Arbitragem Legal

Autonomia procedimental da arbitragem e o CPC

Professor Thiago Marinho Nunes discorre sobre autonomia procedimental da arbitragem e o CPC, a propósito de recente decisão do STJ.

24/9/2024

Em 21 de agosto de 2024, foi proferido julgamento do Recurso Especial nº 1.851.324-RS, de relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, da 3° turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), em que se rejeitou decisão que anulava sentença arbitral cuja fundamentação se baseava, dentre outros, em prova objeto de tradução de idioma estrangeiro para o português feito por preposto da parte e não por tradutor qualificado, como auxiliar da justiça processual civil. Transcreve-se abaixo parte da ementa do correspondente acórdão1: 

“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA DE SENTENÇA ARBITRAL. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DO PROCEDIMENTO ARBITRAL, ESPECIFICAMENTE EM SUA FASE INSTRUTÓRIA, EM RAZÃO DA ATUAÇÃO DO PREPOSTO DA PARTE COMO TRADUTOR, POR OCASIÃO DA OITIVA DE TESTEMUNHAS DE NACIONALIDADE CHINESA. CIRCUNSTÂNCIA EXPRESSAMENTE ADMITIDA PELO ÁRBITRO, EM DIÁLOGO PARTICIPATIVO TRAVADO COM AS PARTES, ASSEGURANDO-LHES, AO FINAL, A DISPONIBILIZAÇÃO DA DEGRAVAÇÃO DOS DEPOIMENTOS E DA TRADUÇÃO, E DEIXANDO ASSENTE A POSSIBILIDADE, CASO HOUVESSE ALGUMA INCONGRUÊNCIA DA TRADUÇÃO, DE A QUESTÃO SER LEVADA AO CONHECIMENTO DO TRIBUNAL ARBITRAL, COM FIXAÇÃO DE PRAZO A ESSE PROPÓSITO. CONCORDÂNCIA MANIFESTADA PELAS PARTES. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, À REVELIA DAS NORMAS PROCEDIMENTAIS ELEITAS PELAS PARTES. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO”. 

No caso em tela, a prova testemunhal colhida por meio de pessoas de nacionalidade chinesa fora objeto de tradução feito por prepostos da própria parte que arrolara as referidas testemunhas, tendo sido a adoção de tal prática acordada entre as partes contendentes no curso do processo arbitral. 

Provavelmente irresignada com o resultado da arbitragem, a parte perdedora ajuizou ação de anulação de sentença arbitral perante o Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul o qual adotou postura formalista, ao fazer alusão à regra disposta no art. 148 do Código de Processo Civil (“CPC”), isto é, pelo impedimento e suspeição do tradutor utilizado pela parte, que no caso, era preposto da própria parte. Assim, resumidamente, entendeu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (“TJRS”2): 

“APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. ANULATÓRIA. SENTENÇA ARBITRAL. NULIDADE VERIFICADA. ART 32 DA LEI Nº 9307/96. HIPÓTESES TAXATIVAS. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CPC. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA VAZIA. SUSPEIÇÃO DE TRADUTOR OU INTÉRPRETE. ART. 148 DO CPC.

Procedimento arbitral que, embora possua regramento próprio, estabelecido pela lei 9.307/96, sendo lícito às partes convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios de direito, nos costumes e nas regras internacionais de comércio, nos termos do art. 2°, § 1° da referida lei, não prevê hipóteses de suspeição e de impedimento dos intérpretes e tradutores. Aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, ante a eleição, pelas partes, da lei brasileira como norma de regência.

Manutenção da sentença que se impõe.

Caso concreto em que o preposto do apelante foi nomeado, em audiência no procedimento arbitral, como tradutor/intérprete de uma das testemunhas. Aplicação do art. 148 do CPC

Sentença anulatória da audiência e da sentença arbitrai que se impõe. Honorários majorados pela disposição contida no art. 85, § 11, do NCPC. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME”. 

