Arbitragem Legal

Interrupção da prescrição na arbitragem no anteprojeto de reforma do Código Civil

Professor Thiago Marinho Nunes discorre sobre a regra proposta acerca da interrupção da prescrição na arbitragem no anteprojeto de reforma do Código Civil.

27/8/2024

Em 17 de abril de 2024 foi entregue ao Senado Federal o texto final contendo as propostas legislativas visando à atualização da lei 10.406/2002 ("Código Civil" ou "CC"). 

As presentes linhas não possuem o objetivo de tecer críticas ao texto do aludido anteprojeto, mas tão somente levantar algumas considerações a respeito de tema de direito material crítico e com reflexos no processo arbitral: a interrupção da prescrição. 

As relações entre as causas extintivas do direito de ação e a arbitragem comercial não foram objeto de debates antes da vigência da lei 9.307/1996 ("Lei de Arbitragem"), que instituiu de forma completa o processo arbitral no Brasil. A razão da ausência de qualquer debate a respeito da incidência da prescrição na arbitragem era evidente: por ser a prescrição um instituto de direito material e a Lei de Arbitragem um diploma processual, não haveria motivo para discussão a respeito da prescrição. Tudo se resolveria por meio da lei material. 

Com o passar o do tempo e o desenvolvimento crescente da prática arbitral no Brasil, as dúvidas a respeito dos efeitos do instituto da prescrição extintiva foram surgindo entre os operadores do direito. Considerando-se especialmente as peculiaridades das regras do processo arbitral, algumas proposições foram feitas (por esse autor, inclusive1), com apoio no direito comparado, de modo a garantir segurança jurídica a respeito da certeza do ato interruptivo da prescrição no âmbito da arbitragem. 

Diante da peculiaridade e importância da matéria, sobreveio a lei 13.129/2015 que, entre outras importantes disposições, criou o § 2º ao art. 19 da Lei de Arbitragem, estabelecendo regra acerca do momento da interrupção do prazo de prescrição no âmbito de uma arbitragem: "§ 2o A instituição da arbitragem interrompe a prescrição, retroagindo à data do requerimento de sua instauração, ainda que extinta a arbitragem por ausência de jurisdição". 

Ainda que louvável a iniciativa do legislador, tal regra não encontra uma correspondente direta nas hipóteses de interrupção da prescrição ditadas pelo art. 202 do CC, considerando-se insuficiente e insegura2 para resolver o problema da interrupção da prescrição na arbitragem. 

Muito provavelmente em razão disso, tal matéria não passou despercebida pela diligente comissão que elaborou o anteprojeto visando mudanças no CC, tendo proposto o seguinte regramento em relação às hipóteses de interrupção da prescrição: 

"Art. 202. A interrupção da prescrição dar-se-á:

I - pelo despacho que ordenar a citação, retroagindo seus efeitos para a data da propositura da ação, mesmo que incompetente o juiz ou o árbitro para o exame do mérito, e desde que o autor a promova no prazo e na forma da lei processual;

II - por qualquer outra forma de interpelação judicial ou extrajudicial, como a notificação do devedor ou o protesto de documentos que contenham obrigação exigível

III - pela apresentação do título da dívida em juízo de inventário, em procedimento de concurso de credores, em procedimentos de arrecadação de bens ou em protesto no rosto dos autos de processo judicial ou arbitral

IV - por qualquer ato judicial ou extrajudicial que constitua em mora o devedor

V - por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor, inclusive pela propositura de ação revisional". 

No entanto, por mais que se louve os esforços da comissão, tal proposta de alteração, em princípio, ainda gera dúvidas e não parece ser a ideal, ao menos, no que se relaciona à arbitragem. A proposta do inciso I parece se alinhar ao disposto no art. 19, § 2º da Lei de Arbitragem, mas faz menção ao termo "citação", inexistente no âmbito arbitral3. E, ainda que se faça uma interpretação teleológica da referida disposição4, isto é, de que haveria a retroatividade dos efeitos da interrupção à data da “propositura da ação”, remanesceria dúvida quanto a tal ponto no âmbito da arbitragem, que se inicia com um requerimento de instauração de processo arbitral, em que sequer há a obrigatoriedade da formulação de pedidos. Como bem afirma Cândido Rangel Dinamarco, no processo arbitral, a verdadeira demanda arbitral se dá com a apresentação das alegações iniciais pela parte requerente e não no requerimento de instauração da arbitragem5. 

A proposta legislativa, tal como se encontra, pode até resolver a dificuldade inerente à interrupção da prescrição no âmbito da arbitragem, não pelos incisos que mencionam o instituto da arbitragem, mas pelo inciso II, segundo o qual a prescrição resta interrompida “por qualquer outra forma de interpelação judicial ou extrajudicial, como a notificação do devedor ou o protesto de documentos que contenham obrigação exigível”. Nesse caso, há uma possibilidade mais plausível de se equiparar o requerimento de instauração da arbitragem à dita “notificação do devedor em caráter extrajudicial” e resolve-se, sem preocupações, o problema relativo à interrupção da prescrição. Ou mesmo com o útil instrumento do protesto judicial (também abarcado pelo inciso II), certamente o mais seguro, na atualidade, para a garantia da interrupção da prescrição no âmbito da arbitragem6. 

