Arbitragem Legal

Decisão por equidade da arbitragem: impossibilidade de revisão de mérito pelo juiz estatal

Decisão por equidade da arbitragem: impossibilidade de revisão de mérito pelo juiz estatal.

25/5/2021

Em recente decisão, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJSP"), ao se pronunciar em sede de ação anulatória de sentença arbitral, decidiu, conforme transcrição parcial da ementa do correspondente julgado:

"APELAÇÃO. AÇÃO ANULATÓRIA DE SENTENÇA ARBITRAL. Improcedência. Decisão reformada. Decadência não verificada. Prazo iniciado a partir do julgamento do segundo pedido de esclarecimentos, apreciado por árbitros novos, em razão da renúncia dos anteriores. Mérito. Inexistência de prova de fato que demonstre a parcialidade dos árbitros. Questão que, ainda, deveria ter sido arguida na primeira oportunidade. Art. 20 da lei 9.307/96. Vício de fundamentação existente. Percentual da indenização, ainda que fixado por equidade, não prescinde de fundamentação, sob pena de violação do inc. IX do art. 93 da CF e do art. 489, §1º do CPC, bem como do §2º do art. 21 e inc. II do art. 26, ambos da lei de arbitragem. Indenização que se mede pela extensão do dano. Art. 944 do CC. Decisão arbitral que também não conferiu prazo para a parte requerida se manifestar sobre relatório de empresa de auditoria utilizado para determinar o valor do preço final da compra e venda. Violação ao contraditório e à ampla defesa. Anulação dos capítulos da sentença arbitral que fixaram o percentual dos danos e o valor final do preço de compra e venda. Aplicação dos incs. III e VIII do art. 32 da Lei de Arbitragem. RECURSO PROVIDO EM PARTE (...)"1.

Tal decisão causou perplexidade àqueles que atuam na seara arbitral. Perplexidade que se explica pela indevida interferência do Poder Judiciário no mérito da arbitragem. Essas breves linhas procurarão demonstrar as razões pelas quais não poderia o Poder Judiciário ter se imiscuído indevidamente em matéria única e exclusivamente reservada à jurisdição arbitral.

De forma resumida, o litígio dizia respeito a contrato de compra e venda de quotas sociais de sociedade ligada ao ramo de diagnósticos médicos, materiais médicos, hospitalares, dentre outros, que continha cláusula compromissória, a qual, em determinado trecho, dispôs: "O Tribunal Arbitral será constituído por 3 (três) árbitros, sendo que cada Parte indicará 1 (um) árbitro, e estes, em conjunto, indicarão o árbitro presidente. A arbitragem terá sua sede na cidade de São Paulo, Estado de São Paulo, Brasil, utilizando-se o português como idioma oficial para todos os seus atos. Os árbitros decidirão com base na legislação da República Federativa do Brasil, admitido o julgamento por equidade".

Pois bem. Ao decidir o litigio na arbitragem, o Tribunal Arbitral, se valendo da prerrogativa conferida por ambas as partes na cláusula compromissória, decidiu: "Nesse sentido, considerando as circunstâncias trazidas pelas PARTES e avaliadas pelo Tribunal Arbitral diante de todo o contexto da negociação, o Tribunal Arbitral, valendo-se, neste tópico especifico, da equidade como critério de julgamento na fixação de indenização cabível, condena LUIZ ao pagamento, em favor de ADAVIUM, de 25% (vinte e cinco por cento) do valor histórico do preço ajustado de compra conforme números apontados por PwC em seu relatório. Nesse sentido, considerando que PwC apontou o preço de compra ajustado como sendo R$17.187.000,00, a indenização a ser paga por LUIZ equivale a R$4.296.750,00, a ser corrigido monetariamente desde a data da celebração do Contrato com base na variação de 100% do CDI, tendo em vista ser este o índice contratual de correção."

