Atualmente, tem-se visto o uso crescente do mecanismo da arbitragem para a resolução de disputas decorrentes de relações agrárias e agroindustriais. Com efeito, o aumento do uso da arbitragem na seara agrícola é uma realidade no Brasil e que merece aplausos, uma vez que comprovada a efetividade desse meio de resolução de conflitos.
Os tipos contratuais que normalmente fundamentam o uso e exploração de terras agrícolas são o arrendamento rural e a parceria agrícola. O regramento jurídico de tais tipos constam da lei 4.504, de 30 de novembro de 1964 ("Estatuto da Terra"), regulamentada pelo decreto 59.566 de 14 de novembro de 1966 ("decreto 59.566/66")
No que tange à parceria, o proprietário de determinada terra agrícola (uma fazenda, por exemplo), cede o uso do imóvel a determinado contratante, o qual, por sua vez, promoverá o desenvolvimento econômico de tal terra, mediante plantio de determinada cultura agrícola, para revenda, por exemplo1. Trata-se, com efeito, de um verdadeiro empreendimento rural, com plena simetria de informações entre as partes contratantes, em que ambas estão sujeitas ao risco, seja ele inerente à terra agrícola, à qualidade de seu solo, ao conhecimento técnico das partes que compõem a relação contratual, dentre outros.
No bojo de tal relação, de cunho comercial, não é incomum que as Partes estipulem uma cláusula de resolução de disputas por meio de arbitragem, na forma da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"). Ao inserir tal método de disputa, devem as partes estarem cientes das consequências dessa escolha. A consequência direta é o afastamento das jurisdições estatais para apreciação do mérito da demanda, ressalvados os casos em que o Poder Judiciário atua de forma cooperativa com o Juízo Arbitral2, seja por meio da apreciação de medidas de urgência pré-arbitrais, seja pelas medidas constritivas, reservadas ao juízo estatal.
Nas presentes linhas, objetiva-se examinar a hipótese de existência de conflito, no bojo de determinado instrumento de parceria agrícola, que contenha cláusula de arbitragem para a resolução de todo e qualquer litígio que decorra da referida avença. Uma hipótese que poderia ocorrer, por exemplo, seria quando o parceiro outorgante se sentisse lesado por algum ato praticado pelo parceiro outorgado e iniciasse uma arbitragem sustentando a ocorrência de uma das hipóteses dispostas no art. 32 do pelo decreto 59.566/66, por exemplo: término do prazo contratual, cessão ou empréstimo do imóvel sem o consentimento do parceiro outorgante, ausência de pagamento do aluguel pelo uso da terra, danos causados à terra, dentre outros. No caso da referida disposição legal, o remédio conferido pelo legislador é o despejo3.
A ação de despejo, como se sabe, se processa pelas vias ordinárias. Apesar de sua dúplice natureza (cognitiva e executória). trata-se de ação por meio do qual a parte lesada manifesta o seu interesse pessoal na desconstituição de uma relação jurídica (no caso hipotético objeto dessas linhas, o instrumento de parceria agrícola), para, em seguida, caso procedente a sua demanda, obter a ordem de despejo. O devedor, em sede de contestação, pode até mesmo oferecer depósito a título de caução sobre o valor que entende ser devido e se defender normalmente nos autos4.
Outro tipo de ocorrência que pode ser utilizada na defesa da parte requerida em casos de pedido de retomada de terras agrícolas, dá-se na hipótese de que o parceiro-outorgado promove pedido contraposto, alegando a existência de benfeitorias nas terras cuja retomada é requerida. Ou mesmo quando exerce a prática da rotação de culturas5 e logra êxito em comprovar que tal prática foi benéfica ao solo, gerou melhorias ao plantio e, ao fim e ao cabo, gerou ganhos financeiros para as terras agrícolas cuja retomada por meio do despejo é pleiteada.
Os pontos acima elencados podem e são recomendáveis que se desenvolvam por meio da arbitragem. A natureza de ação de despejo não confere o direito, supostamente automático, de a parte requerente se dirigir ao Poder Judiciário para o exercício de sua pretensão, sob a alegação de que o despejo teria natureza executória. A natureza de "ação executiva lato sensu"6 de tal demanda, ou seja, que exige prévia atividade cognitiva, de tal demanda gera a inevitável consequência de se exercer a pretensão de retomada da terra e pedido de despejo por meio da arbitragem livremente consensuada entre as partes. No entanto, por meio de recente decisão, o STJ entendeu que "Em razão de sua peculiaridade procedimental e natureza executiva ínsita, com provimento em que se defere a restituição do imóvel, o desalojamento do ocupante e a imissão na posse do locador, não parece adequada a jurisdição arbitral para decidir a ação de despejo"7.