Tal premissa foi rechaçada pelo STJ no precedente acima, de forma unânime, tendo aquela corte adotado entendimento de vital importância no processo arbitral: são as partes as verdadeiras comandantes da arbitragem, cabendo a elas, por meio de suas convenções estabelecer o regramento a ser seguido no processo pelo tribunal arbitral, dando-se, assim, plena vigência ao disposto no art. 21, caput, da lei 9.307/96 (“Lei de Arbitragem”): “A arbitragem obedecerá ao procedimento estabelecido pelas partes na convenção de arbitragem, que poderá reportar-se às regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada, facultando-se, ainda, às partes delegar ao próprio árbitro, ou ao tribunal arbitral, regular o procedimento”. A esse respeito, destacam-se as seguintes passagens do acórdão: 

“O procedimento arbitral é, pois, regido, nessa ordem, pelas convenções estabelecidas entre as partes litigantes – o que se dá tanto por ocasião do compromisso arbitral ou da assinatura do termo de arbitragem, como no curso do processo arbitral –, pelo regulamento do Tribunal arbitral eleito e pelas determinações exaradas pelo árbitro. 

Pode-se antever, assim, que o rito da arbitragem guarda, em si, como característica inerente, a flexibilidade, o que tem o condão, a um só tempo, de adequar o procedimento à causa posta em julgamento, segundo as suas particularidades, bem como às conveniências e às necessidades das partes (inclusive quanto aos custos que estão dispostas a arcar para o deslinde da controvérsia), reduzindo, por consequência, eventuais diferenças de cultura processual própria dos sistemas judiciais adotados em seus países de origem”. 

Pensa-se que é a partir da valoração dessa dita autonomia procedimental que deve ser lido e interpretado o acórdão de lavra do STJ e não pela pretensa inaplicabilidade do CPC à arbitragem. 

Conforme já se tratou em outro estudo3, tratar da aplicação do direito processual no âmbito da arbitragem constitui tema sensível e que deve ser tratado de forma extremamente cautelosa. Isso porque, conforme lecionado por autorizada doutrina. no âmbito interno, por mais que os dispositivos do CPC não sejam aplicados à arbitragem, não há dúvidas de que seus princípios se aplicam4. 

Apesar de tal premissa ser correta, ela precisa ser mais bem dosada, uma vez que não apenas os princípios de direito processual-constitucional se aplicam à arbitragem, mas outras regras processuais gerais e de caráter principiológico também se aplicam. Isso vale para o princípio da duração razoável do processo (art. 4º do CPC), para comportamento processual conforme a boa-fé (art. 5º do CPC), para o princípio da cooperação processual (art. 6º do CPC), para a vedação da decisão surpresa (art. 9º do CPC), dentre outros. 

E não só as normas de índole principiológica acima citadas se aplicam a qualquer processo arbitral, mas outras, que compõem o escopo do direito processual civil se aplicam a qualquer processo de natureza cível: a regra atinente à distribuição do ônus da prova (art. 373 do CPC), os elementos essenciais da sentença, em especial a sua fundamentação (art. 489 do CPC) o conceito de coisa julgada material (art. 502 do CPC), o conceito de litispendência (art. 337, § 3º do CPC), a aplicação de regras sobre sucumbência (art. 85 e seguintes do CPC), quando esta é autorizada pelas partes, a imposição de astreintes (art. 537 do CPC), quando necessário, dentre outros. Trata-se de regras que se aplicam, por analogia e de forma natural em qualquer processo, inclusive no arbitral, sobretudo em razão da escassez de regras processuais gerais no sistema arbitral5. 

No caso ora discutido, o STJ, acertadamente, afastou a aplicação de um dispositivo isolado do CPC, não pela sua inaplicabilidade propriamente dita – trata-se de dispositivo aplicável ao procedimento estatal6 –, mas muito mais no sentido preservar o regramento procedimental acordado entre as partes para a instrução da arbitragem7, combinado com diversas regras processuais (que estão dispostas no CPC, mas não foram mencionadas no julgado), atinentes ao contraditório participativo, à cooperação das partes e a vedação da decisão surpresa8). No caso ora comentado, ambas as partes concordaram que o preposto da parte que arrolara a testemunha serviria de tradutor, dispensando-se qualquer regramento formal a respeito da figura de auxiliar do julgador, na forma do CPC. Trata-se de prática comum no âmbito arbitral, em que a flexibilidade procedimental prevalece sobre a rigidez das regras adotadas nos processos judiciais, devendo eventual regra do CPC se aplicar quando compatível com o sistema arbitral9. 

