No dia 23 de setembro de 2020 completou-se vinte e quatro anos da promulgação da lei 9.307/96 ("LArb"). Desde o momento em que foi promulgada, a arbitragem caminhou em passos curtos no Brasil, tendo realmente começado a ser utilizada com maior frequência quando da declaração de sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal ("STF") em 2001, e no ano seguinte, quando da ratificação pelo Brasil da Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras de 10 de junho de 19581, a qual inseriu, definitivamente, o Brasil no contexto da arbitragem comercial internacional, garantindo credibilidade e confiabilidade do instituto perante o público estrangeiro2.
O aperfeiçoamento da prática arbitral brasileira, vem se consolidando há algum tempo, tendo se expandido por todas as regiões do Brasil. Teses, manuais, monografias, cursos dos mais diversos surgiram (e vem surgindo) demonstrando que a prática da arbitragem no Brasil só cresce e veio para ficar. Esse sucesso se deve não só ao legislador (que apresentou um projeto de lei moderno e baseado em diplomas de importância significativa, como a Lei Espanhola de Arbitragem3 e a Lei Modelo da Uncitral4), e que evoluiu ao longo tempo, se alinhando à tendência jurisprudencial a respeito de importantes temas, como a regulamentação da arbitragem envolvendo a administração pública, a permissão do uso de medidas cautelares pré-arbitrais perante o Poder Judiciário, inter alia5, mas também à comunidade arbitral como um todo, como advogados, in-house counsels e árbitros atuantes nessa seara que, em sua grande parte, compreendeu o "espírito" da arbitragem e suas peculiaridades. Prova disso é o índice ínfimo de anulação de sentenças arbitrais pelo Poder Judiciário, bem como a maciça jurisprudência pró-arbitragem desenvolvida no âmbito dos tribunais superiores, em especial a do Superior Tribunal de Justiça6.
Com o crescimento da prática arbitral no Brasil, e o aumento de seus players, pensa-se que o estudo comparativo da arbitragem já desenvolvida em outros sistemas legais (e lá já consolidado há tempos) possa ser de grande valia para o Brasil. A par da comparação por meio de sistemas legais7, fonte de comparação que merece ser considerada, são as diversas diretrizes criadas por respeitados órgãos internacionais, como a International Bar Association ("IBA") e o Chartered Institute of Arbitrators ("CIArb").
Nessas linhas busca-se fazer uma breve e geral introdução às diretrizes criadas pelo CIArb, em prol do bom desenvolvimento da arbitragem internacional, que podem ser perfeitamente aplicadas no âmbito interno, tanto por advogados, árbitros e magistrados.
Fundado em 1915, o CIArb é uma organização que congrega inúmeros profissionais atuantes na seara da resolução de disputas (arbitragem, mediação, dispute boards, inter alia) em todo o mundo, difundindo e facilitando o uso de tais mecanismos8. Baseada em Londres, conta com aproximadamente 16.000 membros distribuídos em 39 branches em 133 países. Possui, desde 2019, uma representação no Brasil (CIArb Brazil Branch) e, ao longo de sus existência, editou uma série de diretrizes acerca de práticas consolidadas no âmbito da arbitragem internacional e que podem servir como guia útil para a orientação de advogados, in-house counsels e árbitros envolvidos em procedimentos arbitrais.
O CIArb, até a presente data, editou 13 (treze) diretrizes relacionadas à arbitragem9, dentre as quais se incluem (a) entrevistas com potenciais árbitros; (b) termos para indicação e remuneração dos árbitros; (c) objeções jurisdicionais; (d) normas relativas às medidas de urgência; (e) garantia de custas10; (f) administração procedimentos arbitrais e ordens processuais; (g) peritos das partes e do tribunal arbitral; (h) arbitragens exclusivamente documentais; (i) partes ausentes ou não-participantes; (j) elaboração de sentenças arbitrais (três partes) e; (k) regras para oitiva de testemunhas11.
Diversas das diretrizes acima já vêm sendo utilizadas na prática arbitral brasileira, com grande aceitação dos operadores da arbitragem e bem vistas pelo Poder Judiciário. Destacam-se as medidas de urgência, a garantia de custas, as partes ausentes ou não-participantes (revelia), as regras atinentes à prova pericial (uso de peritos pelas partes ou mediante indicação pelo Tribunal Arbitral), e as entrevistas com potenciais árbitros12. Por mais que tais diretrizes tenham sido formuladas para uso no âmbito da arbitragem internacional (e mais, para uso em tanto nos sistemas da civil law como da common law), não há dúvidas de sua utilidade e transposição para o âmbito da arbitragem doméstica, no sentido não só de garantir eficiência aos procedimentos arbitrais, mas no sentido pedagógico, ao estabelecer condutas que se espera sejam adotadas pelos atores da arbitragem. Oportuno, nesse sentido, o entendimento de Julie Bédard e Ricardo Dalmaso Marques, ao comentarem as diretrizes da IBA sobre representação das partes em arbitragem internacional:
"O emprego do termo "diretrizes" em vez de "regras" tem, precisamente, o objetivo de ressaltar a natureza contratual do texto, que pode ser (i) adotado pelas partes em sua totalidade ou apenas parcialmente e (ii) aplicado pelo tribunal arbitral, após consultar as partes, adaptando os seus dispositivos às circunstâncias particulares de cada caso. Conforme mencionado, não se está tratando nas Diretrizes de ética ou conduta profissional, mas da conduta esperada dos representantes de partes em arbitragens internacionais e que deve ser incentivada caso a caso como forma de administrar o procedimento de forma eficiente (management of the proceedings)"13.
A prática da arbitragem cresce a cada ano no Brasil. Esse crescimento deve caminhar paralelamente com a adoção das cautelas necessárias pelos atores da arbitragem – partes, advogados e árbitros, com base na ética e condutas profissionais que se esperam dos mencionados atores, com o fito de preservar a higidez da arbitragem e a sua grande finalidade, que é gerar uma sentença exequível por meio de um procedimento célere, eficiente, justo, mas, acima de tudo, ético14, este último, o elemento caracterizador da arbitragem15.
O objeto das diretrizes do CIArb, além de enfatizar o comportamento ético que deve ser observado por seus players – partes, advogados, experts, e árbitros16 –, é o de promover uniformidade na condução dos procedimentos arbitrais17, primando-se pela previsibilidade, efetividade e celeridade e que, apesar de terem sido elaboradas tendo como base a arbitragem internacional, não só podem como se recomenda sua utilização nas arbitragens domésticas18, o que certamente aperfeiçoará o sistema arbitral brasileiro19.
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1 Decreto 4.311, de 23 de julho de 2002.
2 Sobre o assunto, ver NUNES, Thiago Marinho. A Convenção de Nova Iorque de 10 de Junho de 1958: Alguns Pontos Polêmicos, Revista Brasileira de Arbitragem, (Comitê Brasileiro de Arbitragem CBAr & IOB; Comitê Brasileiro de Arbitragem CBAr & IOB 2009, Volume VI Issue 23) pp. 33-53.
3 Lei 63/2011, de 14 de dezembro (versão atualizada).
4 A Lei Modelo da UNCITRAL sobre Arbitragem Comercial Internacional é uma lei modelo preparada pela UNCITRAL e adotada pela Comissão das Nações Unidas sobre Direito Comercial Internacional em 21 de junho de 1985 e revista em 2006. Acessível aqui. Acesso em 21/9/2020.
5 Modificações trazidas pela Lei nº 13.129, de 26 de maio de 2015. A esse respeito, menciona-se a recente obra editada pelo Migalhas: FERREIRA, Olavo A. Alves e LUCON, Paulo Henrique dos Santos Arbitragem: 5 anos da lei 13.129, de 26 de maio de 2015. Referida obra pode ser adquirida mediante acesso ao seguinte link.
6 Dados que podem ser aferidos em pesquisa realizadas pelo Comitê Brasileiro de Arbitragem ("CBAr") em conjunto com a Associação Brasileira dos Estudantes de Arbitragem ("ABEArb"). Fonte. Acesso em 24/9/2020.
7 Sobre a importância do direito comparado na arbitragem, vide o artigo já publicado nesta Coluna. Acesso em 24/9/2020.
8 Segundo Tim Hardy, FCIArb e Elina Zlatansla, FCIArb: "As the first ever learned society in the world to be devoted to the education and training of what is considered to be 'modern arbitration', CIArb plays a unique role in furthering the profession and in encouraging and facilitating the use of arbitration. It has a longstanding history in promoting best practices in the field and offering guidance through research and scholarly publications". CIArb Arbitration Practice Guidelines: An Overview, p. 3. Acessível aqui. Acesso em 21/9/2020.