Irresignada, a parte perdedora ingressou com ação anulatória de sentença arbitral, julgada improcedente, mas reformada em segunda instância, conforme a ementa do correspondente julgado acima transcrita. Basicamente, entendeu o TJSP que, ao fixar o critério indenizatório na sentença, não haveria como saber se o valor da indenização equivaleria ao valor do prejuízo efetivamente suportado, e isso, por si só, contrariava a disposição contida no art. 944 do Código Civil ("CC"), segundo o qual, a indenização se mede pela extensão do dano. Com base nessa motivação, o TJSP entendeu, inter alia, que a sentença arbitral careceria de fundamentação e a anulou, nos termos do art. 32, inciso III da Lei nº 9.307/1996 ("Lei de Arbitragem").

A perplexidade gerada por tal decisão se explica pelo fato de o juízo estatal não apenas ter se imiscuído no mérito da decisão, o que é vedado por lei e pela jurisprudência consolidada dos tribunais brasileiros, em especial a do Superior Tribunal de Justiça ("STJ"2), mas por ter violado frontalmente a efetiva vontade das partes, qual seja, o uso da equidade como critério de julgamento do litígio. 

As partes em uma arbitragem interna ou internacional dispõem de ampla autonomia para escolher o direito aplicável ao fundo da controvérsia. O regime jurídico escolhido é variado, podendo-se aplicar ao caso diversas leis, assim como regras aceitas no universo internacional3. No entanto, é preciso consignar que as partes podem autorizar os árbitros a julgar por equidade4, fazendo valer, como ratio decidendi, o sentimento de justiça5.

Autorizando as partes o julgamento por equidade, os árbitros podem eleger as situações em que a norma não merece mais aplicação ou simplesmente descartar direitos dos quais as partes livremente disponham6. Segundo o entendimento de Carlos Alberto Carmona, tais situações não seriam aplicadas pelo fato de a norma não merecer mais aplicação, porque a situação fora desprovida de previsão pelo legislador, por ser uma norma ultrapassada, ou, ainda, porque a norma causou verdadeiro desequilíbrio em uma relação jurídica, resultando em injustiça para uma das partes7. A percepção de justiça desvinculada ou não de regras jurídicas é o que representa, assim, a decisão por equidade, como entende Selma Lemes8.

No caso ora discutido, o equívoco do TJSP se deu quando afirmou que o percentual da indenização, ainda que fixado por equidade, não prescindiria de fundamentação, sob pena de violação do inc. IX do art. 93 da CF e do art. 489, §1º do CPC, bem como do §2º do art. 21 e inc. II do art. 26, ambos da lei de arbitragem. Ora, se há autorização de julgamento por equidade, devem os árbitros julgar o mérito da demanda conforme o seu sentimento de justiça, à luz dos argumentos lançados pelas partes aliado à prova carreada aos autos e derrogando, se necessário9, o direito positivo. Esse tipo de julgamento somente não seria permitido se houvesse algum elemento de ordem pública material10 (e não processual) a incidir no caso, como, por exemplo, a ocorrência de prescrição extintiva11.

O decisum ora em discussão interferiu de forma indevida no mérito da sentença arbitral, a qual, de forma percuciente, avaliou as circunstâncias trazidas pelas partes contendentes; considerou todo o contexto da negociação das partes; valorou a robusta prova produzida nos autos (cujos trechos foram até mesmo citados no acórdão do TJSP); para, com prévia autorização contratual, definir a indenização devida à parte vencedora utilizando o critério da equidade. Contudo, ao valorar a prova produzida na arbitragem, o TJSP “desbordou completamente do escopo da ação anulatória”, como bem frisou, em recente artigo, Guilherme Rizzo do Amaral12.

Com efeito, a vontade das partes deve ser respeitada quando estas autorizam o árbitro a decidir a causa por equidade. Portanto, devem os árbitros julgarem conforme o sentimento de justiça, derrogando o direito positivo, se necessário. Apenas na hipótese de os árbitros aplicarem outro critério que não o da equidade, a sentença arbitral poderia estar eivada de vícios e certamente seria passível de anulação, com base no art. 32, inciso IV, da Lei de Arbitragem.

Em resumo: é preciso deixar claro que as partes não são obrigadas a autorizar o julgamento por equidade. Acontece que, se o fazem, estão pedindo para que a causa seja julgada com base no sentimento de justiça, sem a aplicação rígida ou estrita de qualquer lei13. Como bem afirma Selma Lemes, a autorização do julgamento por equidade envolve sobretudo o "entrelaçamento de uma enorme quantidade de meios de interpretação e de decisão colocada à disposição do árbitro, de critérios variados que poderá utilizar e que lhe pareçam corretos e convenientes para decidir o litígio, ou seja, alargam os poderes do árbitro na maneira de entender o litígio"14.

