ABC do CDC

O caráter principiológico do Código de Defesa do Consumidor – Parte III

O CDC (lei 8.078/90) surgiu para lidar com relações de massa, prevenindo abusos. Interpretá-lo requer foco no coletivo, rompendo com o direito privado tradicional. O Código Civil de 2002 segue essa tendência, atenuando o individualismo e introduzindo responsabilidade objetiva.

23/5/2024

Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a terceira parte da avaliação do caráter principiológico do CDC - Código de Defesa do Consumidor e, também, dos pressupostos para interpretação de seu texto.

No artigo anterior, terminamos lembrando que a lei 8.078/90 tinha de vir, pois já estava atrasada. O Código Civil de 1916, bem como as demais normas do regime privatista, já não davam conta de lidar com as situações tipicamente de massa.

É verdade que já dispúnhamos de algumas normas tratando da questão da economia popular1, bem como, no campo adjetivo, tínhamos a lei da ação civil pública, que é de 27/7/85 (lei 7.347). Contudo, era necessário que tivéssemos uma lei capaz de dar conta das relações jurídicas materiais que haviam surgido e estavam em pleno vigor, porém sem um suporte legal que lhes explicitasse o conteúdo e que impedisse os abusos que vinham sendo praticados. Já dissemos, e é importante frisar, o regime privatista do Código Civil é inoperante em questões ligadas à sociedade de massa, como da mesma forma o é o sistema das ações judiciais individuais do CPC.

Assim, consigne-se que, para interpretar adequadamente o CDC, é preciso ter em mente que as relações jurídicas estabelecidas são atreladas ao sistema de produção massificado, o que faz com que se deva privilegiar o coletivo e o difuso, bem como que se leve em consideração que as relações jurídicas são fixadas de antemão e unilateralmente por uma das partes — o fornecedor —, vinculando de uma só vez milhares de consumidores. Há um claro rompimento com o direito privado tradicional.

O Código Civil de 2002 revela essa tendência ao atenuar o direito privado, que deixa de ser puramente individualista para considerar que em certas relações jurídicas as partes não estão em pé de igualdade, criando mecanismos de proteção aos direitos destas, como as hipóteses de responsabilidade objetiva, por exemplo. Conforme o art. 927, parágrafo único, "haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".

É exatamente a hipótese de responsabilidade objetiva que têm aqueles que desenvolvem atividade de risco. O novo Código Civil, portanto, incorporou no seu regramento um dos aspectos marcantes das sociedades capitalistas contemporâneas, o de que o sistema de produção e a consequente exploração das reservas naturais, a criação, a produção e a distribuição de produtos e serviços com seus reflexos no modo de vida social, na alimentação, na saúde, na moradia, no transporte etc., implicam riscos à integridade das pessoas. E esse risco se põe independentemente da ação do produtor, vale dizer, há risco — e eventual dano — mesmo que não haja culpa. O modelo é, assim, o mesmo da lei consumerista.

E, com efeito, a partir de 11/3/91, com a entrada em vigor da lei consumerista, não se cogita mais em pensar as relações de consumo (as existentes entre fornecedores e consumidores) como reguladas por outra lei.

Conforme exposto, o CDC compõe um sistema autônomo dentro do quadro constitucional. Dir-se-á um subsistema próprio inserido no sistema constitucional brasileiro.

Dessa forma, de um lado as regras do CDC estão logicamente submetidas aos parâmetros normativos da Carta Magna, e, de outro, todas as demais normas do sistema somente terão incidência nas relações de consumo se e quando houver lacuna no sistema consumerista. Caso não haja, não há por que nem como pensar em aplicar outra lei diversa da 8.078.

O CDC, como sistema próprio que é, comporta, assim, que o intérprete lance mão de seus instrumentos de trabalho a partir e tendo em vista os princípios e regras que estão nele estabelecidos e que interagem entre si. O uso da técnica de interpretação lógico-sistemática é tão fundamental para o entendimento das normas do CDC como a de base teleológica, que permitirá entender seus princípios e finalidades.

Assim, como a lei 8.078 é norma de ordem pública e de interesse social, geral e principiológica, ela é prevalente sobre todas as demais normas anteriores, ainda que especiais, que com ela colidirem.

As normas gerais principiológicas têm prevalência sobre as normas gerais e especiais anteriores. Dito de outro modo: A norma jurídica principiológica, como é o caso do CDC, atinge para afastar toda e qualquer norma jurídica da mesma hierarquia que com ela conflite. A outra não é revogada, mas é deixada de lado da incidência do caso concreto, sendo substituída pelos princípios e regras da lei consumerista.

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1 Por exemplo, a lei n. 1.521, de 26 de dezembro de 1951, que regula crimes contra a economia popular; a lei n. 4.137, de 10 de setembro de 1962, que trata da repressão ao abuso do poder econômico; a lei Delegada n. 4, de 26 de setembro de 1962, que regulamenta a intervenção no domínio econômico para assegurar a distribuição de produtos necessários ao povo etc.

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Colunista

Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor.