Um tema que recentemente ressurgiu nas discussões que ocorrem durante a fase pós-arbitral diz respeito à possibilidade ou não de incluir árbitros e instituições arbitrais no polo passivo da ação anulatória de sentença arbitral, cujas hipóteses de cabimento encontram-se dispostas no art. 32 da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem").
Tal questão, que havia sido sepultada por meio da decisão proferida no âmbito do Recurso Especial nº 1.433.940/MG1, está sendo objeto de debates no bojo de ação anulatória de sentença arbitral movida pela União Federal e que tramita perante o Tribunal Regional Federal da 3ª região2. Nesse processo, o juízo de primeira instância excluiu a câmara arbitral e os árbitros do polo passivo da demanda, mas em sede de liminar obtida em agravo de instrumento, a inclusão daquelas partes no polo foi restabelecida e agora pende de julgamento3.
Tal debate – inclusão de instituições arbitrais e árbitros no polo passivo da demanda judicial de impugnação da sentença arbitral – sequer deveria existir, dada a sua atecnicidade. Com efeito, a instituição arbitral (assim como os árbitros) não possui legitimidade para figurar no polo passivo de ação que pretende anular sentença arbitral, por simplíssima razão: tais partes não possuem interesse processual na manutenção ou não da sentença arbitral. No mesmo sentido, em âmbito judicial, o juiz estatal não deve figurar no polo passivo da ação rescisória, eis que o prolator da decisão rescindenda, não é o destinatário da eficácia jurídica da desconstituição4. Tal posição é confirmada pela mais autorizada doutrina, a começar por Cândido Rangel Dinamarco:
"Com esse perfil, a ação anulatória de sentença arbitral guarda alguma semelhança com a ação rescisória de sentenças ou acórdãos judiciais, dela diferindo em alguns aspectos (...). São legitimados a ela, (a) no polo ativo, aquele ou aqueles que houverem sucumbido no processo arbitral, interessados na desconstituição do laudo, e (b) no passivo, o vencedor ou vencedores, interessados em sua manutenção. São esses os sujeitos cujas esferas jurídicas serão de algum modo atingidas pelo julgamento de mérito a ser proferido na ação anulatória. O árbitro ou árbitros, embora sejam eles os autores do ato a ser anulado, não têm legitimidade para figurar na ação anulatória, tanto quanto o juiz estatal não é parte legítima à rescisória"5.
Da mesma forma, é a lição de Flávio Luiz Yarshell:
"Nem mesmo quando a demanda se fundar em vício decorrente de ato praticado pelos árbitros (particularmente no caso do art. 32, VI, da LArb), e suposto que a pretensão seja exclusivamente a de desconstituição da decisão arbitral, haverá tal legitimidade passiva na medida em que os árbitros não são os destinatários da eficácia jurídica da desconstituição"6.
Ainda, a lição de Franciso Cahali:
"Por opção do legislador, indicou-se o procedimento comum para a ação de desconstituição da sentença arbitral (arts. 318 e ss., do CPC/2015), a ser direcionada, quando se tratar de arbitragem com sede fixada no Brasil, ao órgão de primeiro grau do Poder Judiciário que seria competente para julgar originariamente a causa. Pela sua natureza, devem ser partes da ação todos aqueles que assim figurarem no procedimento arbitral; árbitros ou instituições arbitrais não possuem legitimidade para figurar no polo passivo da ação prevista no art. 33, caput, e §4º, da lei 9.307/1996"7.
Finalmente, a lição de Leonardo de Faria Beraldo:
"Com efeito, parece termos deixado bastante claro que o árbitro e a instituição de arbitragem não têm legitimidade para figurarem no polo passivo de eventual ação anulatória. A propósito, o TJSP já decidiu que “nesse passo, seria no mínimo teratológico, admitir que o Tribunal Arbitral possa figurar no polo passivo da lide, até porque esta é composta por aqueles que fazem parte da relação jurídica material controvertida, e o referido Tribunal, nenhum interesse possui na causa, já que naquela esfera assumiu a função de órgão julgador, imbuído de estrita imparcialidade para solucionar a causa a ele levada a julgamento"8.
