“Não complique demais as coisas, não se perca nos detalhes, isso é arbitragem, isso é visado como sendo temporal e economicamente eficiente para que os negócios possam seguir”. Essa foi a fala de abertura do webinar promovido pela Swiss Chambers’ Arbitration Institution em junho de 20201, que tratou das famosas virtual hearings. Apesar de tal fala se tornar cada vez mais distante temporalmente, as preocupações inerentes a ela permanecem presentes, razão pela qual discorrer-se-á, nessas breves linhas, sobre a evolução da arbitragem processada 100% por meio da modalidade remota desde o advento da pandemia da Covid-19 (“Pandemia”).
Apesar de não ter sido a primeira vez que novas tecnologias surgiram para permitir o processamento mais eficiente e menos oneroso das arbitragens, ou que os atores da arbitragem passaram a estar baseados em localidades diferentes, 2020 foi palco de uma rápida adaptação da comunidade arbitral, diante do fato de que as etapas da arbitragem que ainda eram conduzidas de forma presencial sofreram um inesperado e irredutível impedimento causado pela Pandemia. Tal adaptação ocorreu diligentemente, com o prosseguimento normal dos procedimentos e a rápida disponibilização de instrumentos de apoio para tanto. Da mesma forma, doutrinadores e praticantes logo engajaram estudos sobre a matéria das arbitragens remotas e, consequentemente, questionamentos, preocupações e soluções.
Nesse contexto, apesar de muitos desses instrumentos e estudos tomarem um viés emergencial, já se pode dizer que as audiências remotas em específico, e o procedimento como um todo, tendem a não retornarem a uma realidade em que o virtual não seja ao menos preponderante. Entretanto, apesar de poder soar inédito, a realidade demonstra que os procedimentos arbitrais em geral já eram realizados, em sua maior parte, de forma remota2. Seja pela troca de documentos, pelas conferências entre árbitros ou audiências sobre questões procedimentais, a realidade na qual a arbitragem lida com partes localizadas em diversos estados e/ou países já impunha tal necessidade.
Assim, em uma pesquisa realizada em 20183, verificou-se que, dentre o rol de entrevistados, mais de 90% já havia tido experiências em arbitragens com alguma etapa realizada por meio de videoconferências, ao passo que o International Centre for Settlement of Investment Disputes (“ICSID”) afirmou que no ano de 2019 cerca de 60% de suas audiências já eram realizadas por videoconferência4. para alguns autores, o que teria mudado do dia para a noite com o advento da Pandemia, seria apenas a realização de audiências de forma remota na fase instrutória, as quais eram bastante limitadas, sendo essas realizadas especialmente no caso de testemunhas de menor relevância5. Mesmo assim, muitos dos ditos problemas enfrentados pela comunidade arbitral a partir das audiências remotas, na verdade, já encontram respostas nas experiências passadas.
Exemplo disto é o Seoul Protocol on Video Conference in International Arbitration (“Seoul Protocol”)6, o qual já tinha tido sua primeira minuta apresentada ao público em evento de novembro de 2018, endereçando questões que já poderiam, em alguma medida, ser encontradas mesmo em outros e anteriores guias, divulgados em 2012 e 20177. Questões como o local em que a testemunha prestaria seu depoimento, a necessidade de testes prévios dos equipamentos e de definições sobre o manuseio de documentos no âmbito das videoconferências, já eram tratadas e discutidas pela comunidade arbitral8-9.
Dessa forma, ainda que menos generalizado, já havia uma forte tradição de elementos remotos nos procedimentos arbitrais, principalmente internacionais. De forma mais pulverizada, havia também discussões e orientações sobre tais práticas. Todavia, não se nega que a sua evolução ainda era lenta e gradual. O mesmo pode ser verificado a partir de uma análise das cortes no cenário mundial, também se verificando posicionamentos muito anteriores ao advento da Pandemia sobre a matéria.
Desde o final dos anos 90, as cortes domésticas do Canadá já lidavam com a realidade de testemunhos por videoconferência, sendo diversos os exemplos encontrados10, inclusive com posicionamentos expressos e entusiasmados em favor desse mecanismo. O mesmo ocorria em 2005, no Reino Unido, com o caso Polanski v. Condé Nast Publications Limited11. Assim, pode-se considerar que o histórico da utilização das videoconferências para cross-examination não é recente, e tampouco inédito.
Com o advento da Pandemia, as discussões a respeito da possibilidade – e consequências – da realização de procedimentos arbitrais integralmente de forma remota, fomentaram a criação de diversas regras, por meio de diferentes órgãos e institutos.
Nesse sentido, o já referido Seoul Protocol, divulgado em 18 de março de 2020, iniciou então o que se tornaria um movimento global em busca de soluções para a nova realidade de procedimentos remotos. Este foi sucedido por outros importantes instrumentos como o ICC Guidance Note on Possible Measures Aimed at Mitigating the Effects of the COVID-19 Pandemic12, de 09 de abril de 2020, e o CIArb Guidance Note On Remote Dispute Resolution Proceedings, de 08 de abril de 202013.
Em âmbito nacional, diversas instituições também divulgaram protocolos nesse sentido. Ainda em março de 2020, o Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (“CAM-CCBC”), a, Câmara de Conciliação Mediação e Arbitragem CIESP/FIESP (“CMA-CIESP/FIESP”) e a Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial-Brasil (“CAMARB”) já haviam se manifestado sobre a migração à modalidade remota, tendo emitido, posteriormente, orientações mais específicas sobre o funcionamento das audiências, o que se verifica, por exemplo nas Notas sobre Reuniões e Audiências Remotas do CAM-CCBC14 e as Orientações da CMA-CIESP/FIESP para a Realização de Audiências Virtuais[15].
