
Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar.
Fez caber a mim, com efeito, filho de marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna.
Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai - por Deus ainda vivente e trabalhador - legada, olha-me agora.
É uma plaina manual feita por ele em pau-brasil, e que, aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo, cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento disfarçados de autos processuais, tantos são os que nestes vêem apenas papel repetido.
É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino, em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo cola coqueiro - que nem existe mais - num velho fogão a gravetos que nunca faltavam na oficina de marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga, ali tostado no paralelo da faina menina.
Desde esses dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos.
São os marceneiros nesta terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é.
O seu pai, menino, desses marceneiros era.
Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante.
E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante.
Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer.
Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o que você nela tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres.
Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar contando com defensor particular.
O ser filho de marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico.
Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia d'água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.
Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos pobres para defendê-lo?
Quiçá no livro grosso dos preconceitos...
Enfim, menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a gratuidade, em razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer e consegue ouvir.
Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares de definitiva, a antecipação da tutela recursal.
É como, marceneiro, eu voto."
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