Tal posição foi corroborada pela jurisprudência brasileira, que, além do leading case do já citado Recurso Especial nº 1.433.940/MG, se posicionou pelo mesmo entendimento por meio de seus tribunais. Confira-se, em primeiro lugar, julgado oriundo do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro ("TJ/RJ"):
"PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ARBITRAGEM. AÇÃO ANULATÓRIA DE NULIDADE DE SENTENÇA ARBITRAL. ILEGITIMIDADE PASSIVA.
Somente as partes que submeteram a solução do litígio ao juízo arbitral e se sujeitam aos efeitos da decisão proferida devem integrar a lide em que se postula a anulação do procedimento ou da decisão arbitral.
Em decorrência da condição de julgadora, a árbitra carece de legitimidade para compor o pólo passivo na ação de nulidade de sentença arbitral, tanto mais que nem a causa de pedir nem os pedidos a envolvem.
Recurso desprovido"9.
Em seguida, cita-se julgado emanado do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina ("TJ/SC"):
"APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE INSTITUIÇÃO DE ARBITRAGEM. INÉPCIA DA INICIAL AFASTADA. LIDE PROPOSTA CONTRA A CÂMARA DE MEDIAÇÃO E ARBITRAGEM CONSUBSTANCIADA EM EVENTUAIS NULIDADES NA INSTITUIÇÃO DA CLÁUSULA ARBITRAL DE RESPONSABILIDADE DA PARTE CONTRATANTE. EVENTUAL NULIDADE QUE NÃO PODE SER IMPUTADO AO JUÍZO ARBITRAL QUE ATUA NA MERA CONDIÇÃO DE PRESTADOR DE SERVIÇO PARA AS PARTES CONTRATANTES. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM RECONHECIDA. EXTINÇÃO DO FEITO, SEM JULGAMENTO DO MÉRITO, NOS TERMOS DO ARTIGO 267, VI, DO CPC. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ INEXISTENTE. DEMAIS ALEGAÇÕES QUE CARECEM DE ANÁLISE ANTE O ACATAMENTO DA PRELIMINAR PREJUDICIAL DE MÉRITO. SENTENÇA REFORMADA EM RELAÇÃO À LIDE PRINCIPAL.
A legitimidade é uma das condições da ação e na ausência desta a pretensão das partes não pode ser analisada, acarretando por consequência a extinção do feito sem o julgamento do mérito, nos moldes do art. 267, VI, do CPC (...)"10.
E, por fim, a posição do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJ/SP") a respeito do assunto:
"APELAÇÃO AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE SENTENÇA ARBITRAL ILEGITIMIDADE PASSIVA Hipótese em que a apelante alega ser parte ilegítima para figurar no polo passivo da lide, argumentando que quem deveria responder pela ação anulatória de sentença arbitral deveria ser o presidente da Câmara Arbitral que proferiu a sentença no processo arbitral Ausência de legitimidade dos árbitros em razão deles não serem parte na relação processual Apelante que integrou o polo ativo da lide no Juízo arbitral Legitimidade evidenciada Preliminar rejeitada"11.
Por fim, vale mencionar que o entendimento acima colocado, sedimentado na doutrina e na jurisprudência brasileira, foi objeto do 7º Enunciado da I Jornada "Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios" do Conselho Nacional de Justiça ("CNJ"), realizada em 22 e 23 de agosto de 2016, segundo o qual "os árbitros ou instituições arbitrais não possuem legitimidade para figurar no polo passivo da ação prevista no art. 33, caput, e § 4o, da lei 9.307/1996, no cumprimento de sentença arbitral e em tutelas de urgência"12.
Tendo em vista o ressurgimento de tal desnecessário debate, algumas ações são recomendadas, de modo a preservar a imunidade da figura do árbitro e, porque não dizer, da instituição arbitral, cujo papel é unicamente de administrar o procedimento arbitral. É preciso que, no início da fase arbitral, quando devidamente constituído o tribunal arbitral, se estabeleçam regras que registrem:
- que a instituição arbitral não resolve as disputas, cabendo a ela somente a condução administrativa do procedimento submetido pelas partes ao tribunal arbitral para resolução. Assim, a instituição arbitral não é responsável pela sentença arbitral e consequentemente pelos seus efeitos13;
- que nenhum dos membros do tribunal arbitral poderá ser incluído como parte ou como testemunha em qualquer procedimento judicial ou outro resultante de determinado procedimento arbitral;
- que nenhum dos membros do tribunal arbitral será responsável perante qualquer das partes por qualquer ato ou omissão relacionado a determinada arbitragem, salvo demonstração de que um ou mais árbitros teriam agido de forma dolosa, o que precisaria ser indubitavelmente comprovado;
- que cada parte será responsável por indenizar os membros do tribunal arbitral relativamente a qualquer responsabilidade, custo ou pedido relacionado com determinado procedimento que resulte de seu ato ou omissão;
- que caso algum ou alguns dos membros do tribunal arbitral venha a ter de suportar alguma responsabilidade, custo ou despesa – seja de que natureza for – como resultado de conduta dolosa ou com negligência grosseira de uma das partes, essa parte será inteiramente responsável por ressarcir ou indenizar o(s) árbitro(s).
