Tema pouco debatido, seja na doutrina, seja na prática da arbitragem, diz respeito à representação da parte na arbitragem doméstica. Presume-se que a ausência de maiores discussões sobre tal tema se dê em virtude do fato de que, normalmente, as partes são representadas por advogados nos processos arbitrais. Mas a representação por advogado é obrigatória nesses casos?
A resposta é negativa e está prevista na lei 9.307/1996 ("Lei de Arbitragem"), que, em seu artigo 21, §3º, dispõe:
"As partes poderão postular por intermédio de advogado, respeitada, sempre, a faculdade de designar quem as represente ou assista no procedimento arbitral".
A disposição acima não deixa margem para dúvidas: a representação da parte por advogado é meramente facultativa.
Não é objetivo dessas linhas discorrer se tal disposição é ou não correta, notadamente diante do fato de que a figura do advogado é indispensável à administração da justiça, seja ela estatal ou arbitral1. Mas pretende-se deixar claro que o sistema arbitral foi construído pensando nas partes e no seu poder de litigar do modo que melhor lhes convier2. É exatamente essa a premissa do art. 21, caput da Lei de Arbitragem:
"Art. 21. A arbitragem obedecerá ao procedimento estabelecido pelas partes na convenção de arbitragem, que poderá reportar-se às regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada, facultando-se, ainda, às partes delegar ao próprio árbitro, ou ao tribunal arbitral, regular o procedimento".
Ainda assim, a dúvida pode persistir. Como litigar sem a presença de um advogado? Tal situação poderia ocorrer, por exemplo, em casos envolvendo grupos societários compostos por diversas sociedades, mas comandados por apenas dois sócios. Se esses dois sócios divergissem acerca da relação societária mantida e dessem início à um processo arbitral, seria imperioso que as empresas integrantes do grupo societário figurassem como parte na lide, de modo a que a sentença arbitral que viesse a ser proferida fizesse coisa julgada em relação às elas3. Nesse contexto, outro questionamento possível é o de como ficaria a representação dessas empresas na hipótese de divergência entre sócios a respeito de qual advogado as representaria. Nesse caso, bastaria que fossem observados os contratos sociais dessas empresas de modo que os diretores eleitos escolhessem, em conjunto, o advogado. E, na ausência de acordo, os próprios diretores representariam as sociedades na arbitragem, o que encontraria pleno respaldo na disposição contida no artigo 21, §3º da Lei de Arbitragem.
Em outros casos, a parte sequer tem o interesse em levar o processo arbitral adiante e, por si própria, dispensa a presença de advogado e celebra acordo objetivando encerrar o feito4. Ou mesmo deixar de constituir advogado simplesmente para evitar despesas. Trata-se de direito da parte no processo arbitral.
Tais questões já foram objeto de discussão e dirimidas pela jurisprudência dos tribunais pátrios, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça5.
Por outro lado, não há dúvida de que a presença do advogado na representação da parte gera uma maior tranquilidade ao processo e à administração da justiça6. Em especial aos árbitros, que possuem a obrigação de resultado de proferir sentença passível de ser cumprida, em observância ao seu múnus7.
Mas é preciso considerar que o campo arbitral não é exclusivamente reservado a profissionais da área jurídica. Seja na atividade de julgador – a pessoa que exerce a função de árbitro, pela acepção legal, deve apenas ser uma pessoa capaz e que tenha a confiança das partes – seja na atividade de representação da parte. Em certo escrito8, já foi ressaltado que a importância do papel do advogado no âmbito da arbitragem se dá em razão, inter alia, da preservação dos princípios da igualdade das partes e do contraditório. Trata-se de preocupação louvável, mas tecnicamente equivocada, eis que o cumprimento de tais princípios é dissociado do fato de haver ou não advogado constituído nos autos. Basta que a comunicação dos atos processuais efetivamente ocorra e que as partes possam se defender adequadamente. Como bem afirma Leonardo de Faria Beraldo:
"Ora, o contraditório, para existir, não depende de ter ou não advogado constituído nos autos, mas, sim, da comunicação dos atos processuais. A comunicação é que precisa efetivamente existir. Contraditório significa cientificar a parte de prática de todos os atos do processo, para que ela, por sua vez, possa ou não reagir. Isso é contraditório. Não ter advogado significa apenas que será a própria parte, ou um representante que indicar, quem será intimado dos atos do processo, para, se quiser, manifestar-se. Também não vemos o fato narrado como violador do princípio da igualdade das partes, uma vez que ambas tiveram a oportunidade de contratar seus advogados, e, se, por um acaso uma delas não quis, deverá arcar com as consequências de sua falta de inteligência"9.
