Arbitragem Legal

O STJ e o dever de revelação: A importância da distinção de fato não revelado e parcialidade do árbitro

O STJ decidiu que a omissão de informações pelo árbitro não anula automaticamente uma sentença arbitral. No caso REsp 2.101.901/SP, foi rejeitada a tática de alegar vícios na revelação para invalidar arbitragens.

30/7/2024

Um dos tópicos mais discutidos na seara arbitral brasileira nos últimos anos diz respeito ao alcance e extensão da norma contida no art. 14, § 1º da lei 9.307/96 (“lei de arbitragem”). Tal regra delimita uma obrigação considerada de meio do profissional que pretende exercer a função de árbitro, o dever de revelar, de modo a gerar total transparência ao processo arbitral.

Fato é que, considerado o processo arbitral como tendo início meio e fim1, sendo a sua decisão final irrecorrível, para todos os efeitos, partes não satisfeitas com o resultado da demanda têm-se utilizado de subterfúgios que procuram induzir em erro magistrados no que diz respeito à má aplicação da regra prevista no art. 14, § 1º da lei de arbitragem. Tal indução se traduz pela seguinte tática: Se profissional que exerce a função de árbitro deixou de revelar algum fato, qualquer que seja, e mesmo que irrelevante, tal conduta macularia de vez o processe arbitral. Talvez tenha sido essa, inclusive, a ideia (não levada a cabo) por um projeto de lei que não avançou junto ao Poder Legislativo justamente por sua deficiência técnica.

Mas, tal tática, totalmente contrária à boa-fé processual, restou rechaçada em precedente recentíssimo emanado do STJ, o qual já pode ser considerado o mais importante julgado em matéria de dever de revelação daquela corte e que servirá de paradigma para casos que perquiram a mesma estratégia, a qual, no fundo, é desconstituir o julgado arbitral de forma completamente artificial.

O caso ora referido é o REsp 2.101.901/SP, julgado no dia 20/6/24 de competência da Terceira Turma do STJ, que precisou responder ao seguinte questionamento: A eventual ausência de revelação de determinado fato no curso de uma arbitragem acarretaria, automaticamente, a anulação da sentença arbitral? A resposta foi negativa. Abaixo, transcreve-se a ementa do correspondente acórdão:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE SENTENÇA ARBITRAL. DEVER DE REVELAÇÃO. DÚVIDA JUSTIFICADA. CERCEAMENTO DE DEFESA. IMPARCIALIDADE DO ÁRBITRO. ORDEM PÚBLICA. NULIDADE. PRESSUPOSTO DE VALIDADE. COMPETÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO. FATO NOVO. ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR. (...)

4. Cabe às partes colaborar com o dever de revelação, solicitando ao árbitro informações precisas sobre fatos que eventualmente possam comprometer sua imparcialidade e independência.

5. A parte que pretender arguir questões relativas à competência, suspeição ou impedimento do árbitro ou dos árbitros, bem como nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazê-lo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, ainda que não haja prejuízo de posterior exame do Poder Judiciário competente, nos termos do art. 33 da lei da arbitragem. (...)

9. O fato não revelado apto a anular a sentença arbitral precisa demonstrar extinguir a confiança da parte e abalar a independência e a imparcialidade do julgamento do árbitro. Para tanto, são necessárias provas contundentes, não bastando alegações subjetivas desprovidas de relevância no que tange aos seus impactos.2

Trata-se, na origem, de ação declaratória de nulidade de sentença arbitral, ajuizada em 10/9/21 perante a 2ª Vara Empresarial e Conflitos Relacionados à Arbitragem do Foro Central da Comarca de São Paulo/SP, sob a alegação de que, inter alia, teria havido vício na formação do painel arbitral. Nesse sentido, alegou o autor como fatos comprovadores da quebra do dever de revelação do árbitro: (i) indícios de que o árbitro teria faltado com a verdade ao informar que até então não havia atuado como árbitro, e (ii) o árbitro teria omitido que atuava como advogado de uma sociedade que dependeria financeiramente da única sócia da parte vencedora da arbitragem. Após a estabilização da demanda, os autores abordaram fatos novos, cuja obtenção se deu mediante a realização de uma investigação mais apurada. O juízo sentenciante indeferiu a alteração da demanda e julgou a ação improcedente, reafirmando a higidez da sentença arbitral.