Não se está aqui a falar de aplicabilidade do CPC à arbitragem, mas do próprio direito processual civil à arbitragem. Destarte, não se deve perder de vista o caráter processual da arbitragem, que, como no processo civil, tem como fim o estabelecimento de uma prestação jurisdicional e não podem e não devem ser tratados de forma isolada10. Ambos os sistemas geram efeitos paralelos semelhantes.11 Nesse sentido, cita-se a clássica lição de Francesco Carnelutti:

“(...)Todavia, a meu aviso, com a arbitragem já estamos no terreno do processo, onde não creio que – diferentemente da transação e do processo estrangeiro – seja no caso de compreendê-la entre os equivalentes processuais. A razão está em que, à diferença do processo estrangeiro, o processo arbitral é regulado pelo nosso ordenamento jurídico não apenas no sentido de controle dos requisitos da sentença arbitral e dos seus pressupostos, mas também e acima disto, pela ingerência do Estado no desenvolvimento do próprio processo (...)”12.

O objetivo dessas linhas é não apenas aplaudir o precedente ora discutido, mas procurar dar um enfoque interpretativo distinto do que tem sido preconizado por renomada doutrina13-14: pensa-se, que não se trata de extirpar a aplicabilidade de eventuais normas do CPC à arbitragem, mas de privilegiar a sua autonomia procedimental e, assim, dar plena vigência ao disposto no art. 21, caput, da Lei de Arbitragem.

__________

1 STJ – Terceira Turma, REsp nº 1.851.324/RS, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, j. 21.08.2024.

2 TJRS – Décima Oitava Câmara Cível, Apelação Cível nº 0241542-14.2017.8.21.7000, Rel. Des. João Moreno Pomar, j. 26.04.2018.

3 Ver, a esse respeito: Disponível aqui

4 Ver, nesse sentido: CARMONA, Carlos Alberto. O Processo Arbitral. In: Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo: RT, V. 1, n. 1, jan-abr, 2004, p. 28.

5 Nesse sentido, ao tratar da insuficiência de regras sobre a prova na Lei de Arbitragem, ensina Cândido Rangel Dinamarco: “Diante da escassez de normas sobre a prova na Lei de Arbitragem e particularmente em seu art. 22, devem ter-se por importadas ao processo arbitral, ainda que cum grano salis, certas disposições, exigências e ressalvas presentes na disciplina probatória do processo civil comum, as quais, como normas gerais de processo, são de aplicação subsidiária ao processo arbitral regido pela lei brasileira. Essa é também uma consequência natural da inserção do microssistema da arbitragem no sistema do processo civil comum (...). (DINAMARCO, Cândido Rangel. O Processo Arbitral. Curitiba, Editora Direito Contemporâneo, 2ª edição, 2022, p. 181).

6 Ver, a esse respeito: APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Normas processuais aplicáveis à arbitragem. Parâmetros para a aplicação de normas processuais gerais ao processo arbitral. Tese de Livre Docência. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2022, p. 34-35.

7 Segundo o acórdão ora comentado: “Especificamente sobre a prova testemunhal – sem nenhum paralelo com o modo como a prova testemunhal é produzida no processo judicial –, ficou convencionado que as partes deveriam encaminhar, em data especificada pelo árbitro (antes da designada para a audiência), o depoimento por escrito das testemunhas, elaborado pelo próprio depoente, respondendo os questionamentos do patrono da parte que o arrolou, sobre o qual versará a inquirição da outra parte em audiência (que dele terá acesso com antecedência). Também se convencionou que a parte que arrola a testemunha deverá auxiliá-la na elaboração da declaração testemunhal e na preparação de sua inquirição em audiência, sendo, pois, responsável pelas correlatas despesas (...). Registra-se, por oportuno, não ter havido qualquer insurgência, por parte da Usimec, quanto aos depoimentos escritos das testemunhas indicadas pela Citic, acostados aos autos, com as correlatas traduções, realizadas por seu preposto. Tampouco houve irresignação quanto à informação trazida àqueles autos de que a Citic, por ocasião da realização da audiência, disponibilizaria tradutor, que atuaria, portanto, como seu preposto (...)”.

