Arbitragem Legal

Arbitragem, embargos à execução e "embargos arbitrais"

Arbitragem, embargos à execução e "embargos arbitrais".

23/2/2021

Um tema que tem sido objeto de debates e que gerou uma série de precedentes judiciais nos últimos anos diz respeito à possibilidade da inserção de cláusulas de arbitragem em títulos executivos extrajudiciais. O ponto principal em discussão é a compatibilidade entre arbitragem e execução. 

Com efeito, em determinados casos (como por exemplo, títulos de financiamento complexos do agronegócio1, determinados contratos bancários, inter alia), a inserção de cláusulas compromissórias pode ser benéfica, ainda que tais títulos (a depender de suas características e disposições) possam ser objeto de automática ação executiva (a depender, necessariamente, da presença dos requisitos da liquidez, certeza e exigibilidade, conforme disposto no art. 783 do Código de Processo Civil – "CPC"2). Nesses casos, não haverá incompatibilidade do uso da arbitragem, eis que a execução do título será exercida pela via judicial, dada a ausência do chamado poder de imperium do árbitro3. Como bem asseverou a Ministra Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº 944.917/SP pelo Superior Tribunal de Justiça ("STJ"): "Deve-se admitir que a cláusula compromissória possa conviver com a natureza executiva do título. (...) não é razoável exigir que o credor seja obrigado a iniciar uma arbitragem para obter juízo de certeza sobre uma confissão de dívida que, no seu entender, já consta do título executivo"4. 

No entanto, no caso de o devedor contestar a dívida exequenda e enfrentar matérias de defesa que tenham conexão com pontos substanciais do título executivo, deverá fazê-lo por meio da arbitragem, apresentando seus embargos executórios única e exclusivamente pela via arbitral ("Embargos Arbitrais"), já que a matéria tocará o mérito da disputa, integralmente reservado à jurisdição arbitral. 

As questões atinentes à compatibilidade entre execução e arbitragem já estão pacificadas no Brasil, tendo, não só a doutrina5 como a jurisprudência dos nossos Tribunais6, em especial a do STJ, firmado entendimento de que ambos os institutos – arbitragem e execução convivem de forma harmoniosa, sem incompatibilidades7. O último e mais detalhado julgado sobre o assunto deu-se no Recurso Especial nº 465.535/SP, julgado pela Quarta Turma do STJ em 21 de junho de 20168. O correspondente acórdão, restou assim ementado: 

"RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. ARBITRAGEM. EXECUÇÃO. TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. CONTRATO DE LOCAÇÃO. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. EMBARGOS DO DEVEDOR. MÉRITO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ARBITRAL. QUESTÕES FORMAIS, ATINENTES A ATOS EXECUTIVOS OU DE DIREITOS PATRIMONIAIS INDISPONÍVEIS. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTATAL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. NATUREZA JURÍDICA. LEI NOVA. MARCO TEMPORAL PARA A APLICAÇÃO DO CPC/2015. PROLAÇÃO DA SENTENÇA.

1. A cláusula arbitral, uma vez contratada pelas partes, goza de força vinculante e caráter obrigatório, definindo ao juízo arbitral eleito a competência para dirimir os litígios relativos aos direitos patrimoniais disponíveis, derrogando-se a jurisdição estatal.

2. No processo de execução, a convenção arbitral não exclui a apreciação do magistrado togado, haja vista que os árbitros não são investidos do poder de império estatal à prática de atos executivos, não tendo poder coercitivo direto.

3. Na execução lastreada em contrato com cláusula arbitral, haverá limitação material do seu objeto de apreciação pelo magistrado. O Juízo estatal não terá competência para resolver as controvérsias que digam respeito ao mérito dos embargos, às questões atinentes ao título ou às obrigações ali consignadas (existência, constituição ou extinção do crédito) e às matérias que foram eleitas para serem solucionadas pela instância arbitral (kompetenz e kompetenz), que deverão ser dirimidas pela via arbitral.

4. A exceção de convenção de arbitragem levará a que o juízo estatal, ao apreciar os embargos do devedor, limite-se ao exame de questões formais do título ou atinentes aos atos executivos (v.g., irregularidade da penhora, da avaliação, da alienação), ou ainda as relacionadas a direitos patrimoniais indisponíveis, devendo, no que sobejar, extinguir a ação sem resolução do mérito.

5. Na hipótese, o devedor opôs embargos à execução, suscitando, além da cláusula arbitral, dúvidas quanto à constituição do próprio crédito previsto no título executivo extrajudicial, arguindo a inexistência da dívida pelo descumprimento justificado do contrato. Dessarte, deve-se reconhecer a derrogação do juízo togado para apreciar a referida pretensão, com a extinção do feito, podendo o recorrido instaurar procedimento arbitral próprio para tanto.

