Um dos mais delicados temas tratados na arbitragem, tanto doméstica quanto a internacional, diz respeito à possibilidade ou não de alteração, emendas ou até mesmo a formulação de pedidos novos no curso de um procedimento arbitral. Tal polêmica pode ser explicada muito em razão do momento em que a demanda arbitral é estabilizada, o que ocorre quando o Termo de Arbitragem ou Ata de Missão1 são firmados. Com efeito, é exatamente neste documento – Termo de Arbitragem – que há a delimitação do objeto da lide e contém os pedidos das partes a serem, necessariamente, detalhados e quantificados nas alegações escritas (Alegações Iniciais e Resposta). Isso representa o que a mais autorizada doutrina denomina "estabilização da demanda"2.
No entanto, exceções podem ocorrer. A ausência do fator rigidez na arbitragem em comparação com o processo civil pode justificar, a depender de determinados pontos durante o desenvolvimento do procedimento arbitral, a inclusão (no curso da demanda) de pedido originalmente não formulado no Termo de Arbitragem3. A esse respeito, o Regulamento de Arbitragem da CCI contém a regra disposta em seu art. 23 (4), segundo a qual: "Após a assinatura da Ata de Missão ou a sua aprovação pela Corte, nenhuma das partes poderá formular novas demandas fora dos limites da Ata de Missão, a não ser que seja autorizada a fazê-lo pelo tribunal arbitral, o qual deverá considerar a natureza de tais novas demandas, o estado atual da arbitragem e quaisquer outras circunstâncias relevantes".
A interpretação da regra acima citada leva a crer que o procedimento arbitral possa conviver com modificações nos contornos objetivos da disputa após a assinatura do Termo de Arbitragem. Para tanto, é necessária autorização específica do Tribunal Arbitral ou Árbitro Único4, o qual deverá levar em consideração "a natureza das demandas, o estado atual da arbitragem e quaisquer outras circunstâncias relevantes". Mas, o que constituiria uma alteração de pedido no curso da arbitragem, a ensejar um pedido novo? A doutrina estrangeira, com foco nas arbitragens regidas pelo Regulamento da CCI, responde com clareza:
"Normally, ICC arbitral tribunals do not consider a change in argument as a new claim. Typically, a new claim will imply that the relief requested is based on an entirely new ground. That new ground would need to be more than a mere correction or adjustment to the language of an existing request for relief. In a case administered under the 1998 Rules, the claimant sought to change its cause of action, preferring to argue the tort of deceit rather than contractual misrepresentation. The respondent objected by alleging that the claim was entirely new. In its final award, the arbitral tribunal found that the switch from contract to tort did not result in the making of a new claim. The tort argument was based on the same set of facts as the contractual argument. Furthermore, the claimant did not seek additional forms of relief. Accordingly, the sole arbitrator determined that the claimant's modification of its case merely amounted to a "new characterization of a claim already presented in the Terms of Reference". Similarly, adjusting the quantum of a quantified claim is not usually considered as amounting to a new claim"5.
Em procedimentos arbitrais complexos, pedidos originalmente não formulados no Termo de Arbitragem, que surgem no curso da demanda, mas cujo fato gerador nasce no curso da arbitragem, podem eventualmente ser admitidos, dependendo da natureza de tais novas demandas, o estado atual da arbitragem e quaisquer outras circunstâncias relevantes. Em casos de disputas societárias, por exemplo, ajustes de auditoria realizados durante o curso do procedimento, podem ensejar a inclusão de novos pedidos que impliquem na majoração da disputa. De igual forma, em casos de construção, nada impede que um pleito adicional, decorrente de ajustes na obra realizados durante o curso da arbitragem, seja incluído no procedimento. Tudo dependerá, não apenas dos requisitos acima citados, mas que haja clara similitude fática dos pedidos novos em relação aos que restaram consignados no Termo de Arbitragem, mas, sobretudo, que haja intenso debate sobre tais novos pleitos, sem que haja distúrbios ao calendário do procedimento arbitral6. O exercício do contraditório nessas situações é de crucial importância, de modo a viabilizar a admissão do pedido novo, e afastar quaisquer alegações de nulidade dos atos praticados no procedimento arbitral7.
