ABC do CDC

A liberdade de ação garantida para consumidores e fornecedores

O colunista cuida da liberdade, não no amplo sentido de liberdade garantido na Carta Magna, mas tão somente naquilo que interessa para compreender sua existência como suporte aos princípios e normas do CDC.

7/12/2023

Hoje cuido da liberdade, não no amplo sentido de liberdade garantido na Carta Magna, mas tão somente naquilo que interessa para compreender sua existência como suporte aos princípios e normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Trato da liberdade de ação: dos consumidores de agirem e escolherem e dos fornecedores de empreenderem.

Com efeito, a liberdade aparece estampada no texto constitucional como princípio, logo no art. 1º (inciso IV) e no art. 3º (inciso I), e é garantia fundamental do caput do art. 5º, especificando-se em alguns dos incisos lá elencados na forma de liberdade de manifestação do pensamento (inciso IV), liberdade de consciência e de crença (inciso VI), liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (inciso IX) etc., e está espalhada em várias outras normas (inclusive como garantia processual do devido processo legal — inciso LIV do art. 5º — e do habeas corpus — inciso LXVIII do mesmo artigo), e, em particular, aparece como princípio da atividade econômica (art. 170).

Como antecipei, o princípio da liberdade garantido constitucionalmente que aqui interessa é o que aponta para uma condição material — real — de ação. E, basicamente, para essa hipótese, podemos ficar com as regras dos arts. 1º e 3º citados.

Com efeito, dispõem o inciso IV do art. 1º e o inciso I do art. 3º:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...)

IV — os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”;

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I — construir uma sociedade livre, justa e solidária”.

A liberdade de iniciativa é conferida a todos aqueles que decidam, sponte propria, tomando seus bens e constituindo-os em capital, ir ao mercado empreender alguma atividade — qualquer atividade permitida e/ou regulada constitucional e infraconstitucionalmente.

O sentido de “livre” iniciativa aí, então, significa o direito de escolher correr o risco do empreendimento. A pessoa tem, portanto, o direito garantido de, caso queira, empreender um negócio.

Em relação a pessoa consumidora, a liberdade que o texto lhe garante é objetivo da República, ou seja, o Estado brasileiro tem entre seus objetivos o de assegurar que a sociedade seja livre. Isso significa que, concretamente, no meio social, dentre as várias ações possíveis, a da pessoa designada como consumidora deve ser livre.

A consequência disso é que o Estado deverá intervir quer na produção, quer na distribuição de produtos e serviços, não só para garantir essa liberdade mas, também, para regular aqueles bens que, essenciais às pessoas, estas não possam adquirir por falta da capacidade de escolha. Explico.

Primeiramente, como disse, o sentido de liberdade da pessoa consumidora, aqui, é o de “ação livre”. Essa ação é livre sempre que a pessoa consegue acionar duas virtudes: querer + poder. Quando a pessoa quer e pode, diz-se, ela é livre; sua ação é livre.

Assim, a regra básica será a da escolha com possibilidade de aquisição: a pessoa quer algo, tem dinheiro ou crédito para adquiri-lo, então é livre para fazê-lo.

Contudo, haverá casos em que, justamente por não poder escolher, a ação da pessoa não será livre. E nessa hipótese a solução tem de ser outra. Estou me referindo à necessidade. O conceito é clássico: liberdade é o oposto de necessidade. Nesta não se pode ser livre: ninguém tem ação livre para não comer, não beber, para sair voando etc. Aplicado o conceito à realidade social, o que se tem é o fato de que o objetivo constitucional da construção de uma sociedade livre significa que, sendo a situação real de necessidade, o Estado pode e deve intervir para garantir a dignidade humana.

Isso justifica, por exemplo, o controle pelo Estado da distribuição de produtos essenciais, do controle de seus preços, da garantia de acesso a hospitais e demais serviços públicos etc., bem como se verifica a obrigação do Estado em garantir esses mesmos direitos à pessoa. Ou, em outros termos, no estado de necessidade, a própria pessoa pode exigir do Estado essa conduta de garantia a seus direitos.

Além disso, o tema da liberdade envolve a da possível opção da pessoa consumidora para adquirir produtos e serviços.

Acontece que, em larga medida, é impróprio falar que essa pessoa age com “liberdade de escolha”. Isso porque, como ela não tem acesso aos meios de produção, não é ela quem determina o quê nem como algo será produzido e levado ao mercado. As chamadas “escolhas” da pessoa consumidora, por isso, estão limitadas àquilo que é oferecido. São restritíssimas as chances dela optar: pode, quando muito, escolher o preço mais barato, as melhores condições de pagamento etc., mas a restrição é dada pela própria condição material do mercado.

Examinemos um exemplo, com uma analogia, ainda que imperfeita, mas que permite a elucidação desse problema. Tomemos um desempregado, dentre as dezenas de milhares do Estado de São Paulo. Suponhamos que, em um final de semana, esse desempregado, procurando emprego em sites de ofertas, tenha tido a sorte de encontrar duas interessantes.

Vamos supor que as tais duas ofertas de emprego estejam localizadas em indústrias perto de sua residência: uma à esquerda de sua casa, no quarteirão próximo, e outra à direita, também no quarteirão próximo: estão à mesma distância, em direções opostas. Duas alternativas para trabalhar.

Na segunda-feira cedo ele procura a da esquerda, faz um teste e é aprovado: oferecem-lhe emprego com oito horas de trabalho por dia, décimo terceiro e décimo quarto salários mais os direitos legais, e sábados livres, pagando um salário de R$2.000,00 por mês. À tarde procura a da direita, faz um teste e é aprovado: oferecem-lhe emprego com oito horas de trabalho por dia, décimo terceiro e décimo quarto salários mais os direitos legais, e sábados livres, pagando um salário de R$3.000,00 por mês.

Agora, pergunta-se: qual dos dois empregos ele vai aceitar? Duas ofertas de emprego idênticas; a única diferença é o salário. Obviamente, ele vai escolher a que paga salário de R$3.000,00 por mês. É o máximo que ele tem de “opção”, porque, aliás, o desempregado é não só vulnerável, como prisioneiro da impossibilidade de não trabalhar: ele não tem opção; tem de arrumar emprego e aceitar aquilo que lhe oferecem.

Com a pessoa consumidora acontece algo similar. Ela vai ao mercado procurar e adquirir produtos e serviços dos quais precisa. Se existir um fornecedor único (monopólio) ela já está perdendo; o mesmo ocorrerá se se tratar de oligopólio; se existir mais de um fornecedor, ela pode escolher, mas, claro, a escolha é sempre limitada pela oferta. Ela não tem como inventar, criar oferta; só pode escolher dentro do que lhe oferecem.

A pessoa consumidora é sempre atraída pela oferta, às vezes de preços e pagamentos menores, de prestações menores. E mesmo a pessoa consumidora com mais poder aquisitivo é vulnerável, pois não tem acesso nem determina o ciclo de produção.

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Colunista

Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor. Para acompanhar seu conteúdo nas redes sociais: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4.