Circus

Vigiar e Orar

Vigiar e Orar

19/2/2010

 

"Rezo para manter a fé e penso que os ateus devotos são como carolas científicos."

João Sayad

Conhecemo-nos nos bons tempos dos Cursilhos da Cristandade, movimento católico espanhol que no Brasil foi considerado movimento de esquerda, por um desses caprichos do Espírito Santo. Eu, de minha parte, procurava conscientizar aquele bando de incréus de seus escondidos talentos, enquanto ele, padre redentorista, era nosso diretor espiritual. Nos intervalos das palestras (rollos, como se chamavam então), quando não havia quem confessar, ele me chamava e, num canto do belo jardim da casa da rua Marcondésia, nós falávamos de Hélder Câmara e Maritain. Ele era um sacerdote que desenvolvia um belo trabalho na periferia da cidade, envolvido na pastoral operária. Com a ascensão do cardeal Woytila, nossos sonhos de cristianizar a sociedade foi-se esmorecendo, a Teologia da Libertação foi considerada cripto-comunista até por quem jamais havia lido os livros que tratavam disso e eu achei que, entre a saída do Papa e a minha saída, seria melhor para a Igreja Católica que saísse o mais pecador. Ele trocou a batina pela beca, e hoje atua em algum movimento em prol dos chamados direitos humanos. Eu andei por aí, falando menos e agindo mais.

Reencontramo-nos depois de tanto tempo e eu não dispenso a oportunidade de provocá-lo. "Como se sente, sendo atacado pelos dois flancos?" Ele faz uma careta, a de quem não entendeu a pergunta. "De um lado, teus antigos colegas sendo acusados de pedofilia; de outro, teus atuais colegas sendo apontados como membros de quadrilhas de assaltantes". Ele ri e parece mudar de assunto.

Não sou muito chegado a óperas, diz ele. Especialmente agora, com o expediente de colocarem legenda na cantoria, acontece algo que me faz lembrar o velho tempo das missas em latim. "Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada" não tem, positivamente, o impacto do texto original, onde o domus tanto poderia referir-se à casa propriamente dita, como ao interior da pessoa. Eu não sou digno de que meu mísero corpo se torne templo de Teu espírito. Era assim que entendíamos o texto nos velhos tempos do seminário, lá em Nepomuceno. Domus e dominus, a casa, o senhor da casa e o dono de tudo.

Não nego, no entanto, continua ele, que Giacomo Puccini é autor de obras magníficas, tais como Tosca, Madame Butterfly, La Bohème e Turandot. A história da oriental que se apaixona pelo soldado estrangeiro e depois é deixada em seu país de origem, não poucas vezes com o fruto daquele amor, é mais universal do que se pode supor. As vietnamitas que o digam. Pois Puccini escreveu também um tríptico pouco encenado entre nós, que nosso causídico conheceu quando estagiava no Vaticano, algumas décadas faz. É o que ele diz.

São três mini-óperas distintas, cada qual de um único ato: na primeira, Il Tabarro, narra ele a tragédia de um triângulo amoroso; na segunda, que se destaca por belíssimo solo da soprano, enfoca, de modo corajoso para a época, a trajetória de Soror Angélica, membro da nobreza que, havendo-se engravidado sem as bênçãos da Igreja, é destinada pela família à vida religiosa (nossos pais choraram lágrimas copiosas com a história de Albertinho Limonta e seu direito de nascer, claramente decalcado no episódio constante dessa ópera pucciniana, cópia que o cubano escritor D. Félix Cagnet jamais confessou ter feito).

Interessa-nos, porém, diz ele, falar da terceira parte daquele tríptico, chamada Gianni Schicchi. Nela narra o autor a história de um moribundo, proprietário de muitos bens, que é cuidado pelos sobrinhos, claramente interessados na herança do velho, como ocorre nas famílias normais. Parente é serpente, como sintetizou o conterrâneo do velho Puccini, o Mário Monicelli, que ainda outro dia vi na televisão fazendo uma pontinha no filme “Sob o céu da Toscana”, que me matou a saudade da Itália, continua o hoje causídico.

Pois vindo a falecer o tal moribundo, descobrem os tais parentes, ainda quente o corpo, que toda a herança fora destinada aos padres da igreja local, aqueles safados que se valeram da ascendência sobre o moribundo para aumentar a sua já enorme riqueza. Pobres padres! Depois de amaldiçoarem o cadáver e os padres, os quase herdeiros recordam-se de que o pai da namorada de um deles (que contava com a herança para com ela casar-se) é um ilustre advogado, cujo nome dá título à mini-ópera. Convocado às pressas, o dottore Schicchi verifica que o testamento está formalmente em ordem, nada podendo ser feito para impugná-lo judicialmente. Entretanto, valendo-se de seus dotes histriônicos (certa vez, acrescenta o narrador, quando um inglês me perguntou qual a minha profissão, eu, surpreendido com a pergunta, respondi "I'm a liar". Ele se surpreendeu com minha resposta, e eu, notando a confusão verbal, corrigi: "I'm a lawyer". Ao que ele retrucou sem se dar por achado: "Same thing!"), o bacharel Schicchi mostra aos clientes toda sua verve, emprestando a voz ao cadáver quando da visita do médico, que se espanta com seu excelente estado de saúde. Encorajados pelo sagaz causídico, chamam imediatamente o escrivão, que, comparecendo à casa do falecido (que é escondido enquanto o advogado ocupa seu lugar no leito e se põe a imitar sua entonação de voz), acompanhado de duas testemunhas, lavra em suas notas o testamento que, fazendo-se passar pelo moribundo, lhe é ditado por Gianni. Claro que o testador tem o cuidado de destinar a casa onde todos se encontram a seu particular amigo o ilustre Dr. Gianni Schicchi. Terminada a encenação, após assinada a escritura, devidamente testemunhada pelos acompanhantes do notário, o advogado expulsa todos da casa que, agora, por vontade do moribundo, lhe pertence, como honorários pelo serviço feito aos até então deserdados. Triste fama essa dos nossos colegas, conclui o ex-sacerdote.

Conto-lhe, então, que chegaram ao céu, ao mesmo tempo, um bispo e um advogado. Ao bispo foi indicado um ponto de ônibus, onde ele tomaria a condução que o levaria à merecida Eternidade. Já ao advogado, foi-lhe posta à disposição uma limusine, com motorista particular. Compreensivelmente, o bispo foi queixar-se ao responsável pelo Paraíso, invocando o princípio da isonomia. Pelo menos isso, se não fosse para reconhecer sua preferência em face de seu mísero subalterno espiritual. E recebeu a santa explicação: bispos aqui nós temos centenas, enquanto que advogados ...

Para consolá-lo, digo que Puccini não estava só em sua avaliação dos atributos da maioria dos causídicos. Comprova-se isso pela observação feita por um ilustre conhecedor do tema ao decálogo em que Santo Afonso de Liguori, superior hierárquico do nosso ex-redentorista, resumiu os deveres de seus colegas (il dottore Afonso fora advogado em Nápoles e sabia muito bem do que falava). Depois de reproduzir os mandamentos do advogado, o professor Gabriel de Rezende Filho, em seu Curso de Direito Processual Civil, anota: "se Afonso, enquanto advogado, cumpriu o seu decálogo, mereceu, certamente, ser canonizado!"

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.