Da mesma forma, é opinião de Daniela Monteiro Gabbay e Flávia Foz Mange:
"Uma questão relevante a refletir ocorre quando apenas uma das partes está assistida por advogado e se a outra parte precisa necessariamente estar também, sob pena de violação do princípio da igualdade. Em um campo de autonomia da vontade, como é o da arbitragem, a escolha das partes e não estar assistida por advogado ou outro representante não gera per se uma violação ao tratamento isonômico conferido pelo tribunal arbitral"10.
O que se pretende, nessas linhas, é apenas trazer breves luzes sobre assunto pouco discutido na seara arbitral, mas que pode ocasionar efeitos práticos. Conquanto a representação da parte por advogado seja benéfica não apenas à parte constituinte, mas aos árbitros, ao processo arbitral e, ao fim e ao cabo, à boa administração da justiça, é preciso que se considere, acima de tudo, ampla a liberdade das partes no design de suas disputas encaminhadas à arbitragem, o que inclui a escolha de sua representação. Este é o verdadeiro escopo do já citado art. 21, caput, da Lei de Arbitragem.
De todo modo, como é incomum a ausência da representação da parte na arbitragem por advogado, é preciso que se faça bom uso da disposição contida no art. 21, § 3º da Lei de Arbitragem. Isso se dá exatamente nos exemplos citados acima, especialmente em arbitragens societárias, em que a disputa se dê unicamente entre os sócios e as sociedades somente permaneçam na lide para que a elas se operem os efeitos da coisa julgada material11. Ou mesmo quando o intento de uma parte, ao ser notificada para responder a um processo arbitral seja fazer acordo, de imediato. Não há, decerto, nesses casos, a necessidade do uso de advogados por essas partes, meramente figurantes.
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1 Nas palavras de Gustavo da Rocha Schmidt, Daniel Brantes Ferreira e Rafael carvalho Rezende de Oliveira: "O procedimento arbitral, no entanto, além de em vários aspectos se assemelhar ao processo judicial, envolve, em geral, causa de alta complexidade técnica e de maior relevância econômica. Revela-se, por isso mesmo, recomendável a constituição de advogado para a defesa dos direitos e interesses das partes no procedimento arbitral, inclusive para aconselhamento quanto a escolha do árbitro. O advogado recebe treinamento adequado e conhece a liturgia jurídica. É formado para lidar com litígios e processos. É, conforme consagrado no art. 133 da CRFB, "indispensável à administração da justiça" (Comentários à Lei de Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p.150).
2 Nesse sentido é a lição de Calos Alberto Carmona, ainda que entenda pela importância da constituição do advogado pela parte na arbitragem: "Entretanto, considerando a força que o legislador emprestou à vontade das partes, não seria razoável impor aos litigantes a presença do profissional do Direito. De fato, em controvérsias envolvendo matéria eminentemente técnica, podem os contendentes julgar que a presença do profissional do direito no processo arbitral será dispensável, optando então pelo sistema de assessoria ou dispensando por completo este aconselhamento (até porque a contratação de advogados importa naturalmente o acréscimo de custos)" (Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/1996. São Paulo: Atlas, 3ª edição, 2009, p. 300).
3 Nesse sentido, a lição de Humberto Theodoro Junior: "Consoante posicionamento do STJ, "a retirada de sócio de sociedade por quotas de responsabilidade limitada dá-se pela ação de dissolução parcial, com apuração de haveres, para qual têm de ser citados não só os demais sócios, mas também a sociedade" (STJ, 3ª T., REsp 1.371.843/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, ac. 20.03.2014, DJe 26.03.2014). O NCPC avalizou esse entendimento, ao determinar a citação dos sócios remanescentes e da sociedade, sendo agora imposição legal a formação do litisconsórcio, para que ambos figurem como réus na ação de dissolução parcial de sociedade e apuração de haveres (art. 601). Se, porém, todos os sócios já se acharem integrados à relação processual, não haverá necessidade de citação específica da sociedade. A sentença, in casu¸ atingirá, naturalmente, aos sócios e a pessoa jurídica" Código de Direito Processual Civil Anotado, 22ª ed. Forense, Rio de Janeiro, p. 2.421).
