A lei 14.181, recentemente aprovada, introduziu no Código de Defesa do Consumidor uma série de normas visando aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento.
São várias as alterações. No artigo de hoje, cuidarei de examinar o conceito de “mínimo existencial” que aparece em cinco hipóteses: as dos incisos XI e XII do artigo 6º, a do §1º do art. 54-A, a do “caput” do artigo 104-A e do §1º do artigo 104-C. Em todos os casos o legislador colocou “nos termos da regulamentação” após o termo “mínimo existencial”.
E, de fato, será necessário algum tipo de regulamentação para tentar explicitar como a garantia poderá funcionar. Explico.
Com a evolução do pensamento jurídico e da fixação de uma ampla garantia para os direitos humanos, consolidou-se a orientação de que os Estados implementem em seus sistemas legais uma série de direitos, a partir de um mínimo existencial. Isso aparece em termos internacionais nos documentos da ONU e, no caso brasileiro, está fixado no texto constitucional.
Com efeito, o artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) dispõe, verbis:
“1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.”
Posteriormente, em 1966, a ONU editou o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que assegurou como norma internacional a proteção contra a fome1 e, também, a educação como um direito social básico2.
Essa ideia de um mínimo existencial garantido a todos os seres humanos é base de uma civilização que evolui. A realidade em todos os lugares do mundo mostra que há muito a realizar nessa direção, mas podemos dizer que, do ponto de vista jurídico, os textos legais estão bem posicionados. Trata-se, na verdade, da tentativa de garantir ao ser humano um “mínimo vital” de qualidade vida, o qual lhe permita viver com dignidade, tendo a oportunidade de exercer a sua liberdade no meio social em que vive.
Esse mínimo existencial tem, portanto, relação direta com a dignidade de pessoa humana e, também, com o próprio Estado Democrático de Direito. No caso brasileiro, ele está contemplado na Constituição Federal, gerando um dever ao Estado para sua implementação concreta.
No atual diploma constitucional, pensamos que o principal direito constitucionalmente garantido é o da dignidade da pessoa humana[iii].
É ela, a dignidade, o último arcabouço da guarida dos direitos individuais e o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional. Coloque-se, então, desde já, que, após a soberania, aparece no texto constitucional a dignidade como fundamento da República brasileira:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana.
E esse fundamento funciona como princípio maior para a interpretação de todos os direitos e garantias conferidos às pessoas no texto constitucional. E, para tratar do assunto, o Professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo usou a expressão “mínimo vital”4.
Diz o professor que, para começar a respeitar a dignidade da pessoa humana, tem-se de assegurar concretamente os direitos sociais previstos no art. 6º da Carta Magna, que, por sua vez, está atrelado ao caput do art. 225.
Tais normas dispõem:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
De fato, não há como falar em dignidade se esse mínimo não estiver garantido e implementado concretamente na vida das pessoas.
Como é que se poderia imaginar que qualquer pessoa teria sua dignidade garantida se não lhe fossem asseguradas saúde e educação? Se não lhe fosse garantida sadia qualidade de vida, como é que se poderia afirmar sua dignidade?
A dignidade humana é um valor já preenchido a priori, isto é, todo ser humano tem dignidade só pelo fato de ser pessoa.
Se – como se diz – é difícil a fixação semântica do sentido de dignidade, isso não implica que ela possa ser violada. Como dito, ela é a primeira garantia das pessoas e a última instância de guarida dos direitos fundamentais. Ainda que não seja definida, é visível sua violação, quando ocorre.
Ou, em outros termos, se não se define a dignidade, isso não impede que na prática social se possam apontar as violações reais que contra ela se realizem.
Retornando, agora, às normas introduzidas expressamente no CDC a respeito do tema. Como se trata de evitar o superendividamento, visando garantir o mínimo existencial, as situações concretas de cada consumidor exigirão um exame detalhado e cauteloso dos fatos que envolveram, envolvem e/ou envolverão ele e seu credor ou credores. Digo isso porque, haverá situações em que, apesar de dívidas, limites existenciais, problemas pessoais e sociais etc., o consumidor somente poderá (ou poderia) modificar sua situação para melhor obtendo empréstimo. Muitas vezes, somente fazendo dívidas, a pessoa consegue sair da situação ruim em que se encontra.
Seria diferente se, uma vez constatada a grave situação de violação ao mínimo existencial, o Estado agisse diretamente oferecendo a saída à pessoa atingida. Mas, isso não ocorre, infelizmente.
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1 Artigo 11, parágrafo 2º: §2. Os Estados-partes no presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, que se façam necessários para: 1. Melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização 6 mais eficazes dos recursos naturais. 2. Assegurar uma repartição equitativa dos recursos alimentícios mundiais em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores quanto dos exportadores de gêneros alimentícios.
2 Artigo 13, parágrafo 1º: §1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
3 Consulte-se a respeito o “Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana”, 5ª. edição, Salvador: Juspodivm.
4 O direito de antena em face do direito ambiental no Brasil, São Paulo: Saraiva, 2000, passim.