9 Tradução livre dos títulos das diretrizes. Para verificação completa das Diretrizes aqui citadas. Acesso em 21/9/2020.
10 Esta, em particular (o chamado "Security for costs") foi recebeu um destacado comentário de José Victor Palazzi Zakia, acessível aqui. Acesso em 21/9/2020.
11 Esta última foi objeto de recente premiação pela Global Arbitration Review ("GAR") de "best innovation by an individual or organisation". Fonte. Acesso em 24/9/2020.
12 As regras sugeridas para entrevistas com potenciais árbitros estão englobadas na Diretriz n. 1. do CIArb Sobre o assunto, vide artigo nesta coluna, acessível aqui. Acesso em 24/9/2020.
13 BÉDARD, Julie e MARQUES, Ricardo Dalmaso. A conduta dos advogados e representantes de parte em geral na arbitragem internacional – as Diretrizes IBA para a Representação de Partes em Arbitragens Internacionais, in João Bosco Lee e Daniel de Andrade Levy (eds), Revista Brasileira de Arbitragem, (Comitê Brasileiro de Arbitragem CBAr & IOB; Kluwer Law International 2017, Volume XIV Issue 53) p. 29.
14 A ética na arbitragem é lançada com propriedade por Catherine A. Rogers, sobretudo no campo internacional, em que, segundo a referida autora, a necessidade de uma "auto regulação" do sistema, fundada em normas claras e éticas, reforçam a credibilidade à arbitragem. No original: "While 'regulation' is a term that is generally resisted, self-regulation in international arbitration is a healthy way to preserve existing structures and strengthen the regime. The legitimacy of international arbitration is predicated in substantial part on the integrity and professional conduct of its founders and of its modern custodians – the arbitrators, counsel, experts and administrators od arbitral institutions who manage and decide the disputes. These participants build and sustain the legal frameworks and procedures on which the legitimacy of international arbitration is founded. Clearer ethical norms and a reliable enforcement regime are essential to that function and have evolved organically in international arbitration". ROGERS Catherine A. Ethics in International Arbitration. Oxford University Press, 2014, pp. 272.
15 Nesse sentido, vide o estudo de MARÇAL, Juliana. A Ética como Elemento Caracterizador da Arbitragem in Revista de Arbitragem e Mediação, Vol, 62 (jul-set. 2019). São Paulo: Thomson Reuters, pp. 157-165.
16 Para os profissionais que atuam na condição de árbitros, a atuação do CIArb é destacada por Catherine A. Rogers: "For arbitrators, specifically, the Chartered Institute of Arbitrator, or 'CIArb', has a well- established certification programme. The CIArb refers to itself as a 'Professional Organization for Arbitrators, Mediators and Adjudicators', and lists having a 'prestigious secondary professional qualification' as among the benefits of membership. The CIArb has stringent, published entry requirements, which may include extensive training, passing an examination, and completing an interview. It also has a relatively detailed code of ethics and related practice guidelines that pertain to arbitrator members". ROGERS Catherine A. Ethics in International Arbitration. Oxford University Press, 2014, pp. 255-256.
17 Nesse sentido, vide o estudo de Zharilov, Andri. Conflicts and Ethics in International Arbitration in Arbitration: The International Journal of Arbitration, Mediation and Dispute Management, Vol. 85, Issue 1 (2019) pp. 36-48.
18 Segundo Tim Hardy, FCIArb e Elina Zlatansla, FCIArb: "It is important to bear in mind that the Guidelines are designed for international commercial arbitrations although the principles and standards are equally applicable in domestic arbitrations. The Guidelines are not prescriptive and do not contain any legal or professional advice. Rather they contain suggestions and recommendations that can be used to promote consistent decision-making. They shall not be treated as binding upon the parties or the arbitral tribunal and therefore non-compliance shall not be sanctioned or interpreted as a ground for the setting aside of any award". CIArb Arbitration Practice Guidelines: An Overview, p. 3. Acessível aqui. Acesso em 21/9/2020.
19 Experiências ditas alheias, praticadas em outros povos do globo podem ser benéficas para o aperfeiçoamento do sistema interno, como já ensinavam René David (Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 4) e Rodolfo Sacco (Introdução ao direito comparado. Tradução de Véra Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 2001. p. 49).