Arbitragem Legal

Árbitro e precedentes judiciais: vinculação ou observância?

26/1/2021

Um tema que tem suscitado intensos debates1, já há alguns anos, diz respeito à suposta vinculação do árbitro aos precedentes judiciais. Diversas obras, de altíssima qualidade, foram publicadas (todas com opiniões muito variadas e bem fundamentadas a respeito do assunto2), sem contar com os belíssimos estudos publicados, seja neste portal3, seja em outros canais4.

Um dos pontos que ainda resta obscuro sobre esse tema e continua gerando dúvidas e debates diz respeito ao uso de dois verbos, os quais geram consequências imediatas para questão ora discutida: vincular e observar. Enquanto o verbo vincular lança a ideia de se prender ou de se amarrar, o segundo verbo, observar, é mais brando: dá-se uma ideia de estudo, de consideração.

No campo da arbitragem, os autores que defendem que o árbitro se vincula ao precedente judicial, partem da (legítima) premissa de que o sistema arbitral, inserido no contexto do Estado Democrático de Direito, deve respeitar, quando o caso, as decisões proferidas pelas cortes superiores. Os que defendem que o árbitro não se vincula, de forma alguma, aos precedentes judiciais afirmam, inter alia, que a missão do árbitro é autônoma e diferente da dos magistrados, não havendo qualquer dever de o árbitro ser coerente com o ordenamento jurídico ou com o entendimento fixado pelos precedentes judiciais5.

A polarização dos entendimentos acima pode ser abrandada se houver a conscientização dos usuários da arbitragem de que os precedentes judiciais (sejam eles persuasivos e/ou vinculantes), além de comporem, junto à legislação, o direito aplicável ao mérito da arbitragem, merecem ser observados pelos árbitros em determinado caso, sem qualquer tipo de vinculação. Isso porque, ao escolher a arbitragem, e, por consequência, subtrair o Poder Judiciário para a resolução de disputas de determinado caso, as partes podem escolher o regramento jurídico aplicável à causa e que deve ser aplicado pelos árbitros na decisão da lide. Tal regramento jurídico é composto pela lei aplicável ao mérito do litígio. Ao aplicar a lei, e em caso de eventual dificuldade de interpretação do texto legal, não há dúvidas de que o árbitro não só pode, como deve, observar os precedentes judiciais, emanados das cortes superiores do país promulgador da lei aplicável à correspondente disputa.

Um exercício que confirma essa premissa pode ser o seguinte: não raro, antes do ingresso de eventual demanda arbitral, os advogados são normalmente consultados por seus clientes acerca das chances de êxito de determinada causa jurídica, o que é feito por meio de um “early case assessment”, opinião legal ou simples memorando. Nessa análise preliminar, buscam os advogados fornecer subsídios aos seus clientes sobre os fatos em discussão, a avaliação legal dos pedidos que poderão ser realizados, e, notadamente, os riscos envolvidos, como prescrição e decadência, condenação em honorários sucumbenciais e/ou contratuais, taxa de juros aplicável, inter alia. Nessa análise, é inevitável que os advogados forneçam aos seus clientes uma avaliação legal que contemple o direito aplicável à demanda. O referido “direito aplicável à demanda” é abarcado, não só pela correspondente lei aplicável, mas também pela jurisprudência. Absoluta e extremamente normal que o memorando cite precedentes emanados das cortes superiores sobre as questões legais objeto de avaliação pelo advogado.

Uma hipótese se daria, por exemplo, quando uma parte deseja saber se sua pretensão se encontra ou não prescrita. A depender do assunto em discussão (responsabilidade contratual ou extracontratual), os prazos prescricionais podem ser distintos, mas a lei brasileira não dispõe de uma resposta precisa sobre o assunto. Destarte, coube ao Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) interpretar e uniformizar tal questão, o que foi feito no julgamento dos Embargos de Divergência nº 1.281.594 – SP, em que se estabeleceu a regra segundo a qual, “Versando o presente caso sobre responsabilidade civil decorrente de possível descumprimento de contrato de compra e venda e prestação de serviço entre empresas, está sujeito à prescrição decenal (art. 205, do Código Civil).”6.

Da mesma forma, uma parte que cometeu ilícitos ambientais, pergunta ao seu advogado se a sua contraparte pode exercer, em determinado prazo, pretensão indenizatória contra ela por conta de tais ilícitos. Não havendo uma resposta na lei, o Supremo Tribunal Federal (“STF”) houve por bem uniformizar a questão, tendo decidido que: “Embora a Constituição e as leis ordinárias não disponham acerca do prazo prescricional para a reparação de danos civis ambientais, sendo regra a estipulação de prazo para pretensão ressarcitória, a tutela constitucional a determinados valores impõe o reconhecimento de pretensões imprescritíveis”7.

