Arbitragem Legal

O Poder Judiciário da sede da arbitragem: o "juge d´appui"

O Poder Judiciário da sede da arbitragem: o "juge d´appui".

25/6/2019

Em todo procedimento arbitral existe uma sede. O chamado lugar da arbitragem é aquele em que, normalmente, o procedimento arbitral se desenvolve, onde as audiências são realizadas e, finalmente, onde a sentença arbitral é proferida, inter alia1. Trata-se de um elemento de operacionalidade da arbitragem, em que a sede se torna de suma importância, sobretudo para os efeitos práticos do procedimento arbitral2.

E não só apenas para efeitos de operacionalidade funciona a sede da arbitragem. Com efeito, a lei da sede da arbitragem possui vocação para reger, de forma subsidiária, o procedimento arbitral. Isto é, na ausência de regras escolhidas pelas partes para reger o mérito da controvérsia ou mesmo questões de ordem processual, a lei da sede da arbitragem pode fornecer importantes subsídios para a resolução de determinadas questões3. E não somente a lei, mas o Poder Judiciário da sede exerce importante missão no sentido de dar assistência ao procedimento arbitral que se desenvolve sob o seu território, proferindo medidas de urgência, auxiliando na composição do tribunal arbitral, intimando testemunhas renitentes, inter alia. Como bem frisado por Carlos Alberto Carmona, trata-se de uma relação (entre o Poder Judiciário e a arbitragem) vista sob o prisma cooperativo (ou de "coordenação") e jamais de supremacia ou hierarquia (ou "subordinação")4.

Um bom exemplo prático de relação de coordenação do Poder Judiciário com a arbitragem são as medidas de caráter acautelatório, utilizadas para prevenir direitos das partes5. O protesto interruptivo da prescrição (art. 202, inciso II do Código Civil), por exemplo, seria válido, de modo a resguardar o credor de quaisquer riscos de ver a sua pretensão julgada prescrita6.

Outro exemplo de coordenação entre a jurisdição estatal e a arbitral, bastante recente, advém de julgado emanado do Superior Tribunal de Justiça, em que restou firmado o entendimento segundo o qual é possível aplicar as normas de penhora no rosto dos autos de procedimentos arbitrais, de modo que o Poder Judiciário possa oficiar o árbitro para que este indique, em sua decisão, caso seja favorável à parte executada, a existência de ordem judicial de constrição7.

No entanto, é preciso frisar que as funções da sede são limitadas. Isso porque a sede da arbitragem, ainda que tenha a competência para a resolução de diversas questões, como a do controle da sentença arbitral, inter alia8, exerce o importante papel de juiz de apoio, ou, como chama a doutrina francesa, "juge d'appui"9, isto é, de apoio, assistência e colaboração com o procedimento arbitral. Do contrário, veríamos um sistema arbitral posto em xeque, com infindáveis intervenções judiciais no curso da arbitragem, desvirtuando-a por completo10.

Portanto, não há uma automaticidade da regência do procedimento arbitral pela lei da sede da arbitragem, seja na arbitragem doméstica, seja na arbitragem internacional11. Deve-se ter sempre ter cautela sobre como interpretar o quão importante é a sede da arbitragem, sem que a lei de tal local cause interferências nefastas no procedimento arbitral.

Judiciário e arbitragem funcionam dentro de um sistema de intercomunicação, em que o primeiro interfere no segundo apenas no sentido da eficácia. Como bem frisou Eduardo de Albuquerque Parente em sua obra "Processo Arbitral e Sistema"12, a participação do Judiciário na arbitragem não tira a autorreferência do sistema arbitral. Ambos os sistemas convivem sem qualquer interferência abrupta.

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1 No Direito brasileiro, a escolha da sede da arbitragem configura fator que define a nacionalidade da sentença arbitral, em virtude da redação do parágrafo único do art. 34 da lei 9.307/1996: "Considera-se sentença arbitral estrangeira a que tenha sido proferida fora do território nacional".

2 Nesse sentido, explica Adriana Braghetta: "A sede da arbitragem deve ter estrutura logística adequada para que os atos procedimentais, especialmente as audiências, se realizem sem percalços, apesar de não ser imprescindível que os atos procedimentais aconteçam na sede. A estrutura compreende hotéis, locomoção, tradução, possibilidade de obtenção de vistos, serviços de degravação das audiências, etc. No Brasil, por exemplo, ainda não é simples obter serviços de alta qualidade para gravação e degravação de audiências em línguas estrangeiras" (A escolha da sede da arbitragem. Revista do Advogado, São Paulo: AASP, ano XXVI, p. 13, set. 2006).

3 É assim que entendia o saudoso Philippe Fouchard: "La loi du pays du territoire duquel se déroule l'arbitrage – ou du moins ou il est censé se dérouler – donne à celui-ci un cadre juridique, ou plus exactement le lui propose, car sa vocation à le régir est subsidiaire. C'est seulement en l’absence de règles autonomes tirées de la convention des parties et de la pratique, et à condition des parties et de la pratique, et à condition que les parties n’aient pas choisi une autre loi, que la loi du siège fournit à l’arbitrage les règles techniques qui lui permettent de se dérouler normalement. Telle est moins da tendance moderne des lois et des jurisprudences" (Suggestions pour accroître l’efficacité international des sentences arbitrales. Revue de l'Arbitrage, Paris: Comité français de l'arbitrage, n. 4. p. 667, 1998).