Contra a sentença foi interposto recurso de apelação, objeto de julgamento pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP, sob relatoria do desembargador Jorge Tosta. Em seu voto, o referido magistrado confirmou o entendimento do juízo sentenciante de que os fatos novos aduzidos pelos autores após a estabilização da demanda não deveriam ser considerados no julgamento da causa. Aduziu ainda, que o recurso não comportava provimento, visto que os fatos não revelados seriam incapazes de afetar a imparcialidade do árbitro e, ainda que fosse este o caso, os autores teriam falhado com seus deveres de lealdade, transparência e colaboração, ao deixarem de informar (ou questionar) o árbitro sobre estes fatos, que já eram (ou poderiam ser) de seu conhecimento quando da revelação, deixando para fazê-lo apenas após a prolação de sentença arbitral desfavorável, violando assim os arts. 15 e 20 da lei de arbitragem. Por fim, o relator concluiu não haver a alegada dependência financeira entre as empresas ou relação societária que impusesse ao árbitro o dever de revelar, eis que se tratava de mera relação comercial.

O desembargador Ricardo Negrão abriu divergência da maioria, declarando voto dando provimento ao recurso para declarar a nulidade da sentença arbitral, manifestando o entendimento de que a comprovação da falha no dever de revelar é suficiente para anular a sentença arbitral, sendo desnecessário que o autor comprove a parcialidade do árbitro.3

Contra este acórdão foi interposto REsp. As razões recursais indicaram que o árbitro teria deixado de revelar que (i) foi sócio de um dos patronos da parte adversa em 2007, (ii) enquanto sócios, atuaram juntos em diversos processos, (iii) ao se retirarem daquela sociedade e abrirem seus próprios escritórios, teriam dividido endereço profissional e número de telefone por dezesseis meses, (iv) em escritórios distintos, teriam atuado em conjunto em diversos processos.

A relatora, ministra Nancy Andrighi, proferiu voto negando provimento ao recurso, o qual sintetizou da seguinte forma:

No presente julgamento, objetiva-se definir se, na ação anulatória de sentença arbitral, cabe ao Poder Judiciário analisar o cumprimento do dever de revelação de forma objetiva, isto é, anular a sentença arbitral se comprovada a violação  ao  dever  de  revelação,  ou  de  maneira  subjetiva,  exercendo  uma verificação casuística sobre o que não foi revelado, a fim de decidir se a omissão feriu a independência e a imparcialidade do árbitro para, somente então, declarar a nulidade da sentença.

Demonstrando profundo conhecimento jurídico sobre a matéria sub judice, realizou importante distinção entre dever de revelação e parcialidade do árbitro, sendo o primeiro apenas um dos elementos que auxiliam o magistrado a concluir pela parcialidade, e a última, capaz de anular a sentença arbitral. Com efeito, a relatora conclui que:

não basta que o fato não revelado abale a confiança da parte, é preciso que ele demonstre a quebra de independência e imparcialidade do julgamento feito pelo árbitro. Para tanto, são necessárias provas contundentes, não bastando alegações subjetivas desprovidas de relevância no que tange aos seus impactos.

O voto da ministra relatora foi acompanhado pelos ministros Marco Aurélio Bellizze e do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, vencidos os ministros Humberto Martins e Moura Ribeiro.4

O STJ demonstrou, neste julgamento, acurado conhecimento da matéria, afastando a nefasta possibilidade de anulação de sentença arbitral por mero descumprimento do dever de revelação pelo árbitro. Mais uma vez, comprovando ser o verdadeiro guardião do instituto da arbitragem no país.

