Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a primeira parte da análise dos princípios gerais da atividade econômica, fixados na Constituição Federal e que afetam diretamente as relações de consumo e o direito do consumidor.
Desde logo, é importante lembrar que os princípios e as normas constitucionais têm de ser interpretados de forma harmônica, ou seja, é necessário definir parâmetros para que um não exclua o outro e, simultaneamente, não se autoexcluam.
Isso, todavia, não impede que um princípio ou uma norma limite a abrangência de outro princípio ou norma. Assim, por exemplo, deve parecer evidente ao intérprete que “dignidade da pessoa humana” é um princípio excludente de qualquer outro que possa atingi-lo. E, também, essa constatação não elimina outros princípios e normas; apenas os delimita nos exatos termos em que devem ser interpretados.
Realcemos, então, alguns princípios estampados na Carta Magna para contrapô-los a outros que interessam diretamente à questão das relações de consumo. Guardemos em mente a garantia absoluta da “dignidade da pessoa humana”, depois a dos “valores sociais do trabalho e valores sociais da livre iniciativa”; a da construção de “uma sociedade livre, justa e solidária”; a da erradicação da “pobreza e da marginalização e da redução das desigualdades sociais e regionais”; a da promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, e ainda a da igualdade de todos “perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, com a garantia da “inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Agora, remetamo-nos diretamente aos princípios gerais da atividade econômica, capítulo importante do título que cuida da ordem econômica e financeira. Vejamos o art. 170, seus incisos e parágrafo único — que terá de ser examinado à luz dos princípios acima mencionados (e em consonância com eles).
Dispõe o art. 170, in verbis:
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I — soberania nacional;
II — propriedade privada;
III — função social da propriedade;
IV — livre concorrência;
V — defesa do consumidor;
VI — defesa do meio ambiente;
VII — redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII — busca do pleno emprego;
IX — tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.
O art. 170, como um todo, estabelece princípios gerais para a atividade econômica. Estes têm de ser interpretados, também, como já o dissemos, de modo a permitir uma harmonização de seus ditames. Acontece que não basta examinar os princípios estampados nos nove incisos dessa norma apenas entre si mesmos. É necessário adequá-los àqueles outros aos quais chamamos a atenção.
O caput do art. 170 está já em harmonia com aqueles outros princípios. Dos nove princípios instituídos nos incisos, quatro nos interessam em nosso exame. São eles: propriedade privada; função social da propriedade; livre concorrência; defesa do consumidor, e a possibilidade de exploração da atividade econômica — com seu natural risco — prevista no parágrafo único do art. 170.
Ora, a Constituição Federal garante a livre iniciativa? Sim. Estabelece garantia à propriedade privada? Sim. Significa isso que, sendo proprietário, qualquer um pode ir ao mercado de consumo praticar a “iniciativa privada” sem nenhuma preocupação de ordem ética no sentido da responsabilidade social? Pode qualquer um dispor de seus bens de forma destrutiva para si e para os demais partícipes do mercado? A resposta a essas duas questões é não.
Os demais princípios e normas colocam limites — aliás, bastante claros — à exploração do mercado. É verdade que a livre iniciativa está garantida. Porém, a leitura do texto constitucional define que:
a) o mercado de consumo aberto à exploração não pertence ao explorador; ele é da sociedade e em função dela, de seu benefício, é que se permite sua exploração;
b) como decorrência disso, o explorador tem responsabilidades a saldar no ato exploratório; tal ato não pode ser espoliativo;
c) se lucro é uma decorrência lógica e natural da exploração permitida, não pode ser ilimitado; encontrará resistência e terá de ser refreado toda vez que puder causar dano ao mercado e à sociedade;
d) excetuando os casos de monopólio do Estado (p. ex., do art. 177), o monopólio, o oligopólio e quaisquer outras práticas tendentes à dominação do mercado estão proibidos;
e) o lucro é legítimo, mas o risco é exclusivamente do empreendedor. Ele escolheu arriscar-se: não pode repassar esse ônus para o consumidor.
Essas considerações são decorrentes da interpretação dos princípios já expostos e que devem ser harmonizados.
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Continua na próxima semana.