Arbitragem Legal

Franquia empresarial e arbitragem: diálogo necessário

Franquia empresarial e arbitragem: diálogo necessário.

25/8/2020

Um tema que tem sido discutido nos últimos anos diz respeito ao uso da arbitragem nos contratos de franquia. Tal assunto foi objeto de discussões em 2016 quando o Superior Tribunal de Justiça ("STJ") proferiu a decisão no REsp nº 1.602.076 – SP, em que se reconheceu a nulidade de cláusula compromissória inserta em contrato de franquia por entender ter havido desrespeito à regra prevista no art. 4º, § 2º da lei 9.307/96 ("LArb")1. 

No bojo do referido aresto, entendeu a Terceira Turma do STJ que, "O contrato de franquia, por sua natureza, não está sujeito às regras protetivas previstas no CDC, pois não há relação de consumo, mas de fomento econômico", e, ainda, que "todos os contratos de adesão, mesmo aqueles que não consubstanciam relações de consumo, como os contratos de franquia, devem observar o disposto no art. 4º, § 2º, da lei 9.307/96"2.

Tal decisão foi objeto de críticas por parte da comunidade jurídica, notadamente em razão do entendimento exarado por aquela Corte de que todo "contrato de franquia ou franchising é inegavelmente um contrato de adesão". Tais críticas, as quais se entende corretas, se resumiam pelo fato de que "A conclusão alcançada no precedente, de que contratos de franquia são inegavelmente contratos de adesão, parece, a bem da verdade, tratar-se de uma generalização apressada e que não representa, necessariamente, a realidade vivida entre franqueados e franqueadores"3.

Poucos anos depois, o Tribunal de Justiça de São Paulo proferiu decisão em sentido oposto, declarando que, em relações contratuais como a da franquia empresarial, "deve ser reconhecida a validade da cláusula compromissória nos contratos de franquia, tendo em vista tratar-se de contrato empresarial, ou seja, entre dois empresários"4. Levada às instâncias superiores, o STJ entendeu por bem reformar o referido decisum, em acórdão não unânime, que decidiu, inter alia: "Os contratos de franquia, mesmo não consubstanciando relação de consumo, devem observar o que prescreve o art. 4º, § 2º, da lei 9.307/96, na medida em que possuem natureza de contrato de adesão. Precedentes"5.

Ou seja, o STJ manteve a posição exarada no REsp nº 1.602.076 – SP, de 2016, deixando ainda no ar os perigos de se assimilar o contrato de franquia, automaticamente, aos contratos de adesão. O voto vencido, de lavra do Ministro Marco Aurélio Belizze, adotou posição correta (na visão deste autor) ao entender que os contratos de franquia assimilam-se aos contratos empresariais e devem ser "qualificados pela especial finalidade empresarial, tendo por objeto, de parte a parte, a exploração de sua atividade econômica organizada profissionalmente, objetivando o lucro". Dessa forma, dentre outras razões, o voto vencido entendeu pela validade da cláusula compromissória inserta em determinado contrato de franquia, considerado o caso específico, sem se ater a generalidades, inter alia.

O perigo imposto pela mais recente decisão do STJ é o de manter o entendimento de 2016 de que todo contrato de franquia se enquadra na natureza dos contratos de adesão, generalizando a questão. Conquanto seja discutível que as relações contratuais celebradas no âmbito da franquia empresarial possam, em grande parte, se enquadrar como contratos de adesão, não é algo que deva ser generalizado, como se regra fosse, tal como se extrai do julgamento proferido nos recursos especiais acima referidos. Isso porque, em determinados casos, a relação negocial firmada entre partes em igual patamar de status empresarial, pode não haver o chamado elemento da "dependência empresarial"6. Isso pode ocorrer mesmo nos contratos de franquia, não havendo, nesses casos, a necessidade de se destacar a cláusula compromissória nos termos do art. 4, § 2º, da LArb. 

A relação contratual de franquia, com efeito, pode representar, em certos casos, relação empresarial estabelecida por contratantes com plena capacidade negocial, sem qualquer assimetria de informações7. A prevalecer o entendimento exarado pelo STJ nos mencionados recursos especiais corre-se o risco de se rotular indefinida e artificialmente todos os contratos de franquia como contratos de adesão, criando-se insuperável situação de insegurança jurídica. Nesse sentido, cita-se a lição de Felipe Vollbrecht Sperandio, tratando de matéria no âmbito securitário, mas que, de forma análoga, pode ser transposta para os contratos de franquia: 

"(...) A lei de Arbitragem criou um sistema para proteger o aderente em contratos de adesão, presumindo que estaria impossibilitado de discutir os termos contratuais que lhe são impostos unilateralmente pelo proponente, especialmente a opção pela arbitragem.