Ainda, uma parte pede aos seus advogados para avaliarem se, em determinada contenda contra uma parte inadimplente, em caso de procedência numa arbitragem, qual taxa de juros o tribunal aplicará, em consonância com o disposto no artigo 406 do Código Civil (“CC”). A disposição contida no referido artigo não traz uma resposta exata à taxa de juros aplicável, estando as cortes estatais ainda divididas entre a aplicação da taxa Selic ou juros de 1% ao mês8. O advogado, nesse momento, deve mostrar ao seu cliente “para onde pende a balança” no que tange à taxa de juros, isto é, como os tribunais estatais interpretam a questão, e quais as chances de aplicação de uma ou de outra taxa na arbitragem.

Se tais questões fossem, ao fim e ao cabo, levadas à arbitragem, não há dúvidas de que os árbitros deveriam observar os precedentes judiciais a respeito da matéria. Do contrário, ignorar-se-iam os primordiais requisitos de previsibilidade, calculabilidade, estabilidade, isonomia e segurança jurídica. Tais termos constituem elementos essenciais para que a prestação jurisdicional se efetive num Estado Democrático de Direito. De certo, a prestação jurisdicional é promovida não apenas pela tutela proporcionada pelo Estado, o que se dá por meio do processo judicial estatal, mas também pelo sistema arbitral, cujo fim máximo é gerar uma sentença, equiparada a título executivo judicial. Devem assim, os árbitros, em suas decisões fundadas no direito brasileiro, aplicar o texto da lei aplicável bem como, eventual precedente emanado das cortes estatais acerca da matéria atinente ao mérito da disputa, sob o risco se de realizar um julgamento equivocado.

Diz-se “equivocado”, pois não poderia uma decisão arbitral classificar, por exemplo, uma pretensão fundada em responsabilidade contratual em prazo inferior ou superior ao que fora decidido pelo STJ que, no âmbito estatal, uniformizou a questão silente ou obscura na lei civil. E qual seria a consequência desse “equívoco arbitral”? A lei não dá uma resposta precisa em relação a esse ponto. Apesar de autores como Paulo Magalhães Nasser9 e Guilherme Rizzo Amaral10 entenderem pela nulidade da decisão arbitral, diverge-se de tal entendimento, dada a ausência de requisitos legais para tanto11.

O objetivo dessas breves notas, portanto, é tentar demonstrar que, nada obstante a autonomia do sistema arbitral, este deve conviver com os precedentes judiciais na medida em que estes compõem o direito e devem ser aplicados (sem o requisito da obrigatoriedade, mas o da observância12) pelos árbitros em suas decisões, a depender da questão envolvida. O mero fato de a arbitragem representar uma subtração do Poder Judiciário não significa, de modo algum, subtrair o direito. A ausência de observância dos árbitros acerca de determinado precedente (seja ele persuasivo, seja ele vinculante) poderá culminar numa decisão equivocada, mas que, por se considerar error in judicando, não está sujeita às hipóteses de anulação de sentença arbitral ditadas pelo art. 32 e seus incisos, da Lei de Arbitragem.

As linhas acima, comprovam, que diante das peculiaridades que revestem a arbitragem, é de suma importância: a construção de uma cláusula compromissória eficaz, a escolha de uma instituição idônea para a administração do conflito, e, não menos importante, a escolha precisa, responsável e consciente dos árbitros, que apreciarão os fatos, aplicarão o direito e resolverão a controvérsia, emitindo o produto final da arbitragem que é uma sentença exequível, ou passível de ser cumprida, seja espontaneamente, seja via ação de cumprimento de sentença junto ao Poder Judiciário13. Ao fim e ao cabo: é preciso de confiança no instituto da arbitragem como método seguro de resolução de conflitos.

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1 Objeto, inclusive, de recente webinar “Arbitalks” organizado pela PUC-SP em conjunto com o CMA-CIESP-FIESP e ABEArb. Disponível em: clique aqui. Acesso em 16 jan. 2021.

2 A esse respeito, ver, notadamente: NASSER, Paulo Magalhães. Vinculações Arbitrais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019; AMARAL, Guilherme Rizzo. Judicial precedent and Arbitration: are arbitrators bound by judicial precedent? A comparative study of US, UK and Brazilian Law and practice. London: Wildy, Simmonds & Hill, 2017; MARIANI, Rômulo Greff. Precedentes na Arbitragem. Belo Horizonte: Fórum, 2018; FIORAVANTI, Marcos Serra Netto. A arbitragem e os precedentes judiciais: observância, respeito ou vinculação? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018; BELLOCCHI, Márcio. Precedentes vinculantes e a extensão da expressão “aplicação do direito brasileiro” na convenção de arbitragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

4 Sobre o tema, os estudos do Professor José Rogério Cruz e Tucci. Fontes: O árbitro e a observância do precedente judicial (acesso em 22 jan. 2021); Os árbitros não são estouvados! (e as jornadas de Direito Processual Civil) (acesso em 22 jan. 2021), dentre outros, citados ao longo deste artigo.          

