Em recente decisão, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJ/SP"), ao se pronunciar em sede de ação anulatória de sentença arbitral, decidiu, conforme transcrição da ementa do correspondente julgado:
"AÇÃO ANULATÓRIA DE SENTENÇA ARBITRAL PARCIAL – Sentença parcial que afastou a alegação de prescrição e determinou a produção de prova pericial. Autora no procedimento arbitral que precluiu do direito de protestar pela produção de provas. Liberdade das partes de definir o procedimento arbitral que aumenta a importância de respeitar o procedimento voluntariamente definido. Sentença arbitral parcial anulada. Recurso provido (...)"1.
Trata-se, na origem, de arbitragem processada sob a égide da Câmara de Comércio Internacional ("CCI"), envolvendo a Companhia do Metropolitano de São Paulo ("Metrô") e o Consórcio Linha Amarela ("Consórcio"). Segundo consta do acórdão em referência, o Tribunal Arbitral formado no aludido procedimento proferiu sentença parcial em que, inter alia, rejeitou alegações de ocorrência de prescrição (cujo prazo seria, na visão do Metrô, trienal) e de preclusão do direito de o Consórcio produzir provas. Tal decisão foi objeto de ação anulatória de sentença arbitral, julgada improcedente em primeira instância, mas, em seguida, reformada pela 1ª Câmara de Direito Público do TJ/SP.
Em breve resumo, a 1ª Câmara de Direito Público do TJSP entendeu, por maioria de votos, inter alia, que no início da arbitragem (precisamente, no Termo de Arbitragem ou Ata de Missão, na linguagem regulamentar da CCI), as Partes estabeleceram um calendário procedimental prevendo que todas as provas a serem produzidas deveriam ser indicadas nas alegações escritas. Na ausência da indicação dessas provas, ocorreria a preclusão do direito da parte. Essa foi a conclusão do referido decisum:
"[...] No processo arbitral, como o procedimento é estabelecido pelas próprias partes, a necessidade de respeitá-lo só aumenta. Isso porque não é necessário que o julgador indague se o procedimento é adequado à resolução da controvérsia que deve resolver; as próprias partes, ao determinar o procedimento, já responderam positivamente a essa indagação.
Assim, se o réu deixou de indicar nas alegações iniciais, de maneira fundamentada, quais as provas que pretendia produzir, ocorreu a preclusão desse direito. Ao rejeitar a alegação de preclusão da produção probatória, a sentença arbitral parcial (fls. 185-257) desrespeitou o cronograma de procedimento e, consequentemente, a igualdade de partes, nos termos do art. 21, § 2º da Lei nº 9.307/96.
Por isso, é o caso de anulá-la, nos termos do art. 32, VIII da mesma lei. O fato de já terem sido produzidas as provas, conforme informado nas razões de apelação, não resulta na perda superveniente do objeto, vez que da anulação da sentença arbitral parcial pode e deve resultar alteração na valoração das provas validamente aceita [...]".
Assim, o voto condutor do recurso entendeu que a sentença arbitral deveria ser anulada, com base no disposto no art. 32, inciso VIII, da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem")2, pelo fato de a parte Requerente da Arbitragem não ter indicado, nas Alegações Iniciais, as provas que pretenderia produzir, e por isso, teria precluído o direito da Requerente de produzir provas.
Além de tal decisão não se enquadrar em qualquer das hipóteses do rol taxativo previsto no art. 32 da Lei de Arbitragem, como aliás, frisou muito bem o voto vencido, de lavra do Desembargador Danilo Panizza, a crítica maior que pode ser tecida face ao julgado é o rigorismo excessivo imposto pela maioria da turma julgadora, na aplicação do instituto da preclusão na arbitragem.
Segundo a Lei de Arbitragem, verificou-se a absoluta despreocupação do legislador de fixar regras concernentes a qualquer aspecto que levasse em conta o fator tempo durante a fase arbitral, excetuando-se questões como o prazo para o proferimento da sentença arbitral3 e o prazo para apresentação de pedidos de esclarecimentos face à sentença arbitral4.
Talvez, a despreocupação do legislador em fixar regras mais específicas a respeito de questões temporais na arbitragem tenha se dado em razão do caráter flexível da arbitragem5 tornando-o, um procedimento "sob medida"6, de "qualidades próprias", como dizia Cláudio Vianna de Lima7, ou de um objeto de uma “alfaiataria jurídica”, na expressão de José Augusto Fontoura Costa8.
Quando se fala em flexibilidade da arbitragem, pensa-se, automaticamente, na ideia de fixar um procedimento livre, com regras predeterminadas, seja pelas partes, seja pelos árbitros, sem se ater às normas processuais cogentes do país sede da arbitragem9.
Esse procedimento livre justifica-se pela própria autonomia das partes em uma arbitragem. Se as partes quiseram a arbitragem, portanto, caberá a elas a regência do procedimento, inclusive a fixação dos prazos procedimentais. No entanto, tal autonomia deve estar de acordo com as leis regentes do procedimento e do mérito da controvérsia. Recomenda, nesse ponto, Carlos Alberto Carmona, que os advogados estejam sempre "atentos ao problema para que o árbitro foque sua atenção sobre o que realmente conta, ou seja, dirija seus esforços para a solução do litígio, ao invés de ocupar-se com quizilas processuais"10.
É dessa forma que, em um procedimento arbitral, as partes podem livremente estipular o prazo em que a sentença arbitral será prolatada, pactuar o tempo-limite para apresentação das alegações iniciais e finais, estabelecer um período predeterminado para a realização de uma prova pericial, bem como o prazo para que o correspondente laudo técnico seja disponibilizado, etc. Não há peremptoriedade dos prazos, tampouco a ocorrência dos efeitos da preclusão11.
No entanto, da leitura do acórdão, depreende-se que a maioria da turma julgadora descartou as premissas acima e entendeu que, se a parte deixou de indicar nas alegações iniciais, de maneira fundamentada, quais as provas que pretendia produzir, ocorreria a preclusão desse direito.
Conquanto a ideia de previsibilidade seja sempre útil na arbitragem e que as partes sejam sempre encorajadas a juntar todas as provas com suas alegações escritas, não se vê, qualquer óbice em que, em momento posterior, haja a necessidade de produção de eventual prova, não alegada ou suscitada nas alegações escritas. É correto afirmar que o árbitro deve se ater à sua missão, definida no Termo de Arbitragem e estar atento às alegações das partes, mas a fase instrutória da arbitragem deve permitir que o Tribunal Arbitral, se não satisfeito com o acervo probatório produzido, se convença da necessidade de produzir uma prova originalmente não suscitada nas alegações escritas. Penalizar a parte que deixa de suscitar ou indicar alguma prova nas alegações escritas com base na preclusão12, fere, por si só o espírito flexível da arbitragem e a busca pela verdade, além de processualizar, indevidamente, a arbitragem13.
O formalismo imposto pela decisão do TJ/SP é, dessa forma, excessivo. Tal prática, além de contrariar o próprio regulamento de arbitragem escolhido pelas partes para reger sua controvérsia, (art. 25 do Regulamento da CCI14) não está em sintonia com o sistema arbitral, ao qual não se aplica o instituto da preclusão. Por outro lado, é certo que a previsibilidade, caracterizada pela prefixação das partes dos prazos a serem cumpridos e provas a serem requeridas deva ser sopesada com o estado do acervo probatório dos autos e a necessidade de se proferir uma sentença completa, fundada essencialmente nas provas, garantindo-se, ao fim e ao cabo, sua exequibilidade. O remédio para isso está no poder jurisdicional conferido aos árbitros, verdadeiros destinatários da prova na arbitragem. Não há como se conceber, portanto, que o princípio da igualdade das partes estaria ferido pelo fato de o Tribunal Arbitral ter rejeitado a alegação de preclusão do direito de produzir provas, o que foi feito por meio de sentença arbitral parcial15.
Como já exposto em escrito anterior16, a liberdade das partes na arbitragem é sopesada pelo controle dos árbitros, a quem compete a última palavra, notadamente no que concerne à fase de instrução da arbitragem, crucial para o bom desfecho da arbitragem. Trata-se de medida de pura "administração de justiça", conforme ensina Charles Jarrosson17.
Como bem afirma José Carlos de Magalhães, "na arbitragem, a regra é a decisão sempre se fundar na prova e não nos efeitos legais decorrentes da revelia e da preclusão"18. Espera-se que com esses breves comentários, o julgado acima citado possa ser revisto e reformado pelas instâncias superiores, expurgando-se da arbitragem o excessivo formalismo e a rigidez, próprios do sistema estatal.
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1 TJ/SP, Apelação Cível nº 1066484-54.2019.8.26.0053, 1ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Azuma Nishi, j. 10.03.2021.
2 Violação dos princípios do contraditório, da igualdade das partes, inter alia.
3 "Art. 23. A sentença arbitral será proferida no prazo estipulado pelas partes. Nada tendo sido convencionado, o prazo para a apresentação da sentença é de seis meses, contado da instituição da arbitragem ou da substituição do árbitro".
4 "Art. 30. No prazo de 5 (cinco) dias, a contar do recebimento da notificação ou da ciência pessoal da sentença arbitral, salvo se outro prazo for acordado entre as partes, a parte interessada, mediante comunicação à outra parte, poderá solicitar ao árbitro ou ao tribunal arbitral que (...)".
5 Sobre a flexibilidade do procedimento arbitral v. FRANCO MONTORO, Marcos André. Flexibilidade do procedimento arbitral. 2010. Tese (Doutoramento) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo.
6 Nesse sentido, v. Steven A Hammond: "One of the great strengths of arbitration is its procedural flexibility, which permits the process to be tailored to the particular needs of each case […]" (Making the case in international arbitration: a common law orientation to the marshalling and presentation of evidence, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 5, n. 16, p. 171-196, jan.-mar. 2008). No mesmo sentido v. Karl-Heinz Böckstiegel: "There are many ways of managing case efficiently, and it is one of the advantages of arbitration over court litigation that arbitral tribunals can shape a tailor made procedure that takes into account the many particularizes of each case […] Although it is important to clarify the rules of the game as early as possible, it is also important to leave room for flexibility later in the proceedings[…]" (Presenting evidence in international arbitration, ICSID Review: Foreign Investment Law Journal, Washington, v. 16, n. 1, p. 1-9, 2001).
7 Nesse sentido, dizia o referido mestre: "Tenha-se em conta que a duração rápida, usual, do procedimento dos árbitros não é, apenas, um resultado das qualidades próprias do instituto, uma consequência de suas já enaltecidas virtudes, quando indicada a alternativa para solver determinado caso concreto de conflito de interesses. Esse tempo hábil da arbitragem é, e deve ser, antes de tudo, uma obstinada preocupação. Das normas respectivas. Daqueles que a operam". LIMA, Cláudio Vianna de. A arbitragem no tempo – o tempo na arbitragem. In: GARCEZ, José Maria Rossani (Coord.). A arbitragem na era da globalização. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 17.
8 Segundo esse autor, "Além daquelas tradicionalmente apontadas, pode-se agregar o fato da maior flexibilidade do procedimento, já que na arbitragem este pode ser objeto de uma alfaiataria jurídica instituidora de elementos que não dizem respeito às preocupações e objetivos do legislador". COSTA, José Augusto Fontoura. Sobre luzes e sombras: arbitragem, Revista CEJ, Brasília, ano XIV, n. 48, p. 113, 2010.
9 Nesse sentido, ao menos em matéria de arbitragem internacional, assinalam Schlesinger, Baade, Herzog e Wise: "In international commercial arbitration, if the agreement fails to stipulate the applicable law, the arbitrators have the leeway to choose what they regard as the most appropriate rule. It has been suggested (although the suggestion is controversial) that, in such cases arbitrators, are not necessarily bound to apply national law, but may in fact do base their awards on the way the determine to be the rules of the lex mercatoria, a modern version of the old law merchant, which exists apart from systems of national law. In devising such rules, however, they naturally turn to preexisting rules and institutions for guidance […]" (SCHLESINGER, Rudolf B.; BAADE, Hans W.; HERZOG, Peter E.; WISE, Edward M. Comparative Law: Cases – Text – Materials. New York: Foundation Press, 1998. p. 45).
10 CARMONA Carlos Alberto. O processo arbitral, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 1, n. 1, p. 21-31, jan.-abr. 2004.