Em suma, a questão relativa à alteração de pedidos no curso da arbitragem, apesar de constituir tema delicado, deve ser visto com cautela e caso a caso. Conforme já tivemos a oportunidade de expor em outro escrito desta Coluna8, os dispositivos do Código de Processo Civil não são direta ou automaticamente aplicáveis à arbitragem, e, na questão relativa aos pedidos, eventuais alterações no curso do procedimento podem representar uma exceção, e serem eventualmente acolhidos9. O mais importante de tudo é que o pedido novo não tenha o condão de gerar mais ônus às partes (como a imposição de propositura de novo procedimento arbitral, por exemplo10), tenha utilidade para garantir uma resolução completa e eficiente da disputa e, o mais importante, seja objeto de intensos e profundos debates entre as partes e o Tribunal Arbitral, assegurando o pleno contraditório e a ampla defesa das partes no procedimento arbitral.
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1 Nomenclatura utilizada pelo Regulamento de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI.
2 "O termo de arbitragem tem na delimitação do objeto do litígio e do pedido das partes seus pontos mais importantes, que representam a estabilização da demanda. Apesar de ser a convenção de arbitragem o instrumento originário e vinculante da arbitragem, não se pode deixar de considerar que o termo de arbitragem tem o condão de reiterar os termos da convenção de arbitragem, delimitar a controvérsia e ressaltar a missão do árbitro, que deverá ater-se às suas disposições, para não gerar motivos para a anulação da sentença arbitral". (LEMES, Selma M. F. A função e o Uso do Termo de Arbitragem. Valor Econômico, p. e-2 - E-2, 08 set. 2005). No mesmo sentido, aduz Cândido Rangel Dinamarco: "Seja como for, o objeto do processo arbitral é determinado sempre pelo pedido endereçado aos árbitros, qualquer que haja sido o iter de sua formulação. Quando o compromisso não for claro, o pedido será especificado por solicitação dos árbitros, chegando-se com isso à estabilização da demanda (CPC, art. 294), que outra coisa não é senão a definitiva delimitação do objeto do processo arbitral. Quando tudo houver sido feito, havendo as partes ajustado concretamente um compromisso e nomeado os árbitros, vindo estes a aceitar o encargo, o instrumento desse ato complexo terá desde logo definido o objeto do processo arbitral que assim se instaura, cabendo ao conselho arbitral pronunciar-se afinal sobre a divergência pendente entre os contendores". (DINAMARCO, Cândido Rangel. Limites da sentença arbitral e de seu controle jurisdicional. In: AZEVEDO, Andre Gomma de (ORG.). Estudos em arbitragem, mediação e negociação - volume 2. Brasília/DF/Brasil: Grupos de Pesquisa, 2003. p.19-33.
3 "Aliás, na arbitragem, a informalidade, a deformalização e a economia processual militam em favor desse entendimento. Não há, na arbitragem, a rigidez que se costuma encontrar no processo civil. A estabilização da demanda não se determina com a rapidez e com o rigor encontrados no processo estatal. Ao contrário, o desenrolar do procedimento pode nortear a alteração do próprio objeto controvertido, a necessidade de produção de provas não especificadas e a juntada de documentos a destempo". (MARTINS, Pedro A. Batista. Apontamentos sobre a lei de arbitragem. Rio de Janeiro/RJ/Brasil: Forense, 2008. p 227). No mesmo sentido, o entendimento de Eduardo de Albuquerque Parente: "Nesse prisma, também as alterações do pedido no curso do processo não obedecem ao esquema rígido do processo estatal, e sim aos preceitos inerentes ao sistema do processo arbitral, conforme vimos falando desde o início. (...) A compleição do processo arbitral, com seus influxos e princípios, não permite uma posição sectária no tocante à alteração do objeto do processo, suposto que pautado no contraditório. Evidentemente que deve haver limites, justamente para que o processo não se prolongue indefinidamente, assim como, ainda mais relevante, para que parte e árbitro não sejam surpreendidos por novas demandas". (PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Processo Arbitral e Sistema. São Paulo/SP/Brasil: Atlas,2012. p 174).