Não há dúvidas que, após quase 25 anos de vigência da Lei de Arbitragem no Brasil, a arbitragem permanece sendo o meio preferido de resolução de litígios alternativa ao Judiciário, notadamente para casos como o ora discutido, decorrente de operação societária complexa, que necessitou de robusta produção de prova e uma escorreita decisão a qual pôs termo ao litígio. Mas é preciso que se tenha em mente que o processo arbitral tem início, meio e fim. É preciso que a parte que contrata a arbitragem tenha em mente que o resultado de uma arbitragem não pode ser alterado por instância diversa. O Poder Judiciário deve, sem qualquer dúvida, interceder numa arbitragem, mas de maneira coordenada e cooperativa, como já se pontuou em escritos anteriores desta coluna15. No entanto, o mérito é intangível e constitui a verdadeira essência da arbitragem.

Espera-se que com esses breves comentários, o julgado acima citado possa ser revisto e reformado pelas instâncias superiores, de modo a simplesmente preservar a intangibilidade do mérito das sentenças arbitrais, garantindo-se, ao fim e ao cabo, segurança jurídica aos usuários da arbitragem.

__________

1 TJSP, Apelação Cível nº 1048961-82.2019.8.26.0000, rel. Des. Azuma Nishi, j. 10.03.2021.

2 Ver, nesse sentido, o seguinte julgado: STJ, Quarta Turma, AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 1.670.074-SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 10.12.2020, DJe 12.12.2020.

3 Art. 2º, §§ 1º e 2º da Lei de Arbitragem.

4 Art. 2º, caput, da Lei de Arbitragem.

5 Nesse sentido, v. Fouchard, Gaillard e Goldman: “De la même manière qu’elles peuvent choisir de soumettre le règlement de leurs litiges à une loi étatique ou à la lex mercatoria, les parties peuvent conférer aux arbitres des pouvoirs d’amiables compositeurs” (Traité de l’arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996. p. 847).

6 É o que afirma Eric Loquin: “La clause d’amiable composition est une clause renonciation par laquelle les parties abandonnent à l’arbitre la disposition des droits subjectifs dont elles peuvent elles-mêmes disposer [...]. Il en résulte que l’amiable compositeur, si l’équité l’exige, peut écarter les droits dont les parties ont, une fois le litige né, la libre disposition” (Nota sobre a decisão proferida pela Corte de Cassação Francesa (Cass. Civ. 2.ª), julgado em 15.02.2001. Revue de l’Arbitrage, Paris: Comité français de l’arbitrage, n. 1, p. 142, 2001).

7 Nesse sentido, v. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à lei 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 65-66. O jurista português Miguel Galvão Telles vai mais além, ao entender que no julgamento por equidade se poderia até mesmo desconsiderar prazos em razão das circunstâncias de determinado caso. Assim entende o referido autor: "Um julgamento ex aequo et bono pode considerar circunstâncias do caso não tipificáveis; pode aplicar regimes sem que se verifiquem os índices abstractamente previstos ou excluí-los ainda que os índices se verifiquem; pode prescindir de formalidades ou desconsiderar prazos: tudo em razão de circunstâncias específicas do caso concreto, não ponderáveis em termos susceptíveis de formulação prévia por modo geral e abstracto. Mas o julgamento ex aequo et bono pode mais do que isso: pode, independentemente de qualquer especificidade do caso concreto, afastar os próprios critérios normativos, gerais e abstractos, subjacentes à lei de referência ou a qualquer lei" (Arbitragem comercial internacional ex aequo et bono e determinação de lei de mérito, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, n. 19, p. 95, 2008).

8 Nesse sentido, a posição de Selma Lemes: “Representará a sentença que se respalda na consciência e percepção de justiça do árbitro, que não precisa estar vinculado às regras de direito positivo e métodos preestabelecidos de interpretação. Representará, assim, a decisão por equidade” (A arbitragem e a decisão por equidade no direito brasileiro e comparado. Arbitragem: estudos em homenagem ao Prof. Guido Fernando da Silva Soares (in memoriam). São Paulo: Atlas, 2007. p. 197).

