Um tema que por vezes surge no âmbito do processo judicial e não se encontra livre de polêmicas é o que diz respeito à decretação judicial, de ofício, da prescrição da pretensão da parte. Tal tema surgiu pela primeira vez no direito brasileiro quando do advento da lei 11.280/06, que, inter alia, acresceu o § 5º ao art. 219 do antigo Código de Processo Civil de 1973 (“CPC/73”), com a seguinte redação: “O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição”.
O dispositivo acima restou suprimido pelo Código de Processo Civil de 2015 (“CPC/15”), mas seu espírito se manteve intacto, conforme se observa da redação do art. 332, § 1º do CPC/15: “O juiz também poderá julgar liminarmente improcedente o pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de prescrição”. E, no mesmo sentido, a redação do art. 487, inciso II do mesmo diploma: “Haverá resolução de mérito quando o juiz (...) II - decidir, de ofício ou a requerimento, sobre a ocorrência de decadência ou prescrição”1.
De uma forma ou de outra a vontade do legislador nas reformas processuais de 2006 e 2015 prevaleceu: a prescrição pode ser decretada, de ofício, pelo juiz2. Tal regra foi incorporada ao sistema jurídico nacional com o propósito de promover a celeridade da prestação jurisdicional, permitindo ao juiz o indeferimento liminar da petição inicial quando se deparar com a ocorrência da prescrição da pretensão deduzida em juízo pelo autor3.
As críticas a essa regra são inúmeras4, em razão da quebra de uma “tradição milenar – pois desde Roma a prescrição sempre foi tratada como uma exceção de direito material cuja arguição é da livre disponibilidade do devedor” 5, mas a apuração detalhada dessa mudança no instituto da prescrição não será abordada nestas breves notas.
Não se está aqui reprovando toda e qualquer mudança de lei, eis que o ponto fulcral de uma reforma legislativa, ainda mais processual, como ocorreu no caso da prescrição ex officio, é justamente estabelecer um ponto de equilíbrio para que a celeridade do processo venha a fortalecer e melhorar a defesa do direito e não a enfraquecer6.
O fato é que, ao menos em relação à prescrição, o legislador precipitou-se ao estabelecer o seu decreto ex officio, revogando disposições como a do art. 194 do Código Civil (“CC”7) e desvirtuando a verdadeira essência da prescrição extintiva.
Pode-se asseverar que a mudança de regime da prescrição, elevando-a à questão de ordem pública processual, é absolutamente incompatível (com o processo civil8) e inaplicável à arbitragem.
Em primeiro lugar, sem que se conteste a natureza jurisdicional do poder do árbitro, este somente poderá decidir sobre uma alegação de ocorrência de prescrição quando efetivamente provocado pela parte interessada. A arbitragem se operacionaliza por meio do protocolo do requerimento de arbitragem. Em caso de arbitragem institucional, tal requerimento é protocolado, seja por via física ou eletrônica, diretamente junto à determinada câmara, que adota as providências para que, inter alia, o tribunal arbitral seja constituído. Após a regular constituição do tribunal arbitral, firmar-se-á o termo de arbitragem e é nesse momento, estabilizador da demanda9, que eventuais alegações a respeito da ocorrência de prescrição poderão ser expostas pela parte interessada, no capítulo reservado aos pedidos da parte. Sem prejuízo, por óbvio, da alegação sobre ocorrência de prescrição em qualquer fase do procedimento, permitido pelo art. 193 do CC10.
Em segundo lugar, a elevação da prescrição à questão de ordem pública no direito processual civil brasileiro não pode ser transposta à arbitragem, eis que a intenção do legislador ao promover as reformas de 2006 e 2015 no tocante à prescrição ex officio foi tão somente sacrificar a essência de um instituto jurídico para desafogar um assoberbado número de processos distribuídos junto ao Poder Judiciário11.
Por isso, a decretação ex officio da prescrição é descartada na arbitragem, por uma simples razão de incompatibilidade desse ato com a natureza jurídica da arbitragem, própria para dirimir litígios mais específicos e peculiares em relação àqueles que são submetidos ao processo judicial12.
Assim sendo, resta claro que a prescrição, em matéria de arbitragem, não ostenta caráter de ordem pública processual, como ocorre no processo civil judicial após o advento das reformas de 2006 e 2015. Sua natureza jurídica é, para a arbitragem, de ordem pública material13. A prescrição é uma questão que, a despeito da redação do art. 332, § 1º do CPC/15 – que manteve o caráter de ordem pública processual da prescrição14 –, ainda permanece como um simples meio de defesa do devedor, um meio de exceção de direito material.
Trata-se aqui de um simples exemplo de inaplicabilidade à arbitragem de dispositivos do CPC que têm como alvo, unicamente, o processo judicial15.
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1 Ainda que o parágrafo único do art. 487 do CPC/15 reconheça que tanto a prescrição como a decadência não serão reconhecidas sem que antes seja dada às partes oportunidade de manifestar-se, ele faz, em seu corpo, a ressalva da aplicação do citado § 1º do art. 332, que possibilita o exame da questão, ex officio, pelo juiz.
2 Com a ressalva da previsão contida no art. 10 do CPC/15, segundo o qual “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.