8 A esse respeito, alguns trechos do acórdão merecem ser citados: “Veja-se que, na fase instrutória desenvolvida no procedimento arbitral, de toda descolada do formalismo próprio do processo judicial, cabe ao árbitro, exclusivamente, definir – em um contraditório participativo – não apenas a pertinência de determinada prova para o deslinde da controvérsia e o momento em que dará a sua produção, mas, principalmente, o modo como esta será produzida. Por contraditório participativo compreende-se a postura cooperativa das partes com o árbitro e deste com aquelas, de modo que a coordenação dos atos processuais e as decisões, ainda que se refiram a matérias cognoscíveis de ofício, sejam exaradas após a oitiva das partes, garantindo-lhes não apenas a informação/ciência a seu respeito, mas, principalmente, a possibilidade de se manifestar, de agir, bem como de influir no vindouro provimento arbitral Essa salutar e conveniente interação entre as partes e o árbitro impede não apenas a prolação de uma decisão surpresa, mas também obsta, por outro lado, que as partes apresentem comportamento e pretensões incoerentes com a postura efetivamente externada durante todo o diálogo processual travado no procedimento arbitral”.

9 A esse respeito, leciona Cândido Dinamarco: “Em resumo, e com outras palavras: a) o Código de Processo Civil só se aplica quando não houver lex specialis contida na Lei de Arbitragem nem a escolha de qualquer outra fonte normativa pelas partes; b) a Lei de Arbitragem sobrepõe-se ao Código de Processo Civil mas só se aplica naquilo que não haja sido disciplinado pelas próprias partes, diretamente ou mediante remissão ao regulamento de alguma instituição arbitral; c) nada dispondo as partes acerca do procedimento, “caberá ao árbitro ou ao tribunal arbitral discipliná-lo”; d) as regras de procedimento traçadas pelas partes ou pelo árbitro sobrepõem-se às contidas no Código de Processo Civil e na própria Lei de Arbitragem sempre que não contrariem a ordem pública e as garantias integrantes da tutela constitucional do processo”. (DINAMARCO, Cândido Rangel. A arbitragem na teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2013, p .46-47).

10 A nocividade de tal isolamento é bem detalhada por Ricardo de Carvalho Aprigliano: “É imperioso reconhecer que não pode haver um processo arbitral completo sem o recurso a noções que são externas à Lei de Arbitragem. Como já afirmado, “se houvesse a aplicação da Lei de Arbitragem, sem qualquer recurso a noções, conceitos e institutos que lhes são exteriores, teríamos uma figura sem forma, um processo sem base, um procedimento sem propósito”163. A questão não é tanto a de se discutir a autonomia do processo arbitral, ou aceitar que se trata de método com suas peculiaridades, mas a de, para assegurar essas diferenças, sustentar um isolamento conceitual que, no frigir dos ovos, retira do processo arbitral a sua operabilidade, por lhe retirar a espinha dorsal, os conceitos fundamentais nos quais qualquer manifestação de processo deve se basear”. (Normas processuais aplicáveis à arbitragem. Parâmetros para a aplicação de normas processuais gerais ao processo arbitral. Tese de Livre Docência. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2022, p. 77).

11 O paralelismo dos efeitos das vias judicial e arbitral é assim explicado por Donaldo Armelin: “(...) até porque a via arbitral serve, assim como o processo civil, de veículo legal e constitucional para o acesso à Justiça, observando os mesmos princípios garantidores do devido processo legal guardadas as peculiaridades desses dois institutos” (Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, n. 15, p. 79, out.-dez. 2007).

12 CARNELUTTI, Francesco. Sistema di diritto processuale civile. Pádua: Cedam, 1936. v. 1, p. 179 (tradução de Carlos Alberto Carmona em A arbitragem no processo civil brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 19).

13 Ver, a esse respeito, as notas de José Antonio Fichtner e Rodrigo Salton sobre o caso objeto dessas linhas: Disponível aqui.

14 GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Na pauta do STJ: em xeque, a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil a procedimentos arbitrais. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 125, 2024. Disponível aqui.

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Colunista

Thiago Marinho Nunes é doutor em Direito Internacional e Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Mestre em Contencioso, Arbitragem e Modos Alternativos de Resolução de Conflitos pela Universidade de Paris II – Panthéon-Assas; Vice-Presidente da CAMARB; Fellow do Chartered Institute of Arbitrators; Professor Titular de Arbitragem e Mediação do IBMEC-SP; árbitro independente.