9 A derrogação ou não do direito positivo no julgamento por equidade é bem explicada por Carlos Alberto Carmona: "Pelo que se viu, pode o árbitro, autorizado a julgar por equidade, decidir em sentido contrário àquele indicado pela lei posta, o que não deve dizer que deva ele necessariamente julgar afastando o direito positivo. Em outros termos, se a aplicação da norma levar a uma solução justa do conflito, o árbitro a aplicará, sem que isto possa ensejar em qualquer vício no julgamento. Ao conceder poderes para julgar por equidade, não podem as partes esperar que obrigatoriamente o árbitro afaste o direito positivo, o que configura mera faculdade, como se percebe claramente: neste caso, porém, será sempre interessante que o árbitro explique que, apesar da autorização para julgar por equidade, está aplicando o direito por considerar adequada a solução dada pela lei ao caso concreto" (Arbitragem e processo: um comentário à lei 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 66-67).

10 Nesse sentido, afirma Martim Della Valle: "Do exame da matéria, percebe-se que há dois elementos essenciais da arbitragem por equidade. O primeiro deles é a derrogação do direito positivo, quando ela é analisada sob o prisma da aplicação deste. Com efeito, excetuada a ordem pública, os árbitros investidos da missão de julgar por equidade possuem a faculdade de fazê-lo sem recurso ao direito positivo. Portanto, trata-se aqui da derrogação do direito positivo, sob reserva de ordem pública" (Da decisão por equidade na arbitragem comercial internacional. 2009. Tese (Doutoramento) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 70. Fonte: Martim.indd (usp.br). Acesso em 20 mai. 2021.

11 Ver, nesse sentido, NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014, p. 170-183.

12 Segundo o referido autor, a valoração da prova produzida na arbitragem pelo Judiciário, desborda completamente do escopo da ação anulatória. Isso porque, de regra, "o controle judicial sobre a validade das sentenças arbitrais está relacionado a aspectos estritamente formais, não sendo lícito ao magistrado togado examinar o mérito do que foi decidido pelo árbitro". Embora haja hipóteses em que a anulação da sentença arbitral possa passar pela forma como foi decidido o mérito, elas nunca incluirão o reexame das provas pelo juiz. Fonte: ConJur - Amaral: Breves comentários sobre o caso LRM x VYTTRA. Acesso em 20 mai. 2021.

13 Nesse sentido, entende Martim Della Valle: "Também é inegável que a arbitragem por equidade relaciona-se com o mérito da questão. Sem nenhuma dúvida, o principal efeito de uma cláusula de arbitragem por equidade se dá no nível da solução aplicável ao fundo. No entanto, essa aplicação ao fundo da controvérsia cria, como muito bem notado por Loquin, um paradoxo: a utilização da arbitragem por equidade serve, precipuamente, para o fim de liberar a decisão de fundo da aplicação de um direito positivo. Sujeitar a disciplina da cláusula de equidade a uma lei que a mesma cláusula tende a derrogar não se mostra uma boa solução" (Da decisão por equidade na arbitragem comercial internacional. 2009. Tese (Doutoramento) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 105. Fonte: Martim.indd (usp.br). Acesso em 20 mai. 2021.

14 LEMES, Selma Ferreira. A arbitragem e a decisão por equidade no direito brasileiro e comparado. Arbitragem: estudos em homenagem ao Prof. Guido Fernando da Silva Soares (in memoriam). São Paulo: Atlas, 2007. p. 227.

15 A título de exemplo, ver O Poder Judiciário da sede da arbitragem: o "juge d'appui" - Migalhas. Acesso em 20 mai. 2021. 

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Colunista

Thiago Marinho Nunes é doutor em Direito Internacional e Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Mestre em Contencioso, Arbitragem e Modos Alternativos de Resolução de Conflitos pela Universidade de Paris II – Panthéon-Assas; Vice-Presidente da CAMARB; Fellow do Chartered Institute of Arbitrators; Professor Titular de Arbitragem e Mediação do IBMEC-SP; árbitro independente.