Para além das questões meramente técnicas, as instituições arbitrais viram a necessidade de dar um passo a mais, o que resultou em que algumas das mais relevantes câmaras internacionais viessem a inserir em seus regulamentos questões relacionadas à condução dos procedimentos de forma remota. Esse foi o caso da Câmara de Comércio Internacional (“CCI”), que teve a revisão de seu regulamento divulgada em 202116, e da London Court of International Arbitration (“LCIA”), que consolidou o caráter remoto dos procedimentos arbitrais, o qual já era em grande parte previsto no seu regulamento de 2014. Além destas alterações na LCIA e da CCI, também foi realizada uma atualização das IBA Rules on the Taking of Evidence in International Arbitration, amplamente utilizadas em arbitragens administradas pelas mais diversas câmaras ao redor do mundo, dando ênfase às remote hearings e, assim, influenciando o desenvolvimento da produção probatória em arbitragens principalmente internacionais17.
Deve se registrar, por fim, que os procedimentos 100% remotos, em que se inclui a realização de audiências totalmente virtuais, não violam, per se, os princípios do contraditório, da ampla defesa, do livre convencimento ou da igualdade das Partes, cabendo ao Tribunal Arbitral, após ouvidas as Partes, decidir acerca do formato para a realização da audiência18.
Com todas essas inovações e atualizações decorrentes do cenário de Pandemia, a comunidade arbitral sairá desse momento com uma bagagem muito mais extensa na condução de procedimentos arbitrais remotos. Não há dúvidas, assim, de que os procedimentos arbitrais processados integralmente de forma remota vieram para ficar. Com o preestabelecimento de regras, discutidas entre as partes, o tribunal arbitral e a instituição arbitral responsável pela administração do procedimento, o procedimento arbitral processado de forma remota tende a ser o caminho mais viável para a resolução de conflitos, em curto espaço de tempo e de forma economicamente viável e eficiente.
______________
1 Disponível em Virtual Hearings in International Arbitration | ASA SCAI Webinar. Acesso em: 09 jan. 2021.
2 SCHERER, Maxi. Chapter 4: The Legal Framework of Remote Hearings. In: “International Arbitration and the Covid-19 Revolution” (Editado por Maxi Scherer, Niuscha Bassiri, Mohamed S. Abdel Wahab), Kluwer Law International, 2020. p. 67.
3 Disponível em: 2018 International Arbitration Survey: The Evolution of International Arbitration. Acesso em 05 mar. 2021.
4 Disponível em: ?A Brief Guide to Online Hearings at ICSID. Acesso em 20 fev. 2021.
5 Disponível em: Rethinking Virtual Hearings. Acesso em 18 fev. 2021.
6 Disponível em: Seoul Protocol on Video Conference in International Arbitration. Acesso em 01 mar. 2021.
7 Como o “Information Technology in International Arbitration” (2017), o “Techniques for Controlling Time and Costs in Arbitration” (2012), o Apêndice IV do Regulamento de Arbitragem da International Court of Arbitration (“ICC”) de 2012 e o “Effective Management in Arbitration – A Guide to In-House Counsel and Other Party Representatives”.
8Conforme reportado em: The 7th Asia Pacific ADR Conference. Acesso em 02 mar. 2021.
9 Disponível em: KCAB Releases Draft Protocol on Video Conferencing. Acesso em 01 mar. 2021.
10 CANADÁ, Corte Superior de Justiça de Ontario. Guarantee Co. of North America v. Nuytten, 1997; CANADÁ, Corte Superior de Justiça de Ontario. Wright v. Wasilewski, 2001. Disponível em: Wright v. Wasilewski, 2001 CanLII 28026 (ON SC). Acesso em: 15 mar. 2021; CANADÁ, Corte Superior de Justiça de Ontario. Davies v The Corporation of the Municipality of Clarington, 2015. Disponível em: Davies v. Clarington (Municipality), [2015] O.J. No. 3599. Acesso em 16 mar. 2021.
11 Disponível em: Judgments - Polanski (Appellant) v. Conde Nast Publications Limited (Respondents). Acesso em 02 mar. 2021.
12 Disponível em: ICC Guidance Note on Possible Measures Aimed at Mitigating the Effects of the COVID-19 Pandemic. Acesso em 02 mar. 2021.
13 Disponível em: Guidance Note on Remote Dispute Resolution Proceedings. Acesso em 20 fev. 2021.
14 Disponível em: Notas sobre Reuniões e Audiências Remotas do CAM-CCBC. Acesso em 01 mar. 2021.
15 Disponível em: Orientações da Câmara Ciesp/Fiesp para a realização de Audiências Virtuais. Acesso em 28 fev. 2021.
16 Disponível em: Regulamento de Arbitragem ICC. Acesso em 28 fev. 2021.
17 Disponível em: Reforma das Regras da IBA para a Produção de Provas em Arbitragem Internacional. Acesso em 06 mar. 2021.
18 A discussão a respeito do formato da audiência arbitral, atualmente, foi objeto de pesquisa do International Council for Commercial Arbitration (“ICCA”), intitulada “Does a Right to a Physical Hearing Exist in International Arbitration?”, que investigou 86 jurisdições signatárias da Convenção de Nova Iorque. Em tal pesquisa, experts de cada uma das jurisdições se debruçaram sobre tal questionamento, tal como foi o caso do report de Rafael Francisco Alves sobre o Brasil, tendo constatado que em diversas jurisdições não há um direito a priori de uma audiência presencial. Este é o caso dos Estados Unidos, da França, da Inglaterra e país de Gales, todos, é claro, com as suas especificidades. Informações sobre tal pesquisa estão disponíveis em: Does a Right to a Physical Hearing Exist in International Arbitration?. Acesso em 23 jun. 2022.