Em 14 de dezembro de 2023 foi proferido acórdão de lavra da 14ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJ/SP"), cuja ementa se encontra abaixo transcrita:
"Ação de nulidade de procedimento arbitral. Relação pessoal de árbitro e advogado. Participação comum em organização de ensino. Visibilidade em redes sociais. Violação do dever de revelação. Art. 14, §1º, da Lei de Arbitragem. Reclamação da nomeação ignorada pelo árbitro. Indevida afirmação de concordância na sentença arbitral. Fatos suficientes para o reconhecimento da quebra do atributo da imparcialidade. Art. 13, §6º, da Lei de Arbitragem. Vício bem reconhecido. Sentença de procedência mantida. Art. 252 do RITJSP. Verba honorária ora adequada aos termos do §2º do art. 85 do CPC. Indeferimento da gratuidade da justiça mantido. Recurso do autor provido. Recurso do réu improvido"1.
A referida decisão manteve, na íntegra, sentença proferida em 19 de julho de 2023, proferida pelo Juízo da 1ª Vara Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem do Foro Central da Comarca de São Paulo, Estado de São Paulo, nos autos de ação anulatória de sentença arbitral2, que, em linhas gerais, anulou sentença arbitral fundamentado em duas razões: (i) a primeira, porque os autores da referida ação teriam sido tolhidos da participação no processo de nomeação de árbitro único e de terem acesso a documentos relevantes para a aferição da imparcialidade do árbitro; (ii) a segunda, porque fatos não revelados pelo árbitro, por si só, levariam ao reconhecimento de sua imparcialidade.
O acórdão proferido pelo TJSP que manteve a sentença de primeiro grau, em especial a sua ementa, passa a percepção de que o grande motivo que ensejou a anulação da sentença arbitral teria sido a ausência de revelação do árbitro de certos fatos conduziria à perda de sua isenção. Conforme se analisará a seguir, o referido decisum está, com a devida vênia, equivocado, ao menos em parte.
Trata-se, em breve síntese, de ação anulatória na qual os autores alegam que a ré instaurou procedimento arbitral sob alegação de inadimplemento dos autores ao pagamento integral do preço ajustado em negócio jurídico celebrado entre as partes para a cessão de quotas de determinada sociedade empresária. Segundo os autores, contudo, a sentença arbitral proferida no âmbito do procedimento seria passível de anulação em razão (i) da existência de vínculo pessoal entre o árbitro e o patrono da parte contrária; (ii) de alegado cerceamento de defesa; (iii) de vícios de fundamentação; (iv) da ausência de recolhimento de custas e (v) da ausência de organização das peças processuais em autos. São esses os fundamentos da referida ação anulatória.
De todas as razões acima, a sentença de primeiro grau e o acordão do TJSP encamparam duas: (i) a da ausência de intimação dos autores para participarem do processo de nomeação do árbitro único e (ii) a não revelação das alegadas relações acadêmicas e aquelas mantidas por meio de redes sociais entre o árbitro único e o patrono da ré.
Não há dúvidas, de que, como bem-posto na sentença judicial de primeiro grau e mantido pelo acórdão, falta de oportunização à parte de participar da escolha do profissional a atuar como árbitro único constitui vício grave3. Com efeito, na arbitragem, a constituição do tribunal arbitral configura momento crucial para regular desenvolvimento do processo. Isso vale tanto para aqueles profissionais indicados diretamente pelas partes – o coárbitro, e defende-se, com vigor, que tal regra também valha para aquele exercerá a função de presidente do tribunal como o de árbitro único4. No caso sob análise, os autores da ação anulatória sequer foram intimados a participar do processo de nomeação do árbitro, e, frisou ainda, o juízo sentenciante, “tampouco tiveram acesso a documentos de qualificação do árbitro e questionários de conflito”. Trata-se, evidentemente, de situação grave e que fulmina a sentença arbitral de nulidade.
No entanto, a decisão objeto dessas linhas foi além do que era necessário e culminou por incorrer em falha de intepretação jurídica dos limites do dever de revelação do árbitro. Isso porque, de forma equivocada, o Juízo Sentenciante, seguido pelo TJSP, fez constar como motivo para anulação da sentença arbitral a não revelação de que o árbitro único e o patrono da parte ré na ação anulatória seriam colegas de magistério na mesma instituição e que manteriam "amizade nas redes sociais".
O primeiro equívoco se dá pela suposta necessidade de revelação pelo árbitro de relações acadêmicas mantidas entre este os patronos das partes. Com efeito, as questões atinentes às relações acadêmicas mantidas entre o profissional que exerce a função de árbitro e os advogados de quaisquer das Partes, não só não geram o impedimento do árbitro, como sequer têm a necessidade de ser reveladas5. E, justamente por isso, tal hipótese encontra-se encartada nas IBA Guidelines on Conflicts of Interest, que servem de parâmetro internacional de melhores práticas na verificação de conflito de interesse, no campo reservado às matérias que não precisam ser reveladas (lista verde)6. Além disso, tal decisão parte de premissa de caráter subjetivo7 do Juízo Sentenciante e da turma julgadora da apelação, fazendo letra morta o disposto no art. 14, § 1º da Lei nº 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"), o qual é claro: "As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência" (ênfase acrescentada).