11 No que se refere aos prazos de preclusão, ao menos no direito arbitral brasileiro, entende Carlos Alberto Carmona que, na esfera arbitral, os efeitos da preclusão operam em relação à oportunidade que as partes têm para arguir, questões relativas à competência, suspeição, ou impedimento do árbitro (art. 20, caput, da lei 9.307/1996). Dessa forma, Carmona, ao tecer o seu comentário ao referido dispositivo legal, assim se manifesta: “Entre essas últimas (questões em que há a atuação do princípio da disponibilidade), estão algumas das questões relativas à suspeição e impedimento do árbitro: se as partes, sabedoras de motivo para afastamento do árbitro, deixam de alegá-lo, estão tacitamente concordando que tal motivo não causará a parcialidade do julgamento (ou, pelo menos, estão aceitando o risco de eventual parcialidade), e consequentemente não podem reservar-se o direito de, proferido o laudo, trazerem à baila a questão (a não ser, é claro, que o motivo de impedimento ou suspeição tenha sido descoberto posteriormente). A preclusão, aqui, ocorrerá se a parte que tiver conhecimento do motivo que possa levar à recusa do árbitro deixar de apresentar a respectiva exceção na primeira oportunidade que tiver”. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei n.º 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 284. No mesmo, ver PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Processo Arbitral e Sistema. São Paulo: Ed. Atlas, 2012, p. 123.
12 Ao tratar do instituto da preclusão, Eduardo de Albuquerque Parente aduz com propriedade: "Em resumo, a preclusão encontra a sua razão de ser justamente na procura pelo bom andamento do processo, pela manutenção de sua marcha rumo a um resultado (...) No entanto, o instituto [da preclusão], se tão importante no processo estatal, está longe de ter a mesma expressão no arbitral. Em prol da verdade, pode-se dizer que ele praticamente inexiste no processo arbitral nos termos do modelo estatal. O que ocorre, no mais das vezes, de fato, é o poder do árbitro de coibir conditas dolosas – como quebrar retardar o procedimento ou tomar vantagem pelo não cumprimento do prazo fixado – mediante sanções processuais semelhantes à preclusão (...)" (Processo Arbitral e Sistema. São Paulo: Ed. Atlas, 2012, p. 120-121).
13 Nesse sentido, ensina José Carlos de Magalhães: "Daí que a processualização da arbitragem, com a adoção de medidas típicas do Judiciário, com sucessivos requerimentos sobre a matéria processual, a invocação de preclusões, pedidos de retiradas de peças apresentadas fora do prazo, pode prejudicar o seu grande efeito, que é a atenção maior ao cerne da controvérsia: o mérito. Cabe aos árbitros impedir procrastinações desnecessárias, evitando discussões processuais impertinentes e não relevantes para a solução da questão controvertida. Na verdade, o que importa na discussão de qualquer controvérsia é a interpretação e a aplicação do direito material – civil, comercial, societário, trabalhista ou de outra natureza – que é o cerne da controvérsia que divide as partes." (Arbitragem: Sociedade Civil x Estado. São Paulo: Almedina, 2020, p. 260).
14 Segundo a referida regra (Regulamento de Arbitragem da CCI, versão de 2017 que foi aplicada ao caso), em especial os subitens 1 e 5, aqui transcritos para facilidade de referência: "25(1): O tribunal arbitral deverá proceder à instrução da causa com a maior brevidade possível, recorrendo a todos os meios apropriados; 25(5) A qualquer momento no decorrer do procedimento, o tribunal arbitral poderá determinar a qualquer das partes que forneça provas adicionais".
15 O que foi confirmado, inclusive, pelo juízo e primeira instancia, ao negar o pedido liminar de suspensão da arbitragem. Confira-se, nesse sentido, parte da decisão do Juízo da 16ª Vara da Fazenda Pública do Estado de São Paulo: "Na decisão do Tribunal Arbitral, ficou consignado que, desde o início, o Consórcio já se manifestava pela perícia (fls. 255) e as partes já estavam cientes de que o procedimento de arbitragem é mais flexível do que a demanda judicial".
16 Fonte: A flexibilidade da arbitragem e o controle dos árbitros - Migalhas. Acesso em 23 jun. 2021.
17 No entendimento de Charles Jarrosson, o controle da arbitragem é exercido totalmente pelo árbitro, deixando claro que a vontade das partes encontra o seu limite na jurisdicionalidade do poder conferido ao árbitro que, diante disso, terá a última palavra. Assim, os poderes do árbitro, em matéria procedimental se justificam pela necessidade de eficácia inerente à administração da justiça (Qui tiens les rênes de l’arbitrage? Volonté des parties et autorité de l'arbitre. Revue de L'Arbitrage 1999, p. 601).
18 MAGALHÃES, José Carlos de. Arbitragem: Sociedade Civil x Estado. São Paulo: Almedina, 2020, p. 58.