Apesar do entendimento isolado do STJ, há uma série de precedentes emanados dos tribunais pátrios que, ainda que considerem a ação de despejo como sendo de natureza executória, determinam que as partes discutam a questão em sede arbitral, quando a sua avença contiver cláusula compromissória. A esse respeito, cita-se julgado emanado do TJ/PR:
"Como se vê, antiga lacuna deixada acerca da possibilidade de concessão de tutelas cautelares e de urgência na Lei de Arbitragem foi suprida, mediante previsão de que, antes da instauração do procedimento arbitral – vale dizer, em caráter antecedente – caberá ao Poder Judiciário concedê-la, sendo da alçada dos próprios árbitros, após (ou seja, incidentalmente), dá-las ou nega-las.
E, postas assim as coisas, não há motivo para justificar a cisão da competência para a apreciação das pretensões do locador de resolver a locação e obter a condenação do locatário ao pagamento de encargos locatícios, multas e indenizações pela depreciação do imóvel, sendo de todo recomendável que isso fique concentrado na Câmara de Arbitragem, inclusive para evitar a prolação de decisões conflitantes – por exemplo, uma da Justiça Estadual que, sem fazer coisa julgada (CPC, artigo 504), reconheça que o não pagamento de aluguel configurou infração contratual e outra da Justiça Arbitral que reconheça que a ausência de pagamento foi justificada, ante a inexigibilidade da obrigação
Note-se que não há incongruência em deixar a cargo da Câmara de Arbitragem decretar o despejo por falta de pagamento – inclusive liminarmente, na forma admitida pelo artigo 59, § 1º, IX da Lei 8.245/1991 – e reservar para o Poder Judiciário apenas a execução da medida; afinal, é assim que se procede também em relação aos provimentos condenatórios por ela editados, não se ignorando a distinção entre as ações condenatórias e as ações executivas lato sensu que deram sustentação ao voto condutor do julgamento do REsp 1.481.644/SP.
Resumindo, tanto o pedido de despejo quando o de cobrança devem, em respeito à cláusula compromissória exigido pelo Réu na contestação (mov. 40.1), ser submetidos à Câmara de Arbitragem, devendo ser confirmada, destarte, a sentença que extinguiu o processo, sem resolução do mérito, porquanto inviável, em razão da incompatibilidade dos sistemas e procedimentos dela e da Justiça comum, a mera declinação da competência"8.
Com efeito, é preciso de extrema cautela ao se rotular uma ação de despejo como sendo automaticamente de natureza executória como se revelou o entendimento exarado pelo STJ. É preciso que não se confunda o processamento da ação de despejo com a respectiva ordem de concessão do despejo. Ou, como bem afirma Heitor Vítor de Mendonça Sica, é preciso observar e tratar de forma metodologicamente correta o que se chama de "sincretismo processual"9. Não se trata de processos diferentes, mas de procedimentos diferentes de natureza diversa que ocorrem numa mesma demanda. Nesse sentido é a lição do saudoso Sylvio Capanema de Souza:
"No que tange ao pedido de despejo, concorda a doutrina que a ação é executiva lato sensu, já que a executividade do comando que decreta a desocupação do imóvel é fase do procedimento e não um processo subsequente. Daí se conclui que, nas ações de despejo não se verifica a actio judicati, ou seja, um procedimento autônomo para o cumprimento da sentença, que se fará imediatamente, após a intimação de réu para que desocupe o imóvel no prazo concedido"10.
No caso de tentativa de retomada de terras agrícolas, caso o instrumento de parceria contenha cláusula compromissória, tal pretensão (retomada-despejo) deverá ser exercida pela via arbitral, por meio pedido de instauração de processo arbitral que vise:
- a desconstituição da relação jurídica mantida com o parceiro outorgado, mediante a resolução do instrumento de parceria agrícola e, em ato subsequente;
- a decretação da ordem de despejo, de modo que o parceiro outorgante retome as terras agrícolas cedidas. Não havendo um procedimento pré-determinado para o exercício dessa pretensão seja no Estatuto da Terra, seja no âmbito do decreto 59.566/66, pode a parte requerente se valer, por analogia, das regras atinentes à ação de despejo, previstas na Lei nº 8.245/91 ("Lei do Inquilinato"), em que se determina que a ação de despejo se processo pelo rito ordinário11, com plena atividade cognitiva do julgador, seja ele estatal ou arbitral.
A natureza executiva "lato sensu" da ação de despejo não deve servir de motivo para que uma parte deixe se cumprir o que pactuou com seu parceiro: o de exercer sua pretensão (de caráter cognitivo) por meio da arbitragem, garantindo-se à contraparte o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa, com dilação probatória, se necessário, reservando-se ao juízo estatal tão somente atos de constrição (como o processamento de eventual ordem de despejo concedida na arbitragem), não devendo tal ato se confundir com a natureza coercitiva de determinado ato que pode, perfeitamente, ser decidido por árbitros investidos da função jurisdicional. A esse respeito, cita-se, por todos, o entendimento de Cândido Rangel Dinamarco:
"Enquanto as constrições atuam fisicamente sobre as pessoas ou coisas, as coerções têm por alvo o espírito. Daí dizer-se que aos árbitros falta o poder de constrição, mas que poderes de coerção não lhes faltam, os quais são exercidos mediante decisões e não atuações físicas sobre pessoas ou coisas"12.
Que tal lição seja observada pelas partes contendentes e magistrados em ações que tenham por objeto a retomada de terras agrícolas ou mesmo de forma genérica, de modo anão desvirtuar a natureza da ação de despejo, compatibilizando-a com o seu processamento pela via arbitral.
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1 Segundo Thiago Soares Gerbasi: “Regra geral, o objeto deste contrato é a cessão do uso do imóvel rural de propriedade ou sob posse do cedente ao contratante sem terra para desenvolvimento de empreendimento rural específico, eleito em conjunto pelas partes. Importante destacar que, neste tipo de contrato”. (Contratos de parceria rural. Qualificação, regime jurídico e questões polêmicas. Dissertação (Mestrado em Direito) Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo: 2016, p. 15.
2 Ver, a esse respeito: O Poder Judiciário da sede da arbitragem: o "juge d'appui" - Migalhas. Acesso em 23 mar. 2024.
3 Nos termos da referida disposição: Art. 32. Só será concedido o despejo nos seguintes casos: I - Término do prazo contratual ou de sua renovação; II - Se o arrendatário subarrendar, ceder ou emprestar o imóvel rural, no todo ou em parte, sem o prévio e expresso consentimento do arrendador; III - Se o arrendatário não pagar o aluguel ou renda no prazo convencionado; IV - Dano causado à gleba arrendada ou ás colheitas, provado o dolo ou culpa do arrendatário; V - se o arrendatário mudar a destinação do imóvel rural; VI - Abandono total ou parcial do cultivo; VII - Inobservância das normas obrigatórias fixadas no art. 13 dêste Regulamento; VIII - Nos casos de pedido de retomada, permitidos e previstos em lei e neste regulamento, comprovada em Juízo a sinceridade do pedido; IX - se o arrendatário infringir obrigado legal, ou cometer infração grave de obrigação contratual.
4 A esse respeito, dispõe o Art. 32, parágrafo único do Decreto nº 59.566/66: No caso do inciso III, poderá o arrendatário devedor evitar a rescisão do contrato e o conseqüente despejo, requerendo no prazo da contestação da ação de despejo, seja-lhe admitido o pagamento do aluguel ou renda e encargos devidos, as custas do processo e os honorários do advogado do arrendador, fixados de plano pelo Juiz. O pagamento deverá ser realizado no prazo que o Juiz determinar, não excedente de 30 (trinta) dias, contados da data da entrega em cartório do mandado de citação devidamente cumprido, procedendo-se a depósito, em caso de recusa.
5 A esse respeito, ver: Arbitragem nos contratos agrários e agroindustriais - Migalhas. Acesso em 23 mar. 2024.
6 “A existência de processos sincréticos - e de ações com a estrutura das executivas lato sensu - justifica-se porque as atividades de conhecimento e execução são, a rigor, indissociáveis. Não há execução (lato sensu) sem prévia atividade cognitiva, por mais superficial ou "rarefeita" que esta seja. Assim, mesmo no processo de execução essas atividades se entremeiam. O juiz primeiro examina o requerimento de penhora (atividade cognitiva) para só então expedir o mandado que irá individualizar o bem sujeito à execução (atividade executiva). Bronzatto, Alexandre Novelli. Ação executiva lato sensu. Mestrado em Direito – PUCSP, 2006, P.58. Disponível em; Microsoft Word - Disserta..o.Alexandre.Novelli.Bronzatto.doc (pucsp.br). Acesso em 23 mar. 2024.
7 STJ, Quarta Turma, Recurso Especial nº 1.481.644-SP, rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 01.06.2021, DJe 19.08.2021.
8 TJPR, 18ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 0033256-46.2019.8.16.0001, Rel. Des. Juiz de Direito Substituto em 2º Grau Luiz Henrique Miranda (em substituição ao Desembargadora Denise Kruger Pereira), j. 08.07.2022.
9 Na lição do referido autor: “Se a atividade executiva já invadiu, há tempos, o campo dominado pela atividade cognitiva, impõe-se observar em que medida o fenômeno se apresenta também na direção oposta, o que poderia representar um passo adiante do que se vem chamando há muito de “sincretismo processual”. Em outras palavras: a reaproximação de cognição e execução se dá em duas direções: a realização de atividade executiva de forma coordenada e combinada com as atividades cognitivas e o desenvolvimento da atividade cognitiva a propósito do desempenho da atividade executiva”. SICA, Heitor Vitor Mendonça. Cognição do Juiz na Execução Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 23.
10 SOUZA, Sylvio Capanema de. A lei do inquilinato comentada. 8.ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 334.
11 Nesse sentido, o art. 59, caput, da Lei do Inquilinato, dispõe: “Com as modificações constantes deste capítulo, as ações de despejo terão o rito ordinário”.