Vale, ao final, lembrar dos benefícios que o direito comparado traz visando à reforma ou a melhor compreensão de nosso direito nacional. O direito italiano, por exemplo, contém regra muito clara acerca da interrupção da prescrição no âmbito de uma arbitragem. Assim dispõe o Código Civil Italiano, em seu art. 2.943: "A prescrição é também interrompida por qualquer outro ato capaz de constituir o devedor em mora ou por uma notificação em que uma parte, na presença de convenção de arbitragem, declara à outra parte a sua intenção de instituir procedimento arbitral, apresentando a sua demanda e indicando o seu árbitro"7. 

Por seu turno, o direito suíço, no art. 135 (2) do respectivo Código de Obrigações dispõe: "A prescrição é interrompida [...] 2. Quando o credor faz valer seus direitos por meio de demandas judiciais, por meio de uma ação ou uma exceção perante um tribunal ou árbitros, pela intervenção da falência ou por uma citação ou conciliação"8. 

Por fim, conquanto não mencione o termo "arbitragem" o Código Civil Francês simplificou a questão, excluindo o termo "citação" e mencionando tão somente "demanda em justiça"9 para efeitos de interrupção da prescrição, o que certamente se aplica à arbitragem, conforme já demonstrado pela jurisprudência da Corte de Cassação Francesa10. 

Os exemplos acima, demonstram a utilidade que o direito comparado pode exercer no aperfeiçoamento do direito nacional11. O Brasil pode, certamente, se socorrer do direito comparado de modo a encontrar a melhor solução para a definição do momento exato da interrupção da prescrição em sede de arbitragem, fixando-se regra direta e clara no CC a respeito de tal tema. 

O objetivo essas linhas é demonstrar que o tema relativo à interrupção da prescrição no âmbito da arbitragem é bastante peculiar e difícil de ser resolvido. Muito mais em razão das peculiaridades do processo arbitral, o qual se insere em sistema próprio e dissociado do processo estatal. Espera-se que as novas regras legislativas sobre tal tema possam se alinhar com o que já consta da Lei de Arbitragem, evitando-se confusão aos operadores da arbitragem.

__________

1 Ver, a esse respeito: NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014.

2 Tema tratado em: Arbitragens de construção e interrupção do prazo prescricional - Migalhas. Acesso em, 25 ago. 2024. Em sentido contrário, ver: COELHO, Eleonora e MAIA, Louise. Arbitragem e prescrição in Comitê Brasileiro de Arbitragem e a Arbitragem: obra comemorativa ao 20º aniversário do CBAr (coord. NANNI, Giovanni Ettore, RICCIO, Karina e DINIZ, Lucas de Medeiros). São Paulo: Almedina, 2022, p. 155-181.

3 Ver, a esse respeito, NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014, p. 214.

4 Ver, nesse sentido: CARVALHO e SILVA, Olympio. A prescrição no direito internacional privado brasileiro. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Direito. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, 2011.

5 DINAMARCO. Cândido Rangel. A arbitragem na teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 140.

6 Ver, a esse respeito: LEE, João Bosco. A internacionalidade da arbitragem – A lei aplicável à prescrição – A interrupção do prazo prescricional em procedimento arbitral (parecer). Estudos de arbitragem. Curitiba: Juruá, 2008. p. 372; PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Processo arbitral e sistema. São Paulo: Atlas, 2012. p. 145-146.

7 Para referência no original. Acesso em 23 ago. 2024.

8 Para referência, no original: RS 220 - Loi fédérale du 30 mars 1911 complétant... | Fedlex (admin.ch). Acesso em 23 ago. 2024.

9 O revogado art. 2.244 do Código Civil Francês era assim redigido: "Une citation en justice, même en référé, un commandement ou une saisie, signifiés à celui qu'on veut empêcher de prescrire, interrompent la prescription ainsi que les délais pour agir." Após o advento da lei 2008-561, as causas de interrupção da prescrição foram simplificadas e a referida disposição deu lugar ao novo art. 2.241 do CC, cuja redação é a seguinte: "La demande en justice, même en référé, interrompt le délai de prescription ainsi que le délai de forclusion. Il en est de même lorsqu’elle est portée devant une juridiction incompétente ou lorsque l’acte de saisine de la juridiction est annulé par l’effet d’un vice de procédure".

10 Decisão proferida pela Corte de Cassação Francesa (2ª Ch. Civ.) em 11.12.1985, Guilbert c/Société de Développement de Transport Artisanal par Eaux (S.D.T.A.E), com nota de Jacques Pellerin, Revue de l’Arbitrage, Paris: Comité Français de l’Arbitrage, p. 387-390, 1987.

11 Com efeito, entre os objetivos do presente estudo, encontra-se o de utilizar o direito comparado como subsídio para melhorar o direito interno. Já dizia René David que um dos pontos de utilidade do direito comparado é justamente conhecer melhor e aperfeiçoar o nosso direito nacional (DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 4. No mesmo sentido, v. SACCO, Rodolfo. Introdução ao direito comparado. Tradução de Véra Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 2001. p. 49; e ainda, v. CONSTANTINESCO, Leontin-Jean. Tratado de direito comparado: introdução ao direito comparado. Edição brasileira organizada por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 157).

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Colunista

Thiago Marinho Nunes é doutor em Direito Internacional e Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Mestre em Contencioso, Arbitragem e Modos Alternativos de Resolução de Conflitos pela Universidade de Paris II – Panthéon-Assas; Vice-Presidente da CAMARB; Fellow do Chartered Institute of Arbitrators; Professor Titular de Arbitragem e Mediação do IBMEC-SP; árbitro independente.