Nesse sentido, o artigo 4º, § 2º, da LArb prevê requisito adicional de forma para que a cláusula arbitral contida em contrato de adesão seja vinculante, o que ocorrerá em duas hipóteses: na primeira, quando o aderente iniciar a arbitragem, o que, por óbvio, extingue qualquer dúvida quanto ao seu consentimento para arbitrar; e, na segundo, quando, no momento da celebração do contrato, o aderente declarar consentimento expresso à cláusula arbitral, por escrito, seja em documento apartado, seja em negrito, com assinatura ou visto na própria cláusula.

A iniciativa do legislador é louvável, mas, neste estudo, defende-se que há duas imprecisões na atual jurisprudência brasileira em relação à arbitragem em contratos de adesão. A primeira imprecisão reside na banalização da ideia de contrato de adesão. Muitos julgados simplesmente rotulam certos contratos como "contratos de adesão", com base no seu tipo ou modelo econômico.

Por exemplo, o contrato de seguro, na maioria das vezes, é um contrato de adesão. Todavia existem coberturas securitárias para grandes e complexos riscos de engenharia, desenhadas de acordo com as especificações do tomador de seguros e exaustivamente negociadas entre grandes corporações amplamente assessoradas. Seria ingênuo, por exemplo, argumentar que as seguradoras têm contrato de seguro padrão e predeterminado para cobertura de riscos em usinas hidrelétricas ou usinas nucleares.

Isso também se aplica a sociedades de economia mista, que precisam realizar licitação para contratar apólices de seguro. [...] As seguradoras, por vezes, apresentam propostas de cobertura securitárias feitas sob medida para os termos do edital de licitação. As sociedades de economia mista, é válido lembrar, muitas vezes têm maior aparato e poderio econômico do que as próprias seguradas.

Com isso em mente, é preciso evitar a rotulação automática de contratos cognitivos, sob o risco de se afastar a jurisprudência brasileira da realidade comercial.

Para aferir se um contrato é de adesão, o julgador deve averiguar se as partes negociaram o contrato em posição paritária — ou, ao menos, examinar se as partes teriam a oportunidade de negociar termos contratuais, caso assim almejassem. É necessária, portanto, disciplina metodológica para investigar detalhadamente a fase de negociação do contrato, caso a caso (...)"8.

Nessa mesma linha, citam-se os contratos bancários, quase sempre rotulados, equivocadamente, como contratos de adesão. Diversos contratos bancários, como, por exemplo, os de derivativos cambiais, dentre outros, são instrumentos complexos, mapeados, examinados e negociados de forma exaustiva pelas partes envolvidas, não havendo espaço para hipossuficiência, seja técnica, jurídica ou econômica. São instrumentos cujas cláusulas são redigidas com oportunidade para que ambas as partes possam discutir ou modificar o seu conteúdo, como bem decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

"Isto porque, não é razoável pensar que uma empresa de grande porte como a apelada não foi possível a negociação da cláusula de arbitragem. Ao contrário, os documentos constantes dos autos permitem inferir que existiram sim negociações preliminares de ambas as partes, com esclarecimentos e discussões do conteúdo do contrato. Ora, se a apelada não concordava com a instituição da cláusula de arbitragem, bastava celebrar o contrato com outra instituição financeira ou mesmo questionar a cláusula antes de aceitá-la. Nos documentos juntados aos autos não se tem notícia de tal questionamento, sendo que o pedido de anulação da cláusula foi feito somente após a crise financeira que assolou o país, ou seja, somente quando a apelada teve prejuízos  (...) Some-se a isto o fato de que no caso de empresas de grande porte é comum que antes da assinatura da avença haja efetiva análise por parte da empresa, em seus departamentos próprios, seja financeiro ou jurídico, dos termos da contratação"9.