Diante da atecnicidade da matéria ora discutida, e, notadamente da veemente posição da doutrina e jurisprudência a respeito do tema, enquanto não houver a conscientização desse tema pelos usuários da arbitragem e do contencioso judicial, não restará outra opção senão criar regras que estipulem sobre a imunidade dos árbitros bem como da própria instituição arbitral, prevenindo-se assim, futuras e infundadas demandas contra os aludidos atores.
Pensa-se que a adoção de tais regras logo no início do procedimento arbitral, permita que o respectivo procedimento transcorra de forma serena, devendo os esforços das partes se concentrarem no mérito da disputa, o que, ao fim e ao cabo, é o verdadeiro ponto de interesse da resolução da disputa pela via arbitral.
__________
1 RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA DE PROCEDIMENTO ARBITRAL. POLO PASSIVO. ÓRGÃO ARBITRAL INSTITUCIONAL. CÂMARA ARBITRAL. NATUREZA ESSENCIALMENTE ADMINISTRATIVA. ILEGITIMIDADE PASSIVA. INTERESSE PROCESSUAL. AUSÊNCIA. 1. A instituição arbitral, por ser simples administradora do procedimento arbitral, não possui interesse processual nem legitimidade para integrar o polo passivo da ação que busca a sua anulação. 2. Recurso especial provido. (STJ, REsp nº 1.433.940/MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, j. 26.09.2017, DJ 02.10.2017, v.u).
2 Processo nº 5024529-11.2020.4.03.6100.
3 Agravo de Instrumento nº 5014095-90.2021.4.03.0000. TRF da 3ª Região, 2ª Turma.
4 Nesse sentido v. YARSHELL, Flávio Luiz. Ação Anulatória, in LEVY, Daniel; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. (coord.), Curso de Arbitragem, São Paulo, RT, 2018, p. 452.
5 DINAMARCO, Cândido Rangel. A arbitragem na teoria geral do processo, São Paulo, Malheiros, 2013, p. 236.
6 YARSHELL, Flávio Luiz. Ação Anulatória, in LEVY, Daniel; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. (coord.), Curso de Arbitragem, São Paulo, RT, 2018, p. 452.
7 CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem, 6ª Ed., São Paulo, RT, 2017, p. 399.
8 BERALDO, Leonardo de Faria. Curso de Arbitragem: nos termos da Lei nº 9.307/96. São Paulo: Atlas, p. 529.
9 TJRJ, 17ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº 2006.002.00014, rel. Des. Henrique Carlos de Andrade Figueira, j. 11.01.2006.
10 TJSC, Apelação Cível nº 2011.080855-8, 3ª Câmara de Direito Civil, rel. Des. Saul Steil, j. 24.01.2012.
11 TJSP, Apelação Cível nº 1019871-29.2019.8.26.0100, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Ricardo Negrão, j. 18.03.2020. No mesmo sentido, ver TJSP, Agravo de Instrumento nº 2150575-54.2021.8.26.0000, rel. Des. Francisco Casconi, 31ª Câmara de Direito Privado, j. 06.08.2021.
12 Fonte: Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios — Conselho da Justiça Federal (cjf.jus.br). Acesso em 22 mar. 2022.
13 A esse respeito, merece ser citada passagem de julgado emanado do TJRJ: "Como simples organizadora, a corte arbitral carece de legitimidade para compor o pólo passivo na ação de nulidade de sentença arbitral fundada em parcialidade do árbitro". TJRJ, Agravo de Instrumento nº 2005.002.15963, rel. Des. Henrique Carlos de Andrade Figueira, 17ª Câmara Cível, j. 14.09.2005.