ABC do CDC

A relação jurídica de consumo - O conceito de fornecedor - Parte II

No Código de Defesa do Consumidor (CDC), tanto pessoa jurídica quanto física, além de entes despersonalizados, podem ser fornecedores. Toda pessoa jurídica é considerada consumidora e fornecedora, inclusive estrangeira.

1/8/2024

Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ainda no exame do conceito de fornecedor.

Já tivemos oportunidade de dizer que a pessoa jurídica pode ser consumidora, ao examinarmos o conceito de consumidor estabelecido no caput do art. 2º. Lá a norma apenas faz referência à “pessoa jurídica” sem qualificá-la.

Já no caput do art. 3º, como a lei trata de adjetivar a pessoa jurídica como “pública ou privada, nacional ou estrangeira”, poder-se-ia indagar se no art. 2º não se estaria falando menos ou até o contrário, ou, em outros termos: Se no caput do art. 3º a norma não estaria, de alguma maneira, cuidando apenas daquelas pessoas jurídicas indicadas.

Na realidade, a resposta é bastante simples. Tanto no caso do conceito de consumidor quanto no de fornecedor, a referência é a “toda pessoa jurídica”, independentemente de sua condição ou personalidade jurídica. Isto é, toda e qualquer pessoa jurídica. O legislador poderia muito bem ter escrito no caput do art. 3º apenas a expressão “pessoa jurídica” que o resultado teria sido o mesmo. Não resta dúvida de que toda pessoa jurídica pode ser consumidora e, evidentemente, por maior força de razão, é fornecedora.

Ao que parece, o legislador, um tanto quanto inseguro, tratou a pessoa jurídica como consumidora sem se importar muito com o resultado de sua determinação, e quis garantir-se de que, no caso do fornecedor, nenhuma pessoa jurídica escapasse de se enquadrar na hipótese legal.

Assim, tem-se de definir como fornecedor toda e qualquer pessoa jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

A referência à pessoa jurídica estrangeira tem relevo na hipótese da pessoa jurídica admitida como estrangeira em território nacional e que, nessa qualidade, presta serviços ou vende produtos. Por exemplo, a companhia aérea que aqui faz escala ou a companhia teatral estrangeira que vem ao país para apresentações. Haverá em ambos os exemplos prestação de serviços, e pode haver venda de produtos: A empresa aérea que vende presentes a bordo; a companhia teatral que vende pequenos objetos: camisetas, bichos de pelúcia etc.

Ao lado da pessoa jurídica, a lei coloca a pessoa física e o ente despersonalizado. A colocação do termo “ente despersonalizado” leva-nos a pensar primeiramente na massa falida, o que é adequado. Importante notar que, apesar de uma pessoa jurídica falir, existirão no mercado produtos e, eventualmente, resultados dos serviços que ela ofereceu e efetivou, que continuarão sob a proteção da lei consumerista. Por exemplo, a quebra de um fabricante de televisores não deve eliminar — nem pode — a garantia do funcionamento dos aparelhos: Garantia contratual ou legal.

Há, também, a hipótese da quebra da pessoa jurídica com a continuidade das atividades, o que não gerará, então, a solução de continuidade do fornecimento de produtos e serviços.

Além disso, é de enquadrar no conceito de ente despersonalizado as chamadas “pessoas jurídicas de fato”: Aquelas que, sem constituir uma pessoa jurídica, desenvolvem, de fato, atividade industrial, comercial, de prestação de serviços etc. A figura do “camelô1 está aí inserida. O CDC não poderia deixar de incluir tais “pessoas” pelo simples fato de que elas formam um bom número de fornecedores, que suprem de maneira relevante o mercado de consumo.

No que respeita à pessoa física, tem-se, em primeiro lugar, a figura do profissional liberal como prestador de serviço e que não escapou da égide da lei 8.078. Apesar da proteção recebida da lei (o profissional liberal não responde por responsabilidade objetiva, mas por culpa — cf. o § 4º do art. 14), não há dúvida de que o profissional liberal é fornecedor.

Há, ainda, outra situação em que a pessoa física será identificada como fornecedora. É aquela em que desenvolve atividade eventual ou rotineira de venda de produtos, sem ter-se estabelecido como pessoa jurídica. Por exemplo, o estudante que, para pagar a mensalidade da escola, compra joias para revender entre os colegas, ou o cidadão que compra e vende automóveis — um na sequência do outro — para auferir lucro. É verdade que em tais hipóteses poder-se-ia objetar que o caso é de “ente despersonalizado”, uma vez que se trata de “comerciantes de fato”. Do ponto de vista prático, a objeção não traz nenhum resultado, porque em ambos os casos identifica-se o fornecedor, e isso é o que realmente interessa.

Porém, diga-se que a pessoa física que vende produtos, especialmente aquela que o faz de forma eventual, não é exatamente comerciante de fato e muito menos sociedade de fato. Um “camelô” constitui-se como verdadeira “sociedade de fato”. Tem local (“sede”) de atendimento, horário de funcionamento, até empregados etc. O aluno que vende joias não passa de pessoa física que desenvolve, de maneira rústica e eventual, uma atividade comercial, visando auferir certo lucro. Situa-se, então, entre a pessoa física que nada vende e a sociedade de fato. Mas, para fins de aplicação do CDC, essa pessoa física é fornecedora.

E, também, será fornecedora a pessoa física que presta serviços mesmo sem ser caracterizada como profissional liberal, tal como o eletricista, o encanador etc.

Finalmente, apresente-se desde já uma distinção feita pelo CDC, mas que diz respeito ao conceito de fornecedor. Este é gênero do qual o fabricante, o produtor, o construtor, o importador e o comerciante são espécies. Quando a lei consumerista quer que todos sejam obrigados e/ou responsabilizados, usa o termo “fornecedor”. Quando quer designar algum ente específico, utiliza-se de termo designativo particular: fabricante, produtor, comerciante etc.

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Continua na próxima semana.

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1 É verdade que há “camelôs” constituídos em pessoas jurídicas. Nesse caso, obviamente, enquadram-se como fornecedores regulares do tipo pessoa jurídica.

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Colunista

Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor.