"A poesia não nasce da inspiração; nasce do espanto."
José Ribamar Ferreira Gullar
Perguntam ao poeta como é possível ele ser cronista, apresentador de televisão, tocar outros 97 instrumentos e ainda encontrar tempo para fazer poesia. "Ela que consiga seu espaço", responde ele, com aqueles dentes encavalados e aquela cabeleira branca despejando-se-lhe pelos ombros abaixo, argêntea cascata de ideias mil, como diria algum colega dele sem muita inspiração. A técnica mata a poesia, porque lhe impõe regras, tornando a escada mais importante do que a subida, a moldura mais importante do que a pintura, o músico mais importante do que as notas que lhe saiam da alma, diz ele.
"Mas aquilo não é poesia", afirma alguém diante dos versos de pé quebrado que todos já cometemos. Mas quem se atreverá a dizer o que é e o que não é poesia?
O Chico, por exemplo, diz, modestamente, que letra de música não se confunde com poesia. Logo ele que musicou poesias do Vinicius. O caminho para a Distância, por exemplo, primeiro livro de poesia do poetinha, surgiu em 1933. Já Orfeu da Conceição, primeiro disco da dupla Vinicius de Moraes e Antonio Carlos Jobim, surgiu em 1956, quando o Chico tinha míseros 12 anos de idade, pois nasceu em 1944.
E não é do Chico este poema?
Amou daquela vez como se fosse o último,
beijou sua mulher como se fosse a única
e cada filho seu como se fosse o pródigo.
E atravessou a rua com seu passo bêbado,
subiu a construção como se fosse sólido, e
ergueu no patamar quatro paredes mágicas:
tijolo com tijolo num desenho lógico,
seus olhos embotados de cimento e tráfego.
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe.
comeu feijão com arroz como se fosse o máximo.
Sonhou matar a fome, então, nuns seios túrgidos.
No catre remendado ele se achou um príncipe:
por manto de arminho ele vestiu a túnica,
que fora do seu pai, quando servira o exército,
morrera e lhe deixara como herança única.Buzinas na avenida ressoaram lúgubres:
do sonho não voltou porque morrera eufórico;
no rosto inda se via um como riso cínico,
no gesto inda se via uma postura cívica.
Viveu só por viver, como se fosse autômato.
Epa! Tem penetra no baile.
Que o poeta é um fingidor (clique aqui) disse-nos um dos inúmeros Fernandos Pessoas, tantos que nem sabemos se já fomos apresentados a todos.
Eis um poema:
"Morre um pouco de mim
no sepulcro de meu pai.Aquele olhar tão pessoal,
não trago eu no meu rosto?A minha voz, meu sorriso,
acaso são tão só meus?A sabedoria dos tempos,
a onisciência que ele tinha,
herdar como?Partes de mim hoje dormem sob a lápide,
na partilha da partida final,
entre as flores plásticas das alamedas
- homenagem dos que têm menos tempo
do que saudade -.Sinto-me ficado ali
enquanto volto.Ouço ainda
as pás socando a terra
e imagino os coveiros
cobrindo muito mais
do que supõem."
Quem escreveu isso?
Quando mostrei esse poema a um amigo, desses amigos a quem se podem mostrar certas intimidades, como a cicatriz no peito depois das safenas, sabedores de que não se limitarão ao elogio pegajoso nem à censura idiota, ele, emocionado, confessou que havia tentado exprimir isso desde que perdera o pai, mas não havia conseguido fazê-lo. "Obrigado por me libertar dessa angústia", concluiu, emocionado. Como funciona isso?
Há quem não suporte Adélia Prado. E têm toda razão. Ela tem o desplante de viver aquilo em que acredita! Quem de nós consegue?
"Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo
é o sentimento.
Aquele dia de noite,
o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
‘Coitado,
até essa hora no serviço pesado’.
Arrumou pão e café,
deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo."
"E isso lá é poesia?", me indaga o entendido. Então veja isto, digo-lhe procurando não perder a paciência:
"Há dentro de mim
uma paisagem
entre meio-dia e duas horas da tarde.
Aves pernaltas,
os bicos mergulhados na água,
entram e não neste lugar de memória,
uma lagoa rasa com caniço na margem."
E a rima? insiste o entendido.
Pois então tome esta, onde a rima está presente:
"Eu fui no Itororó,
beber água e não achei.
Achei bela morena,
vim sozinho, ela era um gay".
Ele ri de minha provocação. Se prefere uma de que eu não seja o suspeito autor, então aí vai:
"Batatinha, quando nasce,
esparrama a rama pelo chão;
já a menina, quando dorme,
põe a mão no coração."
Feliz com minha escolha?