6. O Superior Tribunal de Justiça propugna que, em homenagem à natureza processual material e com o escopo de preservar-se o direito adquirido, as normas sobre honorários advocatícios não são alcançadas por lei nova. A sentença, como ato processual que qualifica o nascedouro do direito à percepção dos honorários advocatícios, deve ser considerada o marco temporal para a aplicação das regras fixadas pelo CPC/2015.

7. No caso concreto, a sentença fixou os honorários em consonância com o CPC/1973. Dessa forma, não obstante o fato de esta Corte Superior reformar o acórdão recorrido após a vigência do novo CPC, incidem, quanto aos honorários, as regras do diploma processual anterior.

8. Recurso especial provido." 

O único ponto que ainda incomoda os operadores da arbitragem, em relação ao julgado acima citado, diz respeito ao possível manejo de Embargos à Execução concomitantemente à instauração de uma arbitragem a título de Embargos Arbitrais9. Isso porque o acórdão aduz que questões formais do título ou atinentes aos atos executivos (como irregularidade da penhora, da avaliação, da alienação) devem ser manejados por meios de Embargos à Execução, i.e., por meio do Poder Judiciário. 

Trata-se de medida que pode se tornar extremamente onerosa para as partes, dados os custos envolvidos em ambas as demandas, e cuja finalidade seria absolutamente a mesma (i.e., qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa em processo de conhecimento10). Conquanto a coercio pertença ao monopólio do Estado, não se vislumbra qualquer inconveniente de que todas as matérias que pudessem ser levantadas pelo devedor devessem ser discutidas em apenas um único instrumento processual, no caso, a arbitragem, quando houver cláusula compromissória inserta no título executivo. 

Ainda que a jurisprudência dos tribunais brasileiros ande bem na discussão da matéria, o ideal que é se possa firmar entendimento de qualquer matéria cuja discussão pertença ao devedor (o executado no processo estatal, e o requerente da arbitragem), deva estar restrita à arbitragem, evitando-se duplas e paralelas discussões que deveriam ocorrer num único procedimento – a arbitragem. Ou, quando muito, que, questões relativas à irregularidade da penhora ou da avaliação errônea, possam ser levadas ao juízo da execução por simples petição nos autos da ação executiva, sem a necessidade do manejo dos Embargos à Execução, os quais, por questões contratuais e legais deverão ser processados pela via arbitral. 

Com base nessas premissas, pensa-se que arbitragem e execução poderão ser mais bem harmonizadas, mitigando possíveis interferências do juízo estatal na arbitragem, mas, pelo contrário, atuando aquele juízo como o "juge d'appui"11 da arbitragem (isto é, de assistência e colaboração com o procedimento arbitral12). 

Ao fim e ao cabo, tal proposta poderia proporcionar custos razoáveis às partes, além de garantir mais eficiência ao litígio (travado paralelamente em duas esferas) o que não ocorreria com o manejo simultâneo de Embargos à Execução e Embargos Arbitrais. Pensa-se que o ideal é que toda e qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa em processo de conhecimento seja manejada, apenas, pela via da arbitragem, devendo tal assunto merecer destaque desde a redação das cláusulas compromissórias constantes de títulos executivos extrajudiciais.

__________

1 A esse respeito, ver aqui. Acesso em 17 fev. 2021.

2 Art. 783. A execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de obrigação certa, líquida e exigível.

3 O árbitro possui o poder de dizer o direito – a jurisdictio –, pondo fim à "crise do direito material", condenando o vencido a reaver o bem violado. A pretensão arbitral assimila-se assim a uma demanda, normalmente, de cunho condenatório. E tão somente condenatório, não executório, pois os atos de coerção são próprios da força pública, do imperium do juiz estatal. Nesse sentido, já dizia Charles Jarrosson: "La formule exécutoire ne peut être apposée sur les décisions de justice que par le juge étatique, à l'exclusion de l'arbitre, puisqu’elle ouvre la voie à un éventuel recours à la force publique. On ne comprendrait pas comment un arbitre qui tire son pouvoir juridictionnel de volontés privées, pourrait disposer ce cette force" JARROSSON, Charles. Réflexions sur l'imperium, in Études offertes à Pierre Bellet, Paris, Litec, 1991, p. 245-279, p. 268.

4 STJ, REsp 944.917/SP, Terceira Turma, Relª Min. Nancy Andrighi, J. 19.08.2008. Confira-se também, a esse respeito, o Enunciado 544 do Foro Permanente de Processualistas: "Admite-se a celebração de convenção de arbitragem, ainda que a obrigação esteja representada em título executivo extrajudicial".

