Arbitragem Legal

Os bastidores da atividade do árbitro: a fase pré-arbitral

Os bastidores da atividade do árbitro: a fase pré-arbitral.

27/10/2020

Tema que raramente é tratado na arbitragem diz respeito aos bastidores da atividade do árbitro nos procedimentos arbitrais. Apesar da noção de que o exercício da atividade do árbitro se dá, essencialmente, por meio de suas decisões no curso da arbitragem, muitos, porém, não conhecem os bastidores de suas atividades1.

Uma das razões para sucesso que a arbitragem brasileira alcançou, após 24 (vinte e quatro) anos de vigência da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"), deve-se, sem sombra de dúvidas, ao trabalho realizado pelos árbitros. A arbitragem, como se sabe, vale o que vale o árbitro2, pois é dele a responsabilidade por entregar a prestação jurisdicional. É dele a obrigação, de resultado, de proferir uma sentença exequível e, ao fim e ao cabo, entregar a tutela jurisdicional. Os árbitros só se exoneram quando o fim prometido é alcançado, isto é, a efetiva resolução do conflito.

Como é conhecida, a arbitragem possui três fases: fase pré-arbitral, fase arbitral e fase pós-arbitral. Os bastidores da atividade do árbitro ocorrem nas duas primeiras referidas fases. Dada a diversidade de assuntos tratados nessas fases, o tema desta Coluna será dividido em três partes. Na presente edição, discorrer-se-á sobre os bastidores da atividade do árbitro na fase pré-arbitral.

A fase pré-arbitral inicia-se a partir da formalização da cláusula compromissória que antecede o conflito ou quando firmado o compromisso arbitral, mantendo-se dormente3 até o momento em que os árbitros (ou o árbitro único) aceitam e confirmam o encargo de julgar o litígio4. Nesta fase da arbitragem, assim como nas subsequentes, além dos cruciais elementos da independência e imparcialidade, o árbitro deve ser, nos termos da lei, competente, diligente, discreto5. Necessita também ter disponibilidade, ser eficiente, saber trabalhar em regime de harmonia e cooperação com demais membros do tribunal arbitral, ter coragem para decidir6 e, mais do que nunca, ser ético7.

A primeira aparição do árbitro vem com a sua indicação. Mas antes mesmo da indicação, podem ocorrer as recomendadas entrevistas com potenciais candidatos ao posto de árbitro, em que se discute a experiência profissional do candidato, além de sua ausência de conflito, interesse e disponibilidade para assumir a função de árbitro8.

Em sendo escolhido árbitro por uma das partes, o(a) profissional indicado(a) deve proceder a uma varredura em seus arquivos em vista da eventual necessidade apresentação de disclosure, por meio do qual, estancará, de uma vez só, aos olhos das partes, qualquer dúvida que lhes possa surgir sobre a sua independência e imparcialidade. Em alguns casos, o árbitro, mesmo tendo apresentado robusto disclosure pode ser impugnado. Alguns profissionais, entendem que a mera existência de impugnação lhe causaria desconforto para atuar no caso, e, de imediato, renunciam ao posto. Outros, cientes de que cumpriram seu dever legal e acima tudo ético de revelar (e ainda que tenham informado questões dispostas em domínio público), respondem "à altura"9 e permanecem no caso aguardando o julgamento das impugnações, a maioria julgada improcedente pelos órgãos formados no âmbito dos centros arbitrais10.

Fora a eventual fase de impugnação, um destaque dos bastidores da atividade dos árbitros na fase pré-arbitral é a escolha da pessoa que presidirá o tribunal arbitral. Normalmente, os regulamentos arbitrais dispõem que a escolha do árbitro presidente cabe aos coárbitros, livremente, não havendo qualquer regra a respeito da participação das partes nessa escolha. Como o árbitro, seja ele coárbitro ou presidente, deve preencher o requisito de confiança nas partes, na forma do art. 13, caput, da Lei de Arbitragem11, é de bom alvitre que os árbitros formulem listas prévias com nomes de possíveis candidatos ou candidatas ao posto de presidente. Normalmente essas listas contêm 6 (seis) nomes, os quais são informados simultaneamente a ambas as partes pela secretaria do competente centro de arbitragem, devendo as partes, em prazo comum, eliminar até 2 (dois) nomes da lista, sem a necessidade de justificativa. Com os nomes dos remanescentes, os coárbitros escolhem um deles para presidir o tribunal.

Tal método não é identificado na doutrina nem em qualquer outro escrito sobre tema, mas representa, na atualidade, prática comum nos bastidores da atividade pré-arbitral concernente à nomeação do(a) presidente do painel. Além de comum, constitui prática salutar, eis que faz com as que as partes participem ativamente da escolha do(a) presidente, encontrando sintonia com a norma prevista no art. 13, caput, da Lei de Arbitragem.

Em resumo: os bastidores da atividade do árbitro na fase pré-arbitral estão mais ligados à composição do tribunal arbitral. Não há aqui, ainda, a intensa atividade harmônica que costuma prevalecer na fase subsequente da arbitragem, mas, por outro lado, é nesta fase em que o elemento ético deve imperar, acima de tudo, em razão do impacto no procedimento que gera a escolha do árbitro12. Afinal de contas, como aponta José Emilio Nunes Pinto, "o sucesso da arbitragem depende do árbitro ou árbitros a quem se confia a solução da controvérsia. Ele é o centro de todo o procedimento e seu desempenho determina o resultado da solução da controvérsia. Em face desse relevante papel desempenhado, surgem, não raro, questões quanto à conduta do árbitro. Dessa forma, na medida em que entendemos que a conduta é fator primordial para o sucesso de qualquer arbitragem, não podemos nos esquivar, em nome da melhor compreensão do instituto, de abordar a importância da ética no procedimento"13.

No próximo texto desta coluna, as atenções serão voltadas aos bastidores da atividade do árbitro na fase arbitral, cujo ponto de partida ocorre com a instituição da arbitragem e acaba no momento em que o árbitro único ou tribunal arbitral profere a sentença arbitral, ou se provocado por meio de pedido de esclarecimentos, no momento em que o decide.

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1 Dentre as raras obras que tratam do assunto, ver, notadamente: Inside the Black Box: How Arbitral Tribunals Operate and Reach their Decisions (ed. Bernhard Berger and Michael E. Schneider). New York: JurisNet, 2014 e DRAETTA, Ugo. Behind the Scenes in International Arbitration. New York: JurisNet, 2011.

2 Segundo Selma Ferreira Lemes: "Discorrer sobre o papel do árbitro no procedimento arbitral impõe, inicialmente, refletir sobre um adágio mundialmente conhecido: "a arbitragem vale o que vale o árbitro", fato incontroverso. E mais, saliento que "o árbitro representa a chave da abóbada da arbitragem e ao seu redor gravitam todos os temas e conceitos afeitos à arbitragem". Fonte. Acesso em 16/10/2020.

3 Para Pedro A. Batista Martins, a "fase pré-arbitral se inicia com a assinatura da convenção de arbitragem, mas se mantém dormente até o surgimento do conflito. Ela se prolonga até a aceitação da nomeação dos árbitros" (As três fases da arbitragem. Revista do Advogado, São Paulo: AASP, ano XXVI, n. 87, p. 87-88, 2006).

4 Assim entende Leandro Rigueira Rennó Lima: "A primeira fase, que se refere à instauração do juízo arbitral, pode se iniciar com a formalização da cláusula compromissória, que antecede o conflito, passando pelo surgimento da controvérsia ou, se for o caso, pelo processo de confecção do compromisso arbitral, finalizando-se com a aceitação pelos árbitros de sua nomeação, que é o ato que realmente institui o juízo arbitral dentro do sistema adotado pelo nosso legislador"(Arbitragem: uma análise da fase pré-arbitral. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 38).

5 Art. 13, § 6º   da Lei de Arbitragem: "No desempenho de sua função, o árbitro deverá proceder com imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição".

6 Sobre o tema ver: LALIVE, Pierre. Du courage dans l’arbitrage internacional. Mélanges en l’honneur de François Knoepller. Collection Neuchateloise. Helbing & Lichtenhahn, Bâle, 2005, pp. 157-160.  Acesso em 16/10/2020.

7 A ética na arbitragem é lançada com propriedade por Catherine A. Rogers, sobretudo no campo internacional, em que, segundo a referida autora, a necessidade de uma "auto regulação" do sistema, fundada em normas claras e éticas, reforçam a credibilidade à arbitragem. No original: "While 'regulation' is a term that is generally resisted, self-regulation in international arbitration is a healthy way to preserve existing structures and strengthen the regime. The legitimacy of international arbitration is predicated in substantial part on the integrity and professional conduct of its founders and of its modern custodians – the arbitrators, counsel, experts and administrators od arbitral institutions who manage and decide the disputes. These participants build and sustain the legal frameworks and procedures on which the legitimacy of international arbitration is founded. Clearer ethical norms and a reliable enforcement regime are essential to that function and have evolved organically in international arbitration".  ROGERS Catherine A. Ethics in International Arbitration. Oxford University Press, 2014, pp. 272.

8 Na visão de Ugo Draetta: "In these preliminary meeting with the arbitrator, too, counsel must confine themselves to obtaining relevant information from that arbitrator about his or her availability, any potential conflicts of interest, and specific competence in relation to the subject matter of the dispute". (Behind the Scenes in International Arbitration. New York: JurisNet, 2011, pp. 28-29). No mesmo sentido é a opinião de Ricardo Dalmaso Marques: "Também por esse motivo, na arbitragem são admitidas entrevistas pelas partes com os possíveis árbitros, antes de sua efetiva indicação, não para discutir o mérito da disputa, mas para que as partes avaliem se determinada pessoa possui as qualidades esperadas para julgar aquele conflito". (Dever de Revelação do Árbitro. São Paulo: Almedina, 2018, p. 36). Sobre o assunto, ver NUNES, Thiago Marinho. Entrevistas com Potenciais Árbitros. Acesso em 16/10/2020.

9 Nesse sentido, afirma Ricardo Dalmaso Marques: "(...) responder à altura, principalmente quando a impugnação é infundada, é mais uma forma de assegurar a confiança na figura do árbitro e também no instituto em si". MARQUES, Ricardo Dalmaso. O Dever de Revelação do Árbitro. São Paulo: Almedina, 2018, p. 243.

10 Em casos de impugnação, em alguns centros de arbitragem no Brasil, a questão é levada a um colegiado, normalmente formado por membros do corpo de árbitros de determinada instituição, que, num procedimento expedito, julgam se o árbitro impugnado deve ou não ser removido. A título de exemplo, o art. 5.4 do Regulamento de Arbitragem do CAM-CCBC dispõe: "5.4. As partes poderão impugnar os árbitros por falta de independência, imparcialidade, ou por motivo justificado no prazo de 15 (quinze) dias do conhecimento do fato, sendo a impugnação julgada por Comitê Especial constituído por 3 (três) membros do Corpo de Árbitros nomeados pelo Presidente do CAM-CCBC". No mesmo sentido, o capítulo V do Regulamento de Arbitragem da CAMARB. Acesso em 25/10/2020.

11 Art. 13. Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes.

12 Nesse sentido, vide o estudo de MARÇAL, Juliana. A Ética como Elemento Caracterizador da Arbitragem in Revista de Arbitragem e Mediação, Vol, 62 (jul-set. 2019). São Paulo: Thomson Reuters, pp. 157-165.

13 PINTO, José Emilio Nunes. A importância da ética na arbitragem. In: Âmbito Jurídico. 2003. Acesso em 25/10/2020.

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Colunista

Thiago Marinho Nunes é doutor em Direito Internacional e Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Mestre em Contencioso, Arbitragem e Modos Alternativos de Resolução de Conflitos pela Universidade de Paris II – Panthéon-Assas; Vice-Presidente da CAMARB; Fellow do Chartered Institute of Arbitrators; Professor Titular de Arbitragem e Mediação do IBMEC-SP; árbitro independente.