4 Nesse sentido: Prestação de serviços – Mensalidade escolar – Embargos à Execução – lei 9307/97 não prevê a obrigatoriedade de as partes estarem assistidas por advogado por ocasião da composição obtida em juízo arbitral (art. 21, § 3º) – Incidência da multa compensatória – Cabimento – Sentença mantida – Recurso improvido. (TJSP, Apelação Cível n° 992.08.061911-7, 33ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator: Cristiano Ferreira Leite, Data de Julgamento: 23.08.2010)
5 Nesse sentido: "Outrossim, na própria Lei de Arbitragem consta ser facultativa a assistência das partes por advogado no procedimento arbitral, de modo que a ausência do patrono não macula de nulidade eventual acordo celebrado entre elas" (STJ, Ag em REsp nº1.323.499 – GO (2018/0141014-0), Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti, Data de Julgamento: 05.09.2018). No mesmo sentido, TJSP Agravo de Instrumento nº 2011103-72.2020.8.26.0000, 30ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator: Marcos Ramos, Data de Julgamento: 18.06.2020.
6 Segundo Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira, Matheus Lins Rocha e Débora Cristina Fernandes Ananias Alves Ferreira, não constitui advogado pela parte, apesar de prática autorizada por lei, seria perigosa: "O § 3º estabelece a importância do advogado para o procedimento arbitral, que detém a capacidade postulatória, defendendo os interesses da parte representada, havendo, ademais, a liberdade e flexibilidade para que a parte possa designar outro representante ou assistente no procedimento, ou seja, a presença do advogado, embora de extrema importância, não é obrigatória, mas constitui grande perigo corres este risco, diante da imprescindibilidade da aptidão técnica para a defesa dos interesses da parte". (Lei de Arbitragem Comentada Artigo por Artigo. São Paulo: Juspodivim, 2019, p. 257).
7 A esse respeito, entende Gilberto Giusti: "Já tivemos a oportunidade de analisar o caráter jurisdicional da arbitragem, em nosso estudo “O Árbitro e o Juiz: da função jurisdicional do árbitro e do juiz". Com o advento da Lei n° 9.307/96, a decisão arbitral doméstica assumiu a mesma eficácia da sentença judicial, dispensando a outrora necessária ratificação pelo Poder Judiciário. Inquestionável, pois, que a arbitragem, ainda que se trate de meio alternativo de solução de controvérsias emanado da vontade das partes, envolve prestação jurisdicional e, portanto, administração da justiça” (O Advogado e a Arbitragem. Aspectos Práticos da Arbitragem (coord. Luiz Fernando do Vale Almeida Guilherme). São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2006, p. 229).
8 Segundo Aldemar Motta Júnior: "Assim, como é do interesse geral que uma sentença arbitral qualquer, seja isenta de vícios que possam vir a ser arguidos em uma eventual ação de nulidade, com supedâneo nos termos do Art. 33 da Lei de Arbitragem, com fundamento no inciso VIII, do Art. 32, que remete à falta de observância dos princípios constantes do § 2º, do Art. 21 do mesmo diploma legal, é sempre de bom alvitre que o advogado da parte que esteja assistida se preocupe a todo o tempo em verificar se tais princípios previstos na disposição legal indicada – isto é, igualdade das partes e contraditório, estão sendo efetivamente preservados. Não interessa a quem quer que seja que esteja de boa-fé, principalmente à parte que venha a lograr êxito na demanda arbitral, que a sentença respectiva venha a ter decretada sua nulidade". Disponível em: Manual_arb_oab_cacb.pdf (adambrasil.com). Acesso em 24 jun. 2023.
9 Curso de Arbitragem nos termos da lei 9.307/96. São Paulo: Atlas, 2004 p. 291-292.
10 Lei de Arbitragem Comentada (coord. Weber, Ana Carolina e Leite, Fabiana de Cerqueira) Lei de Arbitragem Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 247.
11 Em tese, na hipótese ilustrativa colocada, sequer as sociedades precisariam estar presentes na lide. Ao menos, é o que se extrai da regra contida no art. 601, parágrafo único do Código de Processo Civil: "A sociedade não será citada se todos os seus sócios o forem, mas ficará sujeita aos efeitos da decisão e à coisa julgada".