5 Ver, nesse sentido: REIS, Marcos Hokumura. Títulos de financiamento do agronegócio e cláusula arbitral: coexistência pacífica e benéfica. In: REIS, Marcos Hokumura (Coord.). Arbitragem no agronegócio. São Paulo: Verbatim, 2018. p. 151-157. O assunto ora tratado também foi objeto de debates na I Jornada Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios do Conselho da Justiça Federal, que culminou com a aprovação do Enunciado 12: “A existência de cláusula compromissória não obsta a execução de título executivo extrajudicial, reservando-se à arbitragem o julgamento das matérias previstas no art. 917, incs. I e VI, do CPC/2015”. Para uma noção geral e completa acerca do tema, cita-se a dissertação de mestrado de Fernanda Gouvêa Leão (“Arbitragem e Execução”. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2012.

6 Cita-se, a esse respeito, julgado emanado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: "Tem-se que a matéria dos presentes embargos deve ficar limitada ao reconhecimento de direitos decorrentes da ação executiva e dos títulos que a embasam, já que somente estas, em decorrência do compromisso arbitral, se encontram inexoravelmente afetas à jurisdição estatal". TJSP. Ap. n 0158979-08.2010.8.26.0100, 12ª Câmara de Direito Privado, rel. Jacob Valente, j. 29.2.2012.

7 Nesse sentido, citam-se os seguintes julgados, ambos emanados do STJ: "Deve-se admitir que a cláusula compromissória possa conviver com a natureza do título [...]. Não é razoável exigir que o credor seja obrigado a iniciar uma arbitragem para obter juízo de certeza sobre uma confissão de dívida que, no seu entender, já consta do título executivo" (STJ, REsp 944.917/SP, Terceira Turma, Relª Min. Nancy Andrighi, J. 19.08.2008);  "É competente para decidir as questões de mérito relativas a contrato com cláusula arbitral, a câmara eleita pelas partes para fazê-lo. Tal competência não é retirada dos árbitros pela circunstância de uma das partes ter promovido, antes de instaurada a arbitragem, a execução extrajudicial do débito perante o juiz togado. Tendo em vista a competência da câmara arbitral, não é cabível a oposição, pela devedora, de embargos à execução do mesmo débito apurado em contrato. Tais embargos teriam o mesmo objeto do procedimento arbitral, e o juízo da execução não seria competente para conhecer das questões nele versadas" (STJ, MC 3.274/SP, Relª Min. Nancy Andrighi, J. 13.09.2007).

8 STJ, REsp 1.465.535/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Luiz Felipe Salomão, J. 21.06.2016.

9 Em especial, o seguinte trecho da ementa do referido julgado: "A exceção de convenção de arbitragem levará a que o juízo estatal, ao apreciar os embargos do devedor, limite-se ao exame de questões formais do título ou atinentes aos atos executivos (v.g., irregularidade da penhora, da avaliação, da alienação), ou ainda as relacionadas a direitos patrimoniais indisponíveis, devendo, no que sobejar, extinguir a ação sem resolução do mérito".

10 Conforme a dicção do art. 917, inciso VI do CPC: Nos embargos à execução, o executado poderá alegar: (...) VI - qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa em processo de conhecimento.

11 Sobre o assunto: O Poder Judiciário da sede da arbitragem: o "juge d'appui" - Migalhas (uol.com.br). Acesso em 31 jan. 2021.

12 Outro exemplo de coordenação entre a jurisdição estatal e a arbitral, bastante recente, advém de julgado emanado do Superior Tribunal de Justiça, em que restou firmado o entendimento segundo o qual é possível aplicar as normas de penhora no rosto dos autos de procedimentos arbitrais, de modo que o Poder Judiciário possa oficiar o árbitro para que este indique, em sua decisão, caso seja favorável à parte executada, a existência de ordem judicial de constrição. Merece destaque o seguinte trecho da ementa do julgado em questão: "(...) Respeitadas as peculiaridades de cada jurisdição, é possível aplicar a regra do art. 674 do CPC/73 (art. 860 do CPC/15), ao procedimento de arbitragem, a fim de permitir que o juiz oficie o árbitro para que este faça constar em sua decisão final, acaso favorável ao executado, a existência da ordem judicial de expropriação, ordem essa, por sua vez, que só será efetivada ao tempo e modo do cumprimento da sentença arbitral, no âmbito do qual deverá ser também resolvido eventual concurso especial de credores, nos termos do art. 613 do CPC/73 (parágrafo único do art. 797 do CPC/15)." STJ, Terceira Turma, REsp n.º 1.678.224-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 07.05.2019, DJE 09.05.2019

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Colunista

Thiago Marinho Nunes é doutor em Direito Internacional e Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Mestre em Contencioso, Arbitragem e Modos Alternativos de Resolução de Conflitos pela Universidade de Paris II – Panthéon-Assas; Vice-Presidente da CAMARB; Fellow do Chartered Institute of Arbitrators; Professor Titular de Arbitragem e Mediação do IBMEC-SP; árbitro independente.