Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Hoje cuido do consumidor pessoa jurídica.
Além de tudo o que já demonstramos, existe ainda uma outra norma no CDC que justifica nossa teoria para explicar a definição de consumidor na relação de consumo.
É a do inciso I do art. 51, especificamente a segunda parte da proposição. Mas, antes de analisá-la, desde já se acrescente uma constatação: O caput do art. 2º coloca a pessoa jurídica como consumidora.
Ora, afinal o que é que uma pessoa jurídica pode consumir?
Pessoa jurídica não come, não bebe, não dorme, não viaja, não lê, não vai ao cinema, não assiste à aula, não vai a shows, não assiste a filmes, não vê publicidade etc.
Logo, para ser consumidora, ela somente poderia consumir produtos e serviços que fossem tecnicamente possíveis e lhe servissem como bens de produção e que fossem, simultaneamente, bens de consumo.
Vejamos.
Destaque-se, então, e ademais, que a disposição normativa da segunda parte do inciso I do art. 51 foi feita exatamente pensando no consumidor-pessoa jurídica que adquire produto ou serviço de consumo para fins de produção.
Trata-se de previsão legal a permitir que o fornecedor em circunstâncias especiais justificáveis, possa estabelecer cláusula contratual limitando seu dever de indenizar.
O que aqui interessa especificamente é a parte final da proposição da norma do inciso I do art. 51:
“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
I — impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor-pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis”.
Pergunta-se: Por que é que a lei resolveu excetuar do amplo e expresso sistema de responsabilidade civil objetiva, no qual o fornecedor não pode, de maneira alguma, desonerar-se de seu dever de indenizar, exatamente um caso especial de aquisição de produto ou serviço quando o consumidor é pessoa jurídica?
Justamente porque sabe que é possível adquirir produto e serviço de consumo para fins de produção.
Explica-se.
A regra geral é a do dever de o fornecedor indenizar por vícios e defeitos (arts. 12 a 14 e 18 a 20). Não pode ele, mediante cláusula contratual, exonerar-se dessa obrigação, mesmo que seja em parte, por expressa disposição do caput do art. 25, que dispõe, verbis:
“Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores”.
Logo, essa é a regra geral para todas as relações jurídicas de consumo regulares.
Mas a lei resolveu abrir uma exceção (a do citado inciso I do art. 51). E não foi para os casos comuns, mas apenas os que envolvam o consumidor-pessoa jurídica em “situações justificáveis”. E quais seriam elas?
A exceção legal de permissão para fixação de cláusula contratual limitadora do dever de indenizar pressupõe duas hipóteses para o atingimento de sua finalidade:
- Que o tipo de operação de venda e compra de produto ou serviço seja especial, fora do padrão regular de consumo;
- Que a qualidade de consumidor-pessoa jurídica, por sua vez, também justifique uma negociação prévia de cláusula contratual limitadora.
Para o fornecedor exercer a prerrogativa de negociar a inserção de cláusula contratual limitadora de seu dever de indenizar é necessário que estejam presentes as duas situações previstas nas letras “a” e “b”, simultaneamente.
Examine-se a letra “a”: Não basta que a compra seja fora do padrão para que ele possa incluir a cláusula. Por exemplo, se um consumidor-pessoa física quiser adquirir vinte laptops para distribuir a seus amigos e parentes, isso não é suficiente para a negociação e inclusão da cláusula. A compra está fora do padrão, mas não está presente o outro requisito.
E, quanto à letra “b”, o mesmo ocorre com duas alternativas:
b.1) Não é suficiente que o consumidor seja pessoa jurídica fazendo uma aquisição dentro do regular. Por exemplo, a pessoa jurídica que adquire um laptop numa loja de departamentos ou diretamente do fabricante. Essa é uma aquisição comum, que recebe as garantias gerais das disposições regulares do sistema de responsabilidade civil instituído no CDC. Não pode o fornecedor limitar sua responsabilidade.
b.2) Não é suficiente que a compra seja fora do padrão. É necessário que a pessoa jurídica consumidora seja também de porte razoável para que a cláusula limitadora possa ser negociada e inserida no contrato. Evidente que cada caso terá suas particularidades, na medida em que a norma está utilizando de termos indeterminados, que remetem a situações concretas variáveis. Mas, é possível desde já dizer que pessoa jurídica “de porte”, para os fins instituídos no inciso I do art. 51, é aquela que tem corpo jurídico próprio ou pode pagar consultor jurídico, que negocie em nome dela a cláusula contratual limitadora. Sem isso, isto é, sem que se estabeleça um equilíbrio prévio para a negociação da cláusula, esta não poderá ser inserida no contrato.
Voltando, então, aos nossos argumentos para a definição de consumidor, percebe-se, pelo que se examinou do inciso I do art. 51, que o CDC abraça nossa tese no sentido de que há bens de consumo (produtos e serviços) que são adquiridos com o fim de produção, sem que a relação jurídica estabelecida deixe de ser de consumo, tanto que recebe ela o tratamento diferencial da norma do inciso I do art. 51 comentado.
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Continua na próxima semana.