Feitas essas considerações, e utilizando-se das percucientes lições aduzidas pelo autor acima citado, "é preciso evitar a rotulação automática de contratos cognitivos, sob o risco de se afastar a jurisprudência brasileira da realidade comercial"10. Por mais que diversos contratos de franquia possam ser contratos padronizados, em que o franqueado sequer tem a possibilidade de examinar suas cláusulas, nem todo negócio jurídico firmado nesse âmbito empresarial se dá desta forma. Tudo deve ser visto caso a caso. Ainda mais, num momento em que a legislação brasileira aprimorou o seu sistema de franquia, por meio da lei 13.966/2019, não apenas incluindo a previsão do uso da arbitragem em contratos daquela natureza, mas abrindo as portas da franquia empresarial ao investidor estrangeiro, em vista da nova disposição a respeito do contrato internacional de franquia11, é essencial que haja uma mudança de entendimento das cortes superiores acerca da real natureza do contrato de franquia e o uso da arbitragem como mecanismo adequado de resolução de controvérsias advindas daquele setor.

Para que haja um bom desenvolvimento do sistema de franquias no Brasil (e ainda mais atualidade, com a hipótese da atração de investimentos estrangeiros nesse setor), bem como o seu método de resolução de controvérsias por arbitragem, é preciso que os tribunais pátrios deixem de rotular o contrato de franquia, de forma automática, como contrato de adesão, sob pena de se tornar inviável o uso da arbitragem nesse setor, e, por conseguinte, criar insuperável situação de insegurança jurídica, tal como descrito nessas breves linhas.

__________

1 Art. 4º A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato (...) § 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa clausula.

2 STJ, REsp nº 1.602.076 – SP, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 15.09.2016, DJE 30.09.2016.

3 Ver, nesse sentido. Acesso em 10.08.2020.

4 TJSP, Ap. Civ. nº 1047574-03.2017.8.26.0100, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Alexandre Lazzarini, j. 23.03.2018. Para comentários, ver aqui. Acesso em 21.08.2020.

5 STJ, REsp nº 1.803.752 – SP, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 04.02.2020, DJE 24.04.2020.

6 Segundo Fábio Ulhôa Coelho: Por dependência empresarial entende-se aquela situação de fato, no contexto de um contrato empresarial, em que a empresa de um dos empresários contratantes deve ser organizada de acordo com instruções ditadas pelo outro. Esta dependência tem origem contratual, de modo que o empresário dependente manifestou sua vontade no sentido de submeter-se à situação (...) A exemplo dos demais princípios de direito comercial, o da proteção do contratante mais fraco não pode ser interpretado isoladamente. Quer dizer, também o empresário dependente, o que se encontra na posição inferior na relação de assimetria, não pode invocar este princípio com o objetivo de se preservar das consequências econômicas, financeiras, patrimoniais ou administrativas das decisões que adota na condução da empresa, quando frustrarem suas expectativas ou se mostrarem prejudiciais aos seus interesses. (Curso de Direito Comercial, Volume 1: Direito de Empresa. 16ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva. 2012. p. 93-94).

7 Ver, nesse sentido, SANTOS, Thiago Rodovalho dos. Cláusula Arbitral nos Contratos de Adesão: contratos de adesão de consumo, contratos de adesão civis, contratos de adesão empresariais. São Paulo: Almedina, 2016, pp. 82-90.

8 SPERANDIO, Felipe Vollbrecht. Curso de Arbitragem. Coordenadores: Daniel Levy e Guilherme Setoguti J. Pereira. São Paulo: Thomson Reuters Brasil/Revista dos Tribunais, 2018. p. 110-112.

9 TJMG, Ap. civ. 1.0672.08.315132-0, 14ª Câmara Cível, rel. Des. Rogério Medeiros, j. 27.10.2011.

10 SPERANDIO, Felipe Vollbrecht. Curso de Arbitragem. Coordenadores: Daniel Levy e Guilherme Setoguti J. Pereira. São Paulo: Thomson Reuters Brasil/Revista dos Tribunais, 2018. p. 110-112

 

11 Sobre o assunto, ver aqui.

 

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Colunista

Thiago Marinho Nunes é doutor em Direito Internacional e Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Mestre em Contencioso, Arbitragem e Modos Alternativos de Resolução de Conflitos pela Universidade de Paris II – Panthéon-Assas; Vice-Presidente da CAMARB; Fellow do Chartered Institute of Arbitrators; Professor Titular de Arbitragem e Mediação do IBMEC-SP; árbitro independente.