Muito tem se comentado que referida decisão teria afastado aquilo que se convencionou denominar “nulidade de algibeira5, visto que tanto a sentença quanto ambos os acórdãos fizeram a regra disposta no art. 20 da lei de arbitragem. No entanto, pensa-se que o ponto central da decisão, é a uniformização do entendimento que a falta de revelação pelo árbitro não resulta, automaticamente, em nulidade da sentença arbitral. Entendimento, de há muito, estudado e ensinado pela melhor doutrina, que sempre distinguiu a quebra do dever de revelação do árbitro de uma atuação parcial:

“O dever de revelação não se confunde com a imparcialidade, nem o seu descumprimento leva, ipso facto, à invalidade do processo arbitral.”6

“Portanto não é a falta de revelação que justifica a ação de anulação, mas se o fato não revelado é importante, real e capaz de influenciar o julgamento do árbitro.”7

“Sem embargo, o descumprimento do dever de revelar não é, per se, hipótese listada no rol de nulidades da sentença arbitral.”8

O entendimento exarado pela divergência parte de uma premissa equivocada: não poderia ser árbitro aquele que falha no cumprimento do dever de revelar. Todavia, o comando legal não prevê a quebra do dever de revelar como hipótese de nulidade, mas sim a falta de imparcialidade. Com efeito, afirmar que a falha no dever de revelação é prova de parcialidade, logo, a sentença arbitral é nula, implica estabelecer nexo de causalidade direto e automático, ou imputar má-fé ao árbitro, pois presume-se que a falta de revelação se deu não apenas de forma deliberada, mas com verdadeiro intuito de esconder o fato não revelado.

Dessa forma, com as vênias de praxe, o entendimento da divergência se mostra equivocado, tanto do ponto de vista da arbitragem, quanto do ponto de vista legal, vez que no ordenamento jurídico brasileiro a má-fé há de ser comprovada, o que não ocorreu no caso sob análise.

O caso objeto dessas linhas representa um verdadeiro marco no rol dos mais importantes julgados em matéria de arbitragem pelo STJ. Essa Egrégia Corte, contribuiu (como vem contribuindo) para, mediante o uso de fundamentos jurídicos adequados, assegurar a viabilidade do instituto da arbitragem no país e garantir segurança jurídica a seus usuários.

___________

1 Disponível aqui. Acesso em 28 jul. 2024.

2 STJ – Terceira Turma, REsp nº 2.101.901/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18.06.2024.

3 Cf. declarado em seu voto: “A violação do dever de revelação é em si mesmo causa de invalidade de todo o processo. Ou há ou não há violação do dever de revelação. O Judiciário não pode perquirir sobre a existência de prova de parcialidade ou de dependência.”. (TJSP – Apelação Cível nº 1097621-39.2021.8.26.0100, Rel. Jorge Tosta, j. 22.11.2022)

4 O Ministro Humberto Martins abriu divergência, dando provimento ao recurso, por entender que “não cabe uma avaliação subjetiva a respeito da relevância e do impacto da omissão na imparcialidade do árbitro”. Acompanhando a divergência, e votando no mesmo sentido, Ministro Moura Ribeiro.

5 Ver, a esse respeito, artigo assinado por José Rogério Cruz e Tucci. Disponível aqui. Acesso em 27 jul. 2024.

6 ELIAS. Carlos. Imparcialidade dos Árbitros. São Paulo: Almedina, 2021, p. 219.

7 LEMES. Selma Ferreira. O dever de revelação do árbitro, o conceito de dúvida justificada. Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 36, p. 231-251, Jan-Mar, 2013.

8 MARTINS. Pedro A. Batista. Apontamentos sobre a Lei de Arbitragem: comentários à lei 9.307/96. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 205.

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Colunista

Thiago Marinho Nunes é doutor em Direito Internacional e Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Mestre em Contencioso, Arbitragem e Modos Alternativos de Resolução de Conflitos pela Universidade de Paris II – Panthéon-Assas; Vice-Presidente da CAMARB; Fellow do Chartered Institute of Arbitrators; Professor Titular de Arbitragem e Mediação do IBMEC-SP; árbitro independente.