ABC do CDC

O isolamento e a esperança do consumidor

O isolamento e a esperança do consumidor.

15/4/2021

Volto ao tema da esperança, neste momento de isolamento de milhares, milhões de pessoas. A esperança é uma componente importante de ordem psíquica para a venda de muitos produtos e serviços. Os marqueteiros sabem muito bem como utilizá-la em suas formulações e comunicações.  

Caro leitor, veja esse ponto: muitos consumidores jamais poderão adquirir a maior parte dos produtos e serviços oferecidos no mercado de consumo. Por mais que o sistema financeiro consiga, cada vez mais, oferecer crédito para uma ampla camada da população, muitos objetos do desejo dos consumidores continuam e continuarão inacessíveis.

Pensemos  no elemento psíquico. Os bens de difícil aquisição, alimentam, de fato, a frustração do consumidor que sonha, mas não adquire o bem desejado ou tem muita dificuldade em conseguir fazê-lo.

Aliás, há aqueles que entendem que a frustração é boa para o mercado, pois, como o consumidor não consegue preencher seu "espaço interior" adquirindo mercadorias, nunca para de comprar, na tentativa  — vã – de apaziguar sua alma.

Além disso, como esse consumidor – já frustrado ou que ainda se frustrará – é um ser humano, tem, dentro de si, uma coisa chamada esperança. Daí, vive a ilusão da possibilidade de um dia realizar seu sonho – qualquer que seja ele: alguns mais difíceis como, por exemplo, o da aquisição da casa própria perfeita; outros nem tanto, como comprar certos automóveis ou empreender lindas viagens. Mas o fato é que,  de frustração em frustração,  o consumidor vai preenchendo o vazio de sua esperança; se olhar para trás, verá o quanto não conseguiu obter.

Acontece que, a esperança é forte e a ilusão também. Por isso, ele acredita na sorte e participa de todo tipo de jogos para ganhar prêmios (estes ironicamente chamados de "jogos de azar"): loterias,  cassinos (quando e onde há), entra em concursos de todo tipo, adora promoções, sorteios etc.. Isto é, o consumidor é presa fácil das ofertas que prometem uma vida melhor e, de preferência,  obtida rápida e facilmente.

Por isso é que já disse aqui neste espaço: visto desse modo, é possível afirmar que a esperança é uma espécie de "produto" não declarado e escondido por detrás das ofertas que abundam no mercado, dando sustentação à mensagem nos vários tipos de produtos e serviços oferecidos: a esperança de, usando uma certa roupa, ficar mais bonito ou mais bonita;  ou a de  fazer sucesso com o carro novo; a esperança de, com todos esses apetrechos e muitos outros, conseguir conquistar um grande amor; e depois constituir família; daí, adquirir a casa própria; a esperança de garantir o próprio futuro e, também, o da família pagando prêmios de seguros; e a de chegar nesse futuro, se aposentar e ter tempo ainda de gozar a vida, poupando de forma adequada; etc. etc. Realmente, o mercado oferece o futuro de uma vida melhor.

Antes dessa pandemia, que já dura muitos meses e que, em alguns lugares, de fato, gerou um enorme isolamento das pessoas, o que se percebia era que, cada vez mais, o consumidor tinha pressa. A aceleração por aquisição de produtos e serviços veio crescendo fortemente desde os anos 80 do século XX e ingressou no século XXI em alta velocidade.

E foi o mercado que aumentou a velocidade das coisas, das compras e da própria vida a ser vivida: velocidade real e virtual; não havia tempo para nada; nem se podia perder tempo algum. Apesar dessa questão do Covid, ainda é assim: recebe-se à vista e paga-se a crédito, a perder de vista. Não é incomum que o consumidor adquira um presente para o dia das mães num ano e acabe de pagar no mês anterior ao dia das mães do ano seguinte, quando, então, tem  de entrar em novo crediário. E, claro, isso vale para  qualquer data e muitos produtos.

Há consumidores que já nem tem mais o próprio automóvel, que foi vendido para fazer frente às dívidas por ele – automóvel — criadas e continua pagando as prestações de seu financiamento. Ou, como diz a propaganda: "Compre agora e só comece a pagar daqui a três meses". Esperança, com alguma coisa palpável…

Essas características são muito conhecidas dos fornecedores, o que torna o comportamento dos consumidores previsível. Ao calcular uma campanha promocional ou um grande evento, o  empreendedor sabe, de antemão, com alto grau de probabilidade, qual será o comportamento do consumidor. Ele sabe, por exemplo, que, se mexer com certos pontos dos desejos, necessidades e interesses dos seus potenciais compradores obterá êxito na empreitada. E mesmo em tempos de pandemia, as táticas prosseguem. Além disso, nos dias que correm, o consumidor sonha com dias melhores, quero dizer, todos nós sonhamos!

Claro que nem tudo é responsabilidade do fornecedor. Afinal, o consumidor compra por que quer e exercendo sua liberdade para tanto. Pergunto:  Será que o consumidor precisa adquirir muitos bens para ser feliz? E a que preço? O capitalismo não esconde suas intenções: produz e quer vender. O consumidor, cada vez mais, está sintonizado com o sistema, vivendo a esperança de um futuro de bem-estar que decorre da aquisição de produtos e serviços.

Como diz meu amigo Outrem Ego: "Será que não chegou a hora do consumidor ter menos pressa e pesquisar para descobrir melhores alternativas para uma vida mais tranquila e feliz, sem ter que ficar comprando produtos e serviços sem parar? Quem sabe, no isolamento, o consumidor possa refletir sobre isso".

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Colunista

Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor. Para acompanhar seu conteúdo nas redes sociais: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4.