O segundo equívoco do decisum, se dá pela ausência de verificação da materialidade e prejudicialidade do fato não revelado, quando se afirma como razão de decidir, que o árbitro único e o patrono da parte manteriam amizade em redes sociais e que a não revelação de tal fato macularia a sentença arbitral de nulidade. Assim, concluiu a sentença de primeiro grau, mantida pelo acórdão: "(...) o entendimento que parece mais razoável é o de que esse fato deveria ter sido revelado, garantindo-se a oportunidade para que a parte contrária, ciente do fato, avaliasse ou não a necessidade de endereçar questionamentos ao árbitro ou até mesmo a examinasse a possibilidade de impugnar a sua atuação, na medida em que todos os participantes do procedimento arbitral devem sentir-se confortáveis diante da figura do julgador".
A suposta relação de amizade mantida entre o árbitro único e o patrono de uma parte em redes sociais não se enquadra no conceito de dúvida justificada, a ponto de necessitar revelação prévia. Além de públicas e de fácil acesso, tais questões não são relevantes para macular a independência e imparcialidade do profissional que pretende exercer a função de árbitro8.
Com efeito, o uso das redes sociais tem se intensificado nos últimos tempos, de modo que as pessoas e organizações lá inscritas possam desenvolver e expor suas atividades. No campo do direito, é normal a divulgação de eventos, como lançamentos de livros, congressos, seminários, cursos, dentre outros, ligados a determinada área. Assim, as ligações mantidas entre profissionais que atuam como árbitro, outros advogados e outros profissionais, não denotam proximidade, tampouco representam laços de amizade íntima, capazes de gerar o impedimento do árbitro9.
As razões adotadas pelo TJSP para acolher o pleito de anulação da sentença arbitral, especialmente no que tange às relações acadêmicas e aquelas mantidas por meio de redes sociais entre o árbitro único e o patrono da parte foram de cunho subjetivo e, com a devida vênia, violam o art. 14, § 1º da Lei de Arbitragem. É preciso que os julgadores se aprofundem no conceito de dúvida justificada no momento de decidir questão tão crucial e que pode anular processo desenvolvido com esmero e cautela10. Para tanto, o julgador deve voltar suas atenções à plausibilidade da dúvida, isto é, "aquela que depende de materialidade e da comprovação do nexo de causalidade entre violação do dever de revelação e a suposta imparcialidade ou dependência do árbitro"11.
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1 TJSP – 14ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível nº 1038255-35.2022.8.26.0100, Rel. Des. Luis Fernando Camargo de Barros Vidal, j. 14.12.2023.
2 Processo nº 1038255-35.2022.8.26.0100.
3 A esse respeito, o próprio TJSP já decidiu no célebre caso Paranapanema: "ARBITRAGEM. Caso envolvendo litisconsórcio de partes com interesses distintos no mesmo polo. Omissão do Regulamento da Câmara de Arbitragem quanto à indicação de árbitros em casos de multipartes com interesses distintos no mesmo polo. Integração do regulamento pelo Presidente daquele órgão que não se deu com melhor técnica jurídica por fazer prevalecer a indicação de árbitro de apenas uma das partes, suprimindo o direito de indicação das outras. Inobservância de princípios basilares da isonomia e imparcialidade que viciaram a formação do painel arbitral. Parte prejudicada que invoca a reserva legal de apreciação de tal questão pelo judiciário. Inocorrência de preclusão nos termos do art. 19, § 2º, da lei 9307/96. Sentença arbitral anulada. Recursos dos réus não providos. No juízo comum (estatal), o julgador é investido diretamente pelo próprio Estado; no juízo arbitral, diferentemente, o julgador é investido diretamente pelas próprias partes. Portanto, se há algum momento em que não pode haver qualquer espécie de dúvida, incerteza ou mácula este reside no ato dessa verdadeira "investidura" manifestada pelas partes. Afinal, o poder de dizer o direito sobre um caso concreto outorgado ao juiz arbitral só goza de tal predicado de impor decisão com eficácia vinculante para as partes porque estas assim o quiseram (...)" (ênfase acrescentada) (TJSP – 11ª Câmara de Direito Privado, Apelação nº 0002163-90.2013.8.26.0100, Rel. Des. Gilberto dos Santos, j. em 3.7.2014)
4 Ver, a esse respeito: Peculiaridades na escolha do árbitro presidente do tribunal arbitral - Migalhas. Acesso em 24 jan. 2024.