4 "The Terms of Reference also create a cut-off for new claims. Parties may bring new claims not made within the Request for Arbitration or the Answer only prior to the signature or approval of the Terms of Reference. Thereafter, new claims may be made only pursuant to Article 23(4), which requires the arbitral tribunal's authorization". FRY, Jason. GREENBERG, Simon. MAZZA, Francesca. MOSS, Benjamin. The Secretariat’s Guide to ICC Arbitration, International Chamber of Commerce: Dispute Resolution Library, 2012
5 FRY, Jason; GREENBEERG, Simon; MAZZA, Francesca. The Secretariat's Guide to ICC Arbitration. International Chamber of Commerce, 2012, §3- 898.
6 Nesse sentido, é a lição de Karin Beyler: "Provided that the new claim is filed at a time that allows the other side to respond to it without seriously delaying the timetable that was previously agreed, there will not normally be any problems of due process and there would, therefore, be no reason not to admit the new claim, even if it could have been made earlier in the proceedings". BEYELER, Karin. Chapter 4, Part II: Commentary on the ICC Rules, Article 23 [Terms of reference], in Manuel Arroyo (ed), Arbitration in Switzerland: The Practitioner’s Guide. Kluwer Law International, 2013, p. 786.
7 Nesse sentido: "Nulidade alguma haverá porém quando, apesar de toda essa irregularidade processual, o réu tiver tido oportunidade de defender-se dos novos pedidos ou causas de pedir, e particularmente quando a propósito ele houver efetivamente oferecido defesa pelo mérito, contestando, argumentando e trazendo elementos de prova. [...] Observado efetivamente o contraditório, exclui-se o prejuízo que os aditamentos ou alterações pudessem causar, e também por essa razão infraconstitucional não haverá a anular, o que é uma posição do princípio da instrumentalidade das formas" (ênfase acrescentada). DINAMARCO, Cândido Rangel. A Arbitragem na Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 146
8 Ver, notadamente, NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem, Dispositivos e Princípios do Código de Processo Civil. Coluna Arbitragem Legal. Link para acesso.
9 "O sistema processual civil brasileiro restringe a introdução de novos pedidos ao longo do procedimento. O art. 294 do CPC estabelece que o autor poderá aditar o pedido antes da citação do réu, enquanto que o art. 264, caput, determina que após a citação do réu o pedido somente poderá ser modificado com a concordância do réu. O parágrafo único do art. 164, por sua vez, estabelece que a alteração do pedido ou da causa de pedir em nenhuma hipótese será permitida após o saneamento do processo. Todavia, os arts. 264 e 294 do CPC não tem aplicação na arbitragem, onde o conceito de estabilização deve ser mitigado. Como bem ressaltado pelo magistrado, as formalidades típicas do direito processual civil não são cabíveis na arbitragem e o procedimento arbitral é inegável mais flexível que o processo judicial. É claro que em algum momento ocorrerá a estabilização da demanda também na arbitragem, mas há maior flexibilidade do que no processo judicial, até porque as partes têm maior autonomia na definição de tais questões. A autonomia da vontade tem papel de destaque na arbitragem, já que se trata de jurisdição privada, de origem contratual, onde as partes têm liberdade de escolher os julgadores, o direito aplicável à solução do litígio, assim como a forma de instituição e condução do procedimento arbitral. (LEMES, Selma Maria Ferreira; BARROS, Vera Cecília Monteiro de. Ação de anulação de sentença arbitral - Termo de arbitragem e estabilização da demandada: Comentários à sentença proferida no processo 583.00.2011.200971-0. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, ano 10, n.36, p.391-400)".
10 Nesse sentido. É a lição de Yves Derains e Eric Schawartz: "Although there is broad support for the proposition that, in order to avoid disruption and delay, there ought to be a moment in any arbitration proceeding when new claims should no longer be allowed, not all cases are the same, and in certain circumstances the admission of a new claim may not only be reasonable and legitimate, but preferable to the alternative, i.e., the commencement of a new Arbitration". DERAINS, Yves. A. SCHWARTZ, Eric. A Guide to the ICC Rules of Arbitration. Kluwer Law International, Second Edition, p. 267.