5 Essa é, por exemplo, a opinião de Carlos Alberto Carmona e José Augusto Bittencourt: “Diante disso, é importante ressaltar que a missão do árbitro é autônoma e diferente da dos magistrados. Não há qualquer dever de ser coerente com o ordenamento jurídico ou com o entendimento que os Tribunais Estatais dão a determinada norma jurídica. A missão do árbitro é resolver um litígio em específico e para tanto seus deveres e função são especiais. Ainda que o precedente seja tomado como norma de direito, sua não observância caracterizará, no limite, a má-aplicação do direito pelo árbitro, o que não comporta correção judicial nem expõe a sentença arbitral à demanda anulatória”. CARMONA, Carlos Alberto e MACHADO FILHO, José Augusto Bittencourt. Arbitragem: jurisdição, missão e justiça in Constituição da República 30 anos depois: uma análise prática da eficiência dos direitos fundamentais. Estudos em homenagem ao Ministro Luiz Fux/Abhner Youssif Mota Arabi, Fernando Maluf, Marcello Lavenère Machado Neto (Coord.). - Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 225.

6 STJ, Embargos em Divergência em REsp 1.281.594 – SP, Corte Especial, rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 15 de maio de 2019, DJe de 23 de maio de 2019.

7 STF, Recurso Extraordinário 654.833/Acre, Plenário, rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 20 de abril de 2020.

8 Nesse sentido, é a discussão que em breve será resolvida pelo STJ, no Recurso Especial nº 1.081.149 – RS, rel. Min. Luis Felipe Salomão, ainda pendente de julgamento final. O voto do Min. Salomão entendeu que em casos de dívida civil, essas consequências fluem a partir de momentos diferentes, o que inviabiliza a utilização da Selic. Assim, aplica-se o parágrafo 1º do artigo 161 do Código Tributário Nacional, com juros de 1%. E a correção monetária pelos índices oficiais cabíveis em cada caso.

9 NASSER, Paulo Magalhães. Vinculações Arbitrais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 158.

10 Ver, nesse sentido, AMARAL, Guilherme Rizzo. Arbitragem e Precedentes in Curso de Arbitragem (Daniel Levy, Guilherme Setoguti J. Pereira – coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 294.

11 Nesse sentido, o entendimento de Rômulo Greff Mariani: “Ocorre que, quando tratamos de comparar a decisão do árbitro com o precedente ou jurisprudência estatal, estamos no máximo discutindo por quem e como o Direito foi aplicado. Não se trata, portanto, de aferir que o mero desvio da decisão estatal pretérita determina a conclusão clara e irrefutável de que o árbitro simplesmente não aplicou o Direito à espécie”. MARIANI, Rômulo Greff. Precedentes na Arbitragem. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 110.

12 Assim o é, inclusive, no caso do processo estatal. Os juízes, com efeito devem meramente observar os precedentes, como bem afirma Leonardo de Faria Beraldo: “Em segundo lugar, tenho que nem todos os padrões decisórios elencados no art. 927 do CPC são vinculantes dentro da estrutura do Poder Judiciário. Lembro a todos que o verbo que aparece na redação do dispositivo em comento é “observar”, que, por sua vez, é diferente de “obrigar”, “vincular”, “sujeitar” ou “forçar”. Ainda sobre o escopo do art. 927 no processo civil brasileiro, reitero que há um mero dever de observância, do julgador, ao proferir as decisões judiciais.” (BERALDO, Leonardo de Faria. Os Precedentes na Arbitragem in Direito Internacional e Arbitragem – Estudos em Homenagem ao Prof. Cláudio Finkelstein (coord. CASADO FILHO, Napoleão, QUINTÃO, Luísa e SIMÃO, Camila). São Paulo: Quatier Latin, 2019, pp. 195-214.

13 Como já se teve a oportunidade de discutir nesta Coluna: “A importância do proferimento de uma sentença exequível e irrecorrível, guarda relação com a confiança que as partes depositaram no instituto arbitral, e principalmente nos árbitros indicados para a resolução da controvérsia. Os árbitros possuem aqui uma verdadeira obrigação de resultado: só se exoneram quando o fim prometido é alcançado, isto é, a efetiva resolução do conflito”. Fonte: Os bastidores da atividade do árbitro na fase arbitral: a fase ...- Migalhas (uol.com.br). Acesso em 22 jan. 2021.

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Colunista

Thiago Marinho Nunes é doutor em Direito Internacional e Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Mestre em Contencioso, Arbitragem e Modos Alternativos de Resolução de Conflitos pela Universidade de Paris II – Panthéon-Assas; Vice-Presidente da CAMARB; Fellow do Chartered Institute of Arbitrators; Professor Titular de Arbitragem e Mediação do IBMEC-SP; árbitro independente.