5 Esse é o entendimento, por exemplo, de Suar Sanubari: "The Guidelines simply classify any social media relationship between arbitrators and parties or counsel in the 'Green List'. This means the connection will never lead to disqualification under the objective test and need not be disclosed. However, it is important to take into account the debate on social media relationships during the panel discussion of 2013 IBA's Annual Meeting that gave rise to the Guidelines (the 'Meeting'). Lawrence Schaner suggested that most cases of social media connections do not represent real and actual relationships. Hillary Heilbron QC opined that the issue of disclosure is about the nature of a particular relationship, not the source. Therefore, social media relationships in the 'Green List' must not undermine the general principle if an arbitrator finds him/herself in a circumstance that needs to be disclosed. Basically, the discussions on disclosure revolve around whether an arbitrator who has a social media connection with a party or a counsel also has a real (offline) relationship that may give rise to justifiable doubts as to the independence and impartiality of the arbitrator" (Arbitrator's Conduct on Social Media, Journal of International Dispute Settlement, The Oxford University Press 2017, Volume 8, Issue 3, p. 484-485, ênfase acrescentada).
6 "4.3. Contacts with another arbitrator, or with counsel for one of the parties.
4.3.1. The arbitrator has a relationship with another arbitrator, or with the counsel for one of the parties, through membership in the same professional association, or social or charitable organisation, or through a social media network (…)
4.3.3. The arbitrator teaches in the same faculty or school as another arbitrator or counsel to one of the parties, or serves as an officer of a professional association or social or charitable organisation with another arbitrator or counsel for one of the parties.
The arbitrator was a speaker, moderator or organiser in one or more conferences, or participated in seminars or working parties of a professional, social or charitable organisation, with another arbitrator or counsel to the parties".
7 A esse respeito ver recente artigo de José Rogério Cruz e Tucci: Árbitro e advogado que exercem o magistério na mesma instituição (conjur.com.br). Acesso em 27 jan. 2024.
8 Nesse sentido, é a lição de Daniela Vicente de Almeida: "Contudo, no que diz respeito à circunstância de um dos árbitros estar ligado a uma das partes por uma rede social – não obstante o peso crescente que as redes sociais e profissionais têm atualmente –, entendemos que, em regra, não se pode exigir a sua revelação unicamente por existir essa conexão, sob pena de se revelarem factos que inclusivamente aos olhos das partes poderiam ser perfeitamente irrelevantes. Se assim não fosse, em quase todos os processos arbitrais esta circunstância teria de ser revelada, uma vez que a maioria dos utilizadores das redes sociais encaram-nas numa perspectiva de autopromoção ou lazer, não se estabelecendo uma verdadeira relação entre eles. O simples facto de os intervenientes estarem virtualmente ligados não impõe que o árbitro revele imediatamente esse facto, nem nos parece sensato admitir que as partes o consideram como tal (...)" (O dever de revelação como problema de independência e imparcialidade dos árbitros. Coimbra: Almedina, 2018, p. 120)
9 Fato que, aliás, vem sendo observado pela doutrina estrangeira, conforme se verifica nos estudos de Laurent Gouiffes: "As per Article L. 111-6 of the French Code of Judicial Organization, an arbitrator’s recusal may be sought: if the arbitrator or his/her partner has a personal stake in the dispute; if the arbitrator/partner is a creditor, debtor, presumed heir or donee of one of the parties; if the arbitrator/partner is a parent to or ally of one of the parties or partner up to the fourth degree inclusively; if there is a hierarchical relationship between the arbitrator/partner and one of the parties and his/her partner; or if there is a clear friendship or enmity between the judge and one of the parties. With the development of social media and virtual friendships or connections on networks such as Facebook or Linkedin, the Cour de cassation, in a disciplinary proceeding before the Bar Council, has ruled that the term ‘friendship’ used by Article L. 111-6 of the French Code of Judicial Organization could not be interpreted to encompass ‘friendship’ on social media. It held that social media was, rather, a mere channel of communication between persons sharing the same interests, and in this case, the same profession. The threshold for showing an arbitrator’s lack of independence or impartiality is whether the arbitrator is influenced by elements of a nature to provoke a reasonable doubt in the parties’ minds. It follows that when arguing that an arbitrator lacks independence or impartiality, parties must show the existence of material or intellectual ties, or a situation of a nature to affect an arbitrator’s judgment or to amount to a risk of bias towards one of the parties to the arbitration" (The View from the French Courts: Disclosures – Objections – Challenges: Clear Path or Jungle. In: Commercial Arbitrators' Conflicts of Interest? DASSER, Felix (ed.) ASA Special Series, v. 48, Kluwer Law International, 2021, p. 86).
10 Ver, a esse respeito: Fato não revelado na arbitragem e produção de provas - Migalhas. Acesso em 27 jan. 2024.
11 Ver, a esse respeito, DABUS, Rodrigo. O conceito de dúvida justificada no dever de revelação do árbitro. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Faculdade Ibmec São Paulo, Direito, Campus Ibmec Paulista, São Paulo, 2023, p. 39 (no prelo).