3 Segundo Oreste Nestor Lastro: “Com efeito, se a partir dos fatos e fundamentos jurídicos do pedido expostos na inicial, o juízo entender que ocorreu a prescrição ou decadência do direito do autor, pode liminarmente julgar a demanda improcedente” (Código de processo civil anotado. CRUZ E TUCCI, José Rogério; et al. (coords). São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo; OAB Paraná, 2019, p. 572).
4 Vide nesse sentido, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição – Liberdade e dignidade da pessoa humana. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo: Dialética, n. 40, p. 64-78, jul. 2006; do mesmo autor, A exceção de prescrição no processo civil. Impugnação do devedor e decretação de ofício pelo juiz. In: FABRÍCIO, Adroaldo Furtado; CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro (Coord.). Meios de impugnação ao julgado civil. Estudos em homenagem a José Carlos Barbosa Moreira. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 303-323.
5 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição – Liberdade e dignidade da pessoa humana. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo: Dialética, n. 40, p. 64, jul. 20.
6 Nesse sentido, oportuna a lição de José Rogério Cruz e Tucci, que, com apoio nos ensinamentos de Celso Agrícola Barbi, afirma que “as sucessivas reformas processuais têm sempre o objetivo de encontrar o ponto de equilíbrio, em que a celeridade desejável não provoque o enfraquecimento de defesa do direito de cada um” (Tempo e processo. São Paulo: RT, 1997. p. 38-39).
7 Eis o que dispunha o revogado art. 194 do CC: “O juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo de favorecer a absolutamente incapaz”.
8 Nesse sentido, explica Ricardo de Carvalho Aprigliano: “Não é a lei processual que poderá influenciar toda a disciplina material da prescrição, mas o inverso. Dadas as características gerais do instituto, suas origens históricas e o fato de subsistirem diversas normas que demonstram claramente o caráter da disponibilidade desta figura, é a lei processual que deve ser influenciada. Sua interpretação deve ser feita de forma a relativizar estes poderes do juiz, que deverão ser exercitados com muita parcimônia [...]”. E complementa: “Acima de tudo, só poderá haver reconhecimento de ofício da prescrição se as partes forem previamente intimadas a se manifestar, argumento que demonstra, por si só, a fragilidade da modificação. Não porque o contraditório pudesse ou devesse ser dispensado em qualquer circunstância, inclusive em relação a matérias suscitadas primeiro pelo magistrado (conforme item 4.4, retro), mas apenas porque a decisão sobre a prescrição depende da alegação ou do esclarecimento de fatos diretamente pela parte, o que equivale a dizer que ela requer alegação, não se satisfaz com declaração de ofício” (Ordem pública e processo: o tratamento das questões de ordem pública no direito processual civil. 2010. São Paulo: Atlas, 2011, p. 124).
9 “O termo de arbitragem tem na delimitação do objeto do litígio e do pedido das partes seus pontos mais importantes, que representam a estabilização da demanda. Apesar de ser a convenção de arbitragem o instrumento originário e vinculante da arbitragem, não se pode deixar de considerar que o termo de arbitragem tem o condão de reiterar os termos da convenção de arbitragem, delimitar a controvérsia e ressaltar a missão do árbitro, que deverá ater-se às suas disposições, para não gerar motivos para a anulação da sentença arbitral.” (LEMES, Selma M. F. A função e o uso do termo de arbitragem. Valor Econômico, p. e-2 - E-2, 08 set. 2005).
10 “Art. 193. A prescrição pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita”.
11 Nesse sentido, afirma Donaldo Armelin: “Não militam em favor da aplicação subsidiária do disposto no art. 219, § 5.º, do CPC ao processo arbitral, os escopos que nortearam a promulgação da Lei 11.280/2006, centrados na necessidade de redução do número de processos mediante a extinção daqueles em que a pretensão sub judice já tenha sido afetada pela prescrição” (Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, n. 15, p. 72, out.-dez. 2007).
12 Donaldo Armelin explica muito bem essa incompatibilidade: “Cerceou-se, na tela processual jurisdicional, a possibilidade de a parte ver declarada não apenas a extinção da pretensão como, ainda, do próprio direito ao qual ela se vincula. Porém, essa restrição não se impõe ao processo arbitral, que não suporta a opressão de milhares de litígios submetidos à jurisdição estatal, nem se harmoniza com o processo arbitral gerado pelo interesse das partes em ver extinto definitivamente o conflito de interesses no qual se encontram inseridas” (Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, n. 15, p. 72, out.-dez. 2007).
13 Nesse sentido, vale citar lição de Yussef Said Cahali, que, a respeito da natureza jurídica da prescrição extintiva, entende que, “quando se diz que a prescrição é de ordem pública, tem-se em mente significar que foi estabelecida por considerações de ordem social, e não no interesse exclusivo dos indivíduos. Ela, assim, existe independentemente da vontade daqueles a quem possa prejudicar ou favorecer. A lei que cria é rigorosamente obrigatória”. (Prescrição e decadência. São Paulo: RT, 2008. p. 19-20).
14 Segundo Donaldo Armelin, “a invocação da prescrição de pretensões de natureza patrimonial, até então adstrita ao alvedrio da parte por ela beneficiada, deixou de ser opção desta, passando a se constituir matéria de ordem pública processual, submetendo-se ao exame oficioso do juiz, que não poderá furtar-se ao seu reconhecimento” (Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, n. 15, p. 66, out.-dez. 2007).
15 Sobre o assunto, ver aqui. Acesso em 15 abr. 2022.