Circus

Homem de Fé (Um)

Homem de Fé (Um)

19/3/2010

 

Pensei em escrever algo sobre a fé, essa coisa misteriosa de que os mais jovens conseguem prescindir, em sua auto-suficiência, e de que nós, os menos jovens, ai de nós!, tanto necessitamos. Veio-me, porém, à mente um fato absolutamente real, que tudo tem a ver com o tema.

Ele se chamava Melquisedeque, era baiano e testemunha de Jeová. Acredite que é verdade. Está aí a doutora Renata Maria que pode confirmar tudo o que vou contar. Ele nos procurou aflito porque seu filho, que faria 18 anos em outubro, havia marcado o casamento no civil para o mês de agosto. O funcionário encarregado dos proclamas não havia reparado no pormenor, os convites já haviam sido providenciados, contratado bifê e conjunto musical, e agora, quando foi retirar os papéis no cartório, ele ficou sabendo que o casamento só poderia ocorrer na data marcada se tivesse autorização judicial. Devidamente esclarecido por nós sobre o assunto, informou que a moça era virgem, pois a religião deles não permitia essas antecipações não, senhor. "Então não vai sair casamento no mês de agosto", concluí sem rodeios. "Ou então eles se casam primeiro no religioso e, em outubro, confirmam o casamento no civil", sugeri, solucionático. "Nossa religião não permite. Primeiro é o casamento civil depois o religioso", esclareceu o pai do noivo. Não tive como deixar de repetir: "Pois então não vai sair casamento!"

O homem perguntou quanto cobraríamos para tentarmos obter o imprescindível alvará judicial. Ponderei que não poderia ajuizar uma ação temerária, pois a lei só excepcionalmente autorizava o casamento do menor de 18 anos. O caso mais comum é a gravidez da noiva. Sem isso era causa perdida. "Eu pago para o senhor tentar", afirmou categórico, já tirando do bolso o talão de cheques. Lavrei um contrato de prestação de serviços advocatícios, no qual ficava ressalvado que o contratante estava ciente da dificuldade da empreitada, recebi a metade dos honorários e solicitei que me trouxesse uns tantos documentos. Redigi, sem o menor entusiasmo, a petição, historiando os fatos com lealdade e solicitando que, em caráter excepcionalíssimo, fosse concedido o alvará para que o casamento se realizasse no mês de agosto, dado o erro a que havia sido levado o interessado. Distribuí a causa e esperei pelo pior.

Minha primeira surpresa: ouvido sobre o pedido, o curador, em lugar de opinar pelo indeferimento liminar da pretensão, requereu a designação de audiência para ouvir os interessados. Segunda surpresa: o juiz designou a tal audiência, na qual foram ouvidos a noiva, seus pais e o pai do noivo, ficando o rapaz para ser ouvido por fim.

Ele entrou na sala, trajando seu melhor terno de roupa, empertigado, mas respeitoso. O juiz, jovem ainda, fez ver a ele, educadamente, que a lei não permitia o deferimento do pedido. Ainda se ele tivesse deflorado a moça... O rapaz ficou em pé e fez um discurso. Desde os catorze anos ele trabalhava para se manter. Era programador de computação e dava aulas de guitarra, conforme documentos que exibia. A casa onde ele e a esposa iriam morar havia sido adquirida por ele, graças às suas economias. "O senhor está me dizendo que se eu tivesse agido mal contra minha noiva a Justiça nos ampararia. Como eu me portei com dignidade, ela nos abandona?" Um silêncio se estabeleceu na sala. Antes que o juiz respondesse, o rapaz continuou sua candente argumentação. "O senhor pode me esclarecer o que é que dois meses a mais na minha vida vão me dar que eu ainda não tenho?", concluiu, para meu espanto, e sentou-se, muito sério. Antes que o juiz, sempre calmo, dissesse alguma coisa, o curador, tão jovem quanto, ergueu-se e fez outro discurso, dizendo que, como curador, ele deveria zelar pelos interesses dos menores e incapazes. Aquele rapaz que ali estava era menor só formalmente, mas não precisava, positivamente, de ser protegido. A rigor, não era, de fato, nem menor nem incapaz. Concluindo, opinava pela concessão do alvará, mesmo porque, como dissera o rapaz, não era razoável que uma conduta inadequada da parte dele lhe permitisse obter o que, por seu comportamento correto, lhe estaria sendo negado.

Saindo o rapaz da sala de audiência, ali ficamos, porta fechada, os três personagens daquele drama, juiz, curador e advogado, buscando a melhor redação da decisão concessiva do alvará, pois o vade-mecum do Theotônio não trazia qualquer hipótese semelhante a essa. Por fim, alguma coisa como bonus paterfamilias serviu de lastro jurídico para a concessão do almejado alvará.

O importante da narrativa, porém, é o que veio depois.

No dia seguinte, lá estava o Melquisedeque em nosso escritório, para pagar a outra parcela dos honorários. Vinha com compreensível ar vitorioso. Eu procurei dar-lhe todas as explicações possíveis, citei o velho "cabeça de juiz, espingarda velha...", mas realmente ele não me ouvia. Interrompeu-me cordialmente com a mão espalmada. "Agora vou-lhe dizer uma coisa, seu doutor. O nosso pastor também é advogado, e quando eu levei o problema a ele, ele me disse o mesmo que o senhor: eu jamais conseguiria o tal alvará. Eu então lhe disse a ele: meu caro pastor, com todo o respeito que lhe devo, tua fé é bem menor do que a minha!"

 

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.