4 CARMONA. Carlos Alberto. Das Boas Relações entre os Juízes e os Árbitros. Revista do Advogado, São Paulo: AASP, n.º 51, pp. 17-24, out. 1997.

5 Tais medidas restaram positivadas no novel art. 22-A da lei 9.307/1996: "Antes de instituída a arbitragem, as partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência".

6 Nesse sentido, a lição de Eduardo de Albuquerque Parente (baseando-se em dispositivos do CPC/1973): "(...) Assim, havendo perigo de dano, situação de urgência na interrupção da prescrição, notando a parte requerente que não poderá aguardar certos atos do procedimento arbitral, seja a aceitação, seja a ordenação para citar, seja esta propriamente dita, deve se valer do sistema do processo estatal. (...) Há que ajuizar demanda cautelar para interromper a prescrição. O chamado protesto interruptivo de prescrição, a ser ajuizado perante o juiz estatal (CPC, arts. 867 a 873), que encerrará sua jurisdição assim que houver a citação. Aí sim, com os convenientes efeitos retroativos do parágrafo 1.º do art. 219 do Código de Processo Civil, que voltarão até o ajuizamento da demanda. Eis mais uma demonstração de como um sistema produz influência no outro e de maneira que ambos precisam trabalhar sem interferências abruptas/assistêmicas. No exemplo, temos a abertura cognitiva do sistema arbitral com o de direito material (prescrição) e processual estatal (medida de urgência)" (Processo arbitral e sistema. São Paulo: Atlas, 2010, pp.145-146).

7 Merece destaque o seguinte trecho da ementa do julgado em questão: "(...) Respeitadas as peculiaridades de cada jurisdição, é possível aplicar a regra do art. 674 do CPC/73 (art. 860 do CPC/15), ao procedimento de arbitragem, a fim de permitir que o juiz oficie o árbitro para que este faça constar em sua decisão final, acaso favorável ao executado, a existência da ordem judicial de expropriação, ordem essa, por sua vez, que só será efetivada ao tempo e modo do cumprimento da sentença arbitral, no âmbito do qual deverá ser também resolvido eventual concurso especial de credores, nos termos do art. 613 do CPC/73 (parágrafo único do art. 797 do CPC/15).". STJ, Terceira Turma, REsp n.º 1.678.224-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 07.05.2019, DJE 09.05.2019.

8 Nesse sentido v. POUDRET, Jean-François; BESSON, Sébastien. Comparative Law of International Arbitration. 2. ed. London: Sweet & Maxwell, 2007. p. 83.

9 Expressão utilizada no direito francês, para caracterizar o papel dos juízes estatais perante a arbitragem ("Juiz de Apoio"). No âmbito do direito francês, Philipe Fouchard discorre como o Presidente do "Tribunal de Grande Instance" coopera com o sistema da arbitragem, como, por exemplo na formação do Tribunal Arbitral. (La coopération du Président du Tribunal de Grande Instance à l’Arbitrage. Philippe Fouchard: Écrits – Droit de l’arbitrage e droit du commerce international. Paris: Comité français de l’arbitrage, 2007. p. 5-33).

10 Seria o caso aqui das nefastas medidas conhecidas como "anti-suit injunctions" utilizadas para a finalidade de paralisar um procedimento arbitral, para discutir aspectos que caberiam tao somente à decisão dos árbitros (eventuais defeitos na clausula compromissória, discussões acerva da arbitrabilidade da disputa, inter alia. Para referência acerca desse tema, ver NUNES, Thiago Marinho. A Prática das anti-suit injunctions no procedimento arbitral e seu recente desenvolvimento no direito brasileiro. Revista Brasileira de Arbitragem, Porto Alegre: Thomson-IOB, ano I, n. 5, p. 15-51, 2005.

11 Nesse sentido, a lição de Carlos Alberto Carmona: "Há quem sustente que a fonte natural para a integração das regras lacunosas será a lei processual. Não creio nisto. Deve o árbitro orientar-se pelos princípios do direito processual, não por qualquer lei processual. Se isto vale para a arbitragem doméstica, com maior razão serve para a arbitragem internacional, onde muitas vezes não há lei processual alguma a consultar, já que a 'sede' da arbitragem por vezes não tem qualquer elemento de conexão com as partes ou com a questão em disputa ('sede' neutra)" (Flexibilização do procedimento arbitral. Revista Brasileira de Arbitragem, São Paulo: Thomson-IOB, n. 24, p. 14, out.-nov.-dez. 2009).

12 PARENTE. Eduardo de Albuquerque. Processo arbitral e Sistema. São Paulo: Atlas, 2012.

 

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Colunista

Thiago Marinho Nunes é doutor em Direito Internacional e Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Mestre em Contencioso, Arbitragem e Modos Alternativos de Resolução de Conflitos pela Universidade de Paris II – Panthéon-Assas; Vice-Presidente da CAMARB; Fellow do Chartered Institute of Arbitrators; Professor Titular de Arbitragem e Mediação do IBMEC-SP; árbitro independente.