ABC do CDC

A relação jurídica de consumo – ainda o conceito de consumidor - Parte III

Rizzatto Nunes examina a relação jurídica de consumo estabelecida no CDC, ainda com o conceito de consumidor.

20/6/2024

Hoje continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ainda com o conceito de consumidor. 

No artigo anterior apontávamos o problema do exemplo que envolvia uma usina produtora de álcool e uma montadora de veículos. 

Quanto a montadora de veículos, apontamos o prédio utilizado para a montagem do veículo. Perguntamos: nesse caso, a montadora é “destinatária final” do prédio e, portanto, consumidora? 

E a situação da usina parece diversa porque, diferentemente da montadora, que envia as peças com o automóvel para o consumidor, na produção do álcool, este vai para o consumidor, mas a usina fica. 

Mas não serão simplesmente a usina e o prédio “bens de produção”, e, assim, não se pode querer aplicar ali a lei consumerista? 

Para responder a essas questões e tentar elucidar todas as possíveis alternativas que o quadro interpretativo denota, examinaremos, detalhadamente, as situações envolvidas. 

Um dos problemas está em que o CDC não fala em bens de produção ou de consumo. Limitou-se a dizer “consumidor” como “destinatário final” e a definir o fornecedor (art. 3º). Há meios, porém, de solucionar a pendência. 

Antes de tentar responder, analisemos um outro exemplo, o de uma pessoa que pretende constituir-se como despachante. Para isso vai a uma loja e compra um laptop, que utilizará para o exercício de seu trabalho. É o despachante “destinatário final” do laptop e, portanto, consumidor? 

Poderíamos responder no caso do álcool que o usineiro é “destinatário final” da usina e assim aquela relação estaria protegida pelo Código. Da mesma maneira, a montadora seria “consumidora” do prédio utilizado para montagem de veículos. E, assim, resolvido estaria o caso do despachante, que é “destinatário final” do laptop. 

Contudo, todos esses bens não são típicos “bens de produção”? O laptop pode ser e pode não ser. Os outros dois são. 

Seria adequado dizer, então, que o Código regula aquelas três situações? Sem dúvida que não. Em casos nos quais se negociam e adquirem bens típicos de produção, o CDC não pode ser aplicado por dois motivos óbvios: primeiro, porque não está dentro de seus princípios ou finalidades; segundo, porque, dado o alto grau de protecionismo e restrições para contratar e garantir, o CDC seria um entrave nas relações comerciais desse tipo, e que muitas vezes são de grande porte. A resposta para o caso da usina e da montadora é, portanto, a aplicação do direito comum: 

(Imagem: Divulgação)

Acontece que essa resposta não resolve o problema do despachante. Quer dizer, então, que o laptop é um bem de produção, e quando ele tiver vício o despachante não poderá utilizar-se da Lei n. 8.078/90? Ora, que diferença existe entre o despachante pessoa jurídica, que utiliza o laptop para preencher guias, e o despachante enquanto pessoa física, que leva o laptop para casa e escreve uma carta de amor? 

A solução não pode ser a mesma que a da usina e a da montadora. Tem de ser outra. 

O CDC ajuda em parte, pois o despachante é “destinatário final”, mas o bem é de produção. Porém, para encontrarmos uma solução, precisamos utilizar certos princípios do Código e transferi-los para a noção de bens — aliás, conforme fizemos para falar de “bens de produção”, excluindo-os de sua abrangência. 

O Código de Defesa do Consumidor regula situações em que produtos e serviços são oferecidos ao mercado de consumo para que qualquer pessoa os adquira, como destinatária final. Há, por isso, uma clara preocupação com bens típicos de consumo, fabricados em série, levados ao mercado numa rede de distribuição, com ofertas sendo feitas por meio de dezenas de veículos de comunicação, para que alguém em certo momento os adquira. 

Aí está o caminho indicativo para a solução. Dependendo do tipo de produto ou serviço, aplica-se ou não o Código, independentemente de o produto ou serviço estar sendo usado ou não para a “produção” de outros. 

É claro o que estamos falando: não se compram “usinas” para produção de álcool em lojas de departamentos, ao contrário de laptops. Para quem fabrica laptops em série e os coloca no mercado de consumo não é importante o uso que o destinatário deles fará: pode muito bem empregá-los para a produção de seu serviço de despachante. 

Não podemos esquecer que, no mesmo sentido, uma simples caneta esferográfica pode ser “bem de produção”, como da mesma forma o serviço de energia elétrica é bem de produção para a montadora de automóveis. 

Assim, podemos responder que, como o despachante adquiriu o laptop produzido e entregue ao mercado como um típico bem de consumo, a relação está protegida pelo CDC. 

*** 

Continua na próxima semana.

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Colunista

Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor. Para acompanhar